DIVERSOS COM EVENTUAL INTERESSE

«Fui a primeira empregada do turismo de Aveiro»

Quinta-feira, 19 de Novembro de 1998 – pág. 17 Irina Morais

Graciete Picado tem uma história algo peculiar. Feliz no casamento, vivia na ansiedade de ter um filho. Corajosa, determinada e de personalidade forte, foram estas características que muito a ajudaram a levantar-se das rasteiras da vida. Mas as coisas nem sempre foram fáceis. Felizmente encontrou apoio na mãe. Sobretudo quando...


Graciete Picado nasceu em Aveiro a 10 de Dezembro de 1917. Frequentou a escola até ao 5º ano e, durante esse tempo, gozou de isenção de propinas. O ensino era pago, mas os mais carenciados eram apoiados pelo Estado. Graciete Picado muito gostaria de ter continuado, mas a média não era suficiente para entrar na Universidade. Por isso, perdeu o direito à bolsa. Um dos sonhos de Graciete desvaneceu-se: ser professora de instrução primária tornou-se um objectivo inalcançável.

Obrigada a deixar de estudar, decidiu ir trabalhar. Concorreu à Comissão Municipal de Turismo e foi aceite. «Fui a primeira funcionária do serviço de turismo de Aveiro. Trabalhava na Praça da República, no actual edifício das Finanças». Graciete gostou muito do seu primeiro trabalho: «Gostei de aprender francês. Isso era exigido, porque, naquela altura, era a língua mais falada». Mais tarde concorreu à Câmara Municipal de Aveiro e conseguiu o lugar. «Lá completei 42 anos de serviço.»


«Os serões eram passados a bordar»

«Sempre vivi com a minha mãe e fomos muito felizes as duas.» Habituada à cidade, aqui tinha, Graciete, as suas amigas. Trabalhava, passeava com as amigas e com a mãe e os serões eram aproveitados para bordar o enxoval. Recorda com muita saudade esses tempos; tempos em que nenhuma mulher se atrevia a andar de calças. «Parecia mal, começavam logo a falar mal de nós. Naqueles tempos haviam muitos preconceitos, mas o que era bom era que todos se conheciam e se davam bem.»

Era costume, naqueles tempos, depois de jantar, fazer-se o «picadeiro» pela avenida e Graciete ia com a mãe e com as amigas. Como não havia televisão, as pessoas iam até ao «picadeiro» e, depois, as raparigas solteiras iam para casa com as mães.

Mais tarde o "Trianon" passou a ter televisão e todos se juntavam lá. «As mulheres não iam, porque parecia mal uma senhora ou uma menina ir a um café». Eram regras da sociedade, que, apesar de ultrapassadas, Graciete recorda com saudade, bem como os seus tempos de menina.


«Casei e queríamos ter um filho»

Graciete Picado casou e «fui feliz durante alguns anos». Queriam muito ter um filho, mas não conseguiram. Graciete sempre gostou muito de viajar. Um dia, foi a Espanha e, lá -- Graciete não sabe explicar como
o marido terá tido um romance. Regressaram, mas Graciete não sabia de nada. Mais tarde, «o meu marido soube que ela estava grávida e não hesitou em procurá-la. Fiquei muito magoada, mas hoje compreendo. Ele queria um filho e foi isso que o levou até ela.» Graciete Picado, por motivos de saúde, não podia ter filhos. «Não pude dar esse gosto ao meu marido e eu própria também não o tive. Custou-me muito.»

O marido não olhou para trás. Fez as malas e foi para Espanha. Manteve as relações com a família, e por ela soube que ele tivera dois filhos. Fala do marido sem mágoa: «Ele ainda veio ver-me a Aveiro, apenas como amigo. Eu entendia que nada impedia que fôssemos amigos.» Esta história deu a volta à vida de Graciete; nunca mais pensou em casar.


«Vivi apenas para a minha mãe»

A partir de então dedicou-se inteiramente à sua mãe. Não tinha irmãos, não tinha filhos; só tinha a mãe e a mãe só a tinha a ela. Até à morte da mãe viveu só para ela.

Quando o seu sogro morreu, como não estava ainda legalmente divorciada do marido, herdou a parte a que tinha direito. «Com o dinheiro construí uma casa nos arredores de Aveiro para onde fui viver com a minha mãe. Ela morreu e eu pensei que o mundo ia acabar: Fiquei definitivamente sozinha; não tinha mais ninguém.» Mas a vida continuou. A casa onde vivia passou a ser muito grande e Graciete, corajosa e determinada teve de tomar urna decisão um pouco difícil: «Decidi ir para o Lar. O Lar era ainda em Esgueira e lá estive até que foi preciso mudar para a Moita.» A princípio, Graciete Picado não gostou da ideia, porque em Esgueira estava perto de Aveiro, o que lhe facilitava dar os seus passeios.

Graciete é uma utente do Lar algo especial. Conta com 81 anos de idade, mas a sua aparência é enganadora. Dona de uma boa disposição, é uma excelente conversadora e ajuda aqueles que mais precisam. Transmite uma tranquilidade e não recorda com mágoa aquilo que sofreu. Afinal, são as coisas da vida. É muito independente e, por isso, sai quando quer, dá os seus passeios e faz muitas viagens. «Se me quiser ausentar durante uns dias e ir passear, posso ir. Este verão fui à Expo 98. Já fui à Escócia, a Inglaterra, a Marrocos.»

Graciete Picado não é, hoje, uma pessoa infeliz. Aceita os factos e não os recorda com mágoa. «São coisas da vida. A gente nunca sabe o que nos pode acontecer.» Sempre se defendeu sozinha e nunca teve medo de encarar a vida de frente. Graciete é um exemplo de coragem e determinação. Lutou muito e hoje é uma mulher muito especial e traz consigo um sorriso encantador, que esconde tudo o que lhe pode ter acontecido.

Graciete Picado com a mãe

Graciete Picado no Lar, em 1998.

 

 

ALGUMAS BREVES REFLEXÕES

Este texto, em 2017, analisado à distância de quase 20 anos, permite-nos uma interessante reflexão de natureza sociológica e também histórica, relativamente à cidade de Aveiro e aos costumes da época, tanto mais que alguns aspectos serão estranhos, para não dizermos exóticos, para as actuais gerações, especialmente as mais novas, habituadas a um mundo em que estão rodeadas de diversas tecnologias da comunicação, algumas, quiçá, talvez condutoras a um isolamento, mesmo no interior da própria família.

«Fui a primeira empregada...» − Na época, quase todos os trabalhos eram feitos por homens. À mulher competia essencialmente o trabalho da casa e o cuidado com os filhos. Isto era mais evidente no meio citadino, já que, no mundo rural, além da vida doméstica, a mulher auxiliava frequentemente o homem nos trabalhos agrícolas.

«Um dos sonhos de Graciete... ser professora de instrução primária» − Esta era uma das poucas profissões que podia ser desempenhada pela mulher, tanto mais que, nos diferentes níveis de ensino, rapazes e raparigas frequentavam escolas diferentes. Raras eram as excepções a esta regra social.

«No actual edifício das Finanças» − Na década de 1970, as Finanças e o Turismo funcionaram no edifício Fernando Távora, em frente à Câmara Municipal de Aveiro. E, nos últimos andares, Aveiro dispunha de uma excelente Biblioteca Pública, como que uma «Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra» em ponto mais pequeno, que nunca deveria ter deixado de existir. Uma daquelas muitas «burrices» (passe a expressão, ofensiva para os respectivos animais!) dos nossos autarcas. Importa referir que Graciete Picado nunca poderia ter trabalhado neste edifício, porque quando ele foi inaugurado já ela estava aposentada. Quando muito, trabalhou no rés-do-chão de um dos vários edifícios que foram demolidos para a construção do actual edifício. Já agora, aproveitando a informação de um aveirense que também trabalhou no mesmo local, «no mesmo prédio, funcionaram os Correios, os Serviços Técnicos da Câmara e a Escola Primária da Glória».

«Nenhuma mulher se atrevia a andar de calças.» − E muito menos esburacadas e com ar miserável, como parece ser moda na segunda década do século XXI.

«...depois de jantar fazer-se o picadeiro...» − Este era um costume salutar praticado em muitas cidades e, sobretudo, em algumas praias europeias, durante o período estival. Forma agradável, simultaneamente, de sociabilização e de exercício físico. Consistia em passear em grupo ao longo das principais avenidas, de um lado para o outro, ao mesmo tempo que se punham as conversas em dia e o que permitia também alguns encontros entre elementos jovens do sexo oposto. Lembremo-nos que, em Portugal, computadores relativamente acessíveis só apareceram nos finais da década de 1980. Sem redes sociais à distância, sem «feice buques», «tuítares» e telemóveis do tamanho das nossas agendas, não havia hipóteses de grandes contactos e (des)conhecimentos, nem com amigos e muito menos com estranhos situados em lugares remotos do planeta. Os picadeiros, as férias nas estâncias balneares e termas, as idas às missas, aos domingos, e às festas e romarias eram algumas das formas de que os mortais de então dispunham de conhecer outras caras e, quem sabe, estabelecer relações mais duradouras.

«Mais tarde o Trianon...» − Alusão a um dos três cafés mais conhecidos da cidade de Aveiro nas décadas de 1950 e 60. O mais central, o «Café Arcada», mesmo na frente da «Ponte-Praça» (actual Praça Humberto Delgado); logo no começo da Avenida Dr. Lourenço Peixinho, o «Café Avenida». Um pouco mais acima, o «Trianon». Além destes três emblemáticos cafés, existia ainda, na Rua João Mendonça, o café «Gato Preto», talvez o mais antigo de Aveiro. Enquanto os três primeiros desapareceram, dando alguns lugar a Bancos Comerciais, outros foram surgindo e outros ainda hoje, em 2017, se mantêm.

«Casei e queríamos ter um filho» − Na época ainda não existiam as técnicas actuais de fertilização; e se alguém se lembrasse de arranjar «uma barriga de aluguer», isso equivaleria a um valentíssimo escândalo social. Daí a estratégia do marido para conseguir os objectivos, ainda que com prejuízo dela.

Muitas outras considerações são possíveis a partir deste interessante texto, mas ficamo-nos por estas, talvez as mais importantes.

 

 

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