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        Mina na Companhia 305 
        
        O dia 10 de Julho de 1963 calhou ao domingo. Não 
        houve operações. A malta, depois do almoço, andava ao Deus dará. 
        Conversa com este, conversa com aquele, era um dia de tédio. 
        
        Refugiei-me no posto de observação. Lá soprava a tal 
        aragem de que já falei. Apesar de não ser fresca, era pelo menos um 
        sinal de que ali alguma coisa se mexia. Para mim era um sinal de vida, 
        visto do alto, até bem longe.  
        
        Debrucei-me sobre a trave que segurava a chapa de 
        bidão que nos protegia em caso de algum tiro ser disparado para lá. 
        Tempo chato, nada de novo se passava. Mas ainda bem, apesar de o tempo 
        custar tanto a passar! 
        
        Fui rodando, revendo a paisagem já conhecida, as 
        copas das árvores, o capim alto. Que pasmaceira!  
        
        Se estivesse de serviço, não tinha tempo para pensar. 
        Tinha que agir, o que era mais fácil do que pensar. Agir, no local onde 
        estamos, é já! Pensar é navegar por lado nenhum. É, correndo de vagar, 
        deixar que o espírito nos leve onde gostaríamos que o corpo também 
        estivesse. Por quê o espírito nos martiriza tanto? Leva-nos sempre onde 
        não estamos mas gostaríamos de estar! 
        Absorto nestes pensamentos quase me deixei adormecer. 
         
        Grande “Makas” 
         
        De repente, ouço um estrondo, muito ao longe. Parecia um trovão. “Que 
        diabo é isto?!” Olhei em volta. Notava-se, ao longe, para os lados da 
        Buela, uma coluna de fumo. Não era queimada! O fumo da queima do capim é 
        cinzento, este era escuro. Era produto da queima de combustível de uma 
        viatura. “Meu Deus – interroguei-me – outra mina?!” 
        
        Desci rapidamente do Posto de Observação e dirigi-me 
        ao Comando, informando o Capitão do que tinha ouvido e visto.  
        
        – Deixa lá, não há-de ser nada! – Respondeu ele. 
        
        Foi fora da nossa zona. Só pode ter sido alguma 
        viatura na Companhia 305, que tinha o acampamento não muito distante do 
        nosso.  
        
        – O que for soará – foi a sua resposta. E continuou 
        sentado onde estava. 
        
        Desiludido com tal atitude, dirigi-me à nossa 
        caserna, contando o sucedido.  
        
        – Aqui dentro não ouvimos nada – disseram os que lá 
        estavam.  
        
        – Mas houve “maka” – afirmei com veemência. Vão lá 
        acima ao Posto de Observação e ainda verão os restos do fumo da 
        explosão.  
        
        Alguns assim fizeram e, ao regressarem, conversavam 
        entre eles: 
        
        – Houve merda, pela certa. O tipo de fumo é igual ao 
        da explosão que houve com o nosso pelotão. 
        O Sargento de Transmissões dirigiu-se logo ao Posto de Rádio para fazer 
        uma “exploração” e ver se havia alguma comunicação.  
        
        Pouco depois o Sargento Tendeiro informou-nos de que 
        possivelmente teria havido um problemazeco qualquer mas que a recepção 
        não estava nas melhores condições. Só quando chegasse a hora das 
        comunicações com o Batalhão, tudo ficaria esclarecido. 
        
        Estranhei a atitude do Tendeiro que, rapaz de poucos 
        fumos, se tenha sentado à mesa, tirado um cigarro que acendeu, e puxando 
        grandes baforadas que expelia para o ar, ficava a olhá-las até 
        desaparecerem contra o zinco quente do telhado. 
        
        Olhei-o de frente. Ao notar que estava a ser 
        observado, olhou-me e encolheu os ombros. A minha resposta foi também um 
        encolher de ombros.  
        
        Perto da noite veio a informação do Batalhão – havia 
        um morto e um ferido. O morto era o Comandante da Companhia 305, o 
        ferido tinha sido o Cabo Condutor, a quem no acampamento da Buela o 
        médico, à falta de melhor alfaia e para evitar a gangrena, lhe tinha 
        amputado o braço com um serrote de cortar madeira! Um alferes e um 
        soldado sofreram ferimentos menos graves. 
        
        Ainda hoje recordo ter recebido do meu irmão mais 
        velho (à espera da mobilização no Colégio Militar, no qual dava aulas), 
        um aerograma perguntando que raio de guerra era esta, em que um Capitão 
        morre com uma mina anti-carro! O Capitão tinha também dado aulas no 
        Colégio Militar, onde era muito estimado! 
        
        O meu irmão era de Artilharia e estava longe de 
        imaginar o sítio para onde mais tarde o iriam mandar: para o coração dos 
        Dembos! 
        
        Sobre este caso, tão chato, só agora o Tendeiro se 
        abriu. Não podia revelá-lo antes, por ser uma mensagem confidencial. Só 
        o Comandante do Destacamento podia ter conhecimento dela.  
        
        Disse-nos, então, que quando sintonizou o rádio na 
        frequência usada pelos pelotões em operação, ouviu o rádio da patrulha 
        chamando aflitivamente para a Buela. Uma viatura tinha pisado uma mina 
        anti-carro. Dos quatro ocupantes um tinha tido morte imediata, outro, o 
        condutor do veículo, tinha o braço direito meio decepado e os outros 
        dois estavam só ligeiramente feridos. Pediam duas macas com urgência, 
        pois o condutor estava a esvair-se em sangue, embora o maqueiro já lhe 
        tivesse aplicado um garrote! 
        
        – Que raio! Será que não conseguimos pôr a vista em 
        cima dos gajos?! Serão invisíveis? Nem com todos os cuidados conseguimos 
        evitar as baixas no nosso Batalhão! Merda p’ra isto! 
        
        A nossa Companhia já tinha conseguido eliminar um 
        inimigo. E da nossa parte já quatro haviam perdido a vida nesta luta do 
        gato e do rato! 
         
         
        “Tic”... 
         
        Em Cuimba encontrei companheiros da 305. Falei com o Sousa, tentando 
        saber mais pormenores sobre a mina que eles tinham accionado. Contou-me 
        tudo o que eu já sabia, como é que actuava uma mina. Mas contou-me mais! 
        A esposa do Capitão estava na Buela quando se deu o acidente. Julguei 
        que em zona de guerra isso fosse proibido! Mas afinal não era como eu 
        pensava. 
        
        Foi o Sousa que deitou os restos mortais do Capitão 
        na cama – eram mesmo restos – compondo-os o melhor que pode. Pôs tudo em 
        ordem e saiu.  
        
        A esposa queria ver o marido! Deixou-a entrar. Esta 
        ficou a olhar, imóvel. O rosto do Capitão estava intacto – este tipo de 
        minas actua de baixo para cima. A senhora nem uma palavra balbuciou. Que 
        pensamentos eram os seus naquela hora? Ninguém sabia! 
        
        Os presentes retiraram-se em sinal de respeito. 
        
        Pouco depois ouviu-se um “tic”. Correram para trás e 
        encontraram a senhora com a pistola encostada à cabeça. A sorte (?!) 
        dela foi a arma não ter balas, tiradas propositadamente pelo Sousa antes 
        de sair do quarto. Pensou, ou foi um anjo que lhe disse, que a pistola 
        do Capitão, mesmo carregada, já não serviria para nada.  
        
        Aquela mulher, perante a impotência de acabar com o 
        seu sofrimento, sentou-se numa cadeira e chorou copiosamente. Perante a 
        surpresa deste infortúnio, não fazemos uma pequena ideia do quanto 
        sofria aquela alma! 
        
        Lágrimas que o Império tece… 
  
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