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        Nova emboscada 
        
        Hoje é dia 30 de Setembro de 1962. Quatro meses de 
        mato e nada que se veja! O terceiro pelotão está operacional. Logo à 
        noite temos de ir fazer uma emboscada. O Alferes informou-nos que iremos 
        emboscar-nos na picada do Quelo. Tantas emboscadas feitas naquela picada 
        sem resultados! Sempre à semana. É mais uma, pensámos. Hoje é domingo… 
        
        E lá fomos em quatro Unimogues. Três com o pelotão e 
        o quarto com uma secção que faria a segurança das viaturas quando nos 
        deixassem e regressassem ao acampamento. 
        
        Ficámos muito longe da picada. O caminho até lá foi 
        feito a pé. As viaturas regressaram ao acampamento.  
        
        O Alferes ordenou: 
        
        – A primeira secção vai à frente, depois a segunda e 
        a seguir a terceira. Eu fico entre a segunda e a terceira. Quando 
        chegarmos à picada, emboscamo-nos do seu lado esquerdo, perto do rio. A 
        picada passa mesmo no cume. Como estamos um pouco mais abaixo, se passar 
        alguém por lá nós podemos vê-los projectados no céu!  
        
        Estranhámos estes esclarecimentos todos do Alferes, 
        que já eram por nós mais do que conhecidos. Pareceu-nos esquisito. 
        Mas... 
        
        Alcançámos a picada quando já estava a anoitecer. 
        Fomos por ali adiante cerca de meia hora, comigo à frente. Parei até que 
        todos os homens se aproximaram uns dos outros. Sempre em silêncio, 
        saímos do trilho para a esquerda, descendo para o rio, conforme as 
        instruções recebidas, e cada um procurou camuflar-se o melhor que pode. 
        Estendeu o braço confirmando se o colega estava “à mão de semear”, como 
        se costuma dizer. 
        
        Tudo pronto, agora era o mais difícil – esperar! 
        Seria fácil esperar, se conseguíssemos que a cabeça estivesse só ali. 
        Olho alerta, tentando perscrutar o horizonte. Ali não havia árvores. De 
        dia via-se longe mas de noite não se via um palmo à frente do nariz.
         
        
        A noite estava calma. Viam-se algumas estrelas no 
        céu. Cada um observava o seu sector, pensando sabe-se lá em quê! 
        
        As horas passavam umas atrás das outras... e nada. 
        
        A certa altura ouço um indivíduo a ressonar. Sacana, 
        pensei eu. E ouço o Alferes lá do meio do Pelotão falando por entre os 
        dentes: 
        
        – Quem é a besta que está praaí a ressonar? O Cabo 
        Pombal que estava a meu lado toca-me e diz baixinho: 
        
        – Meu Furriel, é você...! 
        
        Fiquei admirado, pois estava a ouvir um ressono e 
        afinal era o meu! Não acreditaria se não fosse o Pombal a dizer-mo, pois 
        sempre foi um indivíduo que não brincava em serviço. No que uma pessoa 
        se transforma em certos momentos da vida, pensei. Nunca me tinha 
        sucedido nada assim! A mente aguenta, por vezes com dificuldade. Mas o 
        corpo, embora treinado para aquelas andanças, quando menos esperamos, 
        trai-nos. No meu caso, o corpo estava descansado e adormeceu, embora com 
        o espírito alerta, ouvindo o ressonar, mas incapaz de acordar o corpo. 
        Foi precisa a ajuda exterior para que isso acontecesse! Que coisa tão 
        estranha... 
        
        Embora pasmado com o que me tinha acontecido, não 
        consegui deixar de estar vigilante, de corpo e alma, a partir daquele 
        momento. Olho o relógio, com ponteiros luminosos: 3H00 da madrugada. 
        Nunca mais é dia – penso – Não posso adormecer!  
         
        Hora da retaliação 
         
        Passou mais algum tempo, nem eu sei quanto. Há qualquer coisa de 
        esquisito no ar. São passos, mas são muito leves para serem de pakaça. 
        Pensei em hienas mas se fossem elas ter-se-iam rido, talvez de nós, como 
        era habitual. Não me digas que são os “turras”! 
        
        Baixei a cabeça, juntinho ao capim, e vejo 
        projectadas no céu figuras humanas! São “eles”! … 
        
        Pus a FBP em posição de fogo. Eu teria de dar o 
        primeiro tiro, por ser o último à esquerda, e o inimigo vinha da 
        direita, apanhando assim o maior número deles na zona de morte. Todo o 
        pelotão já há muito estava preparado. Ouviu-se um “tic”, que todos 
        conhecíamos, de alguém que se tinha esquecido de destravar a arma. O IN, 
        como vinha a caminhar, não notou. 
        
        Passa o primeiro à minha frente. Puxo o gatilho. A 
        culatra vai a frente mas a arma não dispara. O Pombal, que notou a minha 
        aflição a puxar novamente a culatra atrás, começou a disparar e de 
        seguida todo o pelotão o imitou. A custo consegui desencravar a arma e 
        também comecei a fazer fogo. Ali estivemos a atirar indiscriminadamente 
        para tudo que mexesse.  
        
        – Parar o fogo! – Ordenou o Alferes.  
        
        Todos parámos. Silêncio absoluto. Reparo em duas 
        figuras que iam a fugir para a minha esquerda, dobradas, logo que o fogo 
        acabou. 
        
        – Há dois turras que vão a fugir para a esquerda. Vou 
        fazer umas rajadas! 
        
        Foi o que fiz. 
        
        Depois foi o silêncio. De vez em quando ouvia-se um 
        gemido. Há alguns deles feridos, pensei. Mas num caso daqueles não 
        podíamos fazer nada, pois podia ser uma armadilha. Via-se muito pouco. 
        Teríamos de esperar pela alvorada para saber o resultado da emboscada. 
        Montámos segurança. Metade do pelotão voltado para a picada e a outra 
        metade voltada para o lado oposto, precavendo-nos contra um possível 
        ataque pelas costas. Tardava o clarear. Ao longe apareceu uma fogueira. 
        Lá estão eles a indicar o sítio para a reunião dos sobreviventes, 
        pensei. Pedi ao Alferes para fazer para lá uma basukada. Não fui 
        autorizado, o que me deixou chateado, pois podíamos aproveitar a ocasião 
        para obtermos melhor resultado da emboscada. Quem manda pode, pensei, 
        mas é asneira não aproveitar as ocasiões!  
        
        Passados uns tempos comecei a sentir frio nos 
        testículos. Mau! Será alguma cobra? Lentamente baixei a mão e apalpei. 
        Estava completamente urinado. O falhanço da arma foi no que deu! 
         
        Avaliando os estragos feitos: um horror! 
         
        A alvorada chegou. Mais valia que aquela alvorada nunca tivesse 
        acontecido! Ainda se via pouco. Houve ordem de avançar ao 
        reconhecimento. Armas aperradas, prontas a fazer fogo, e avançámos 
        vagarosamente! 
        
        Chegámos à picada. Eu nem queria acreditar no que 
        via. Corpos prostrados por tudo quanto era sítio. Meu Deus! O homem que 
        ia à frente tinha ainda na mão direita um pau de caminhante, que no cimo 
        tinha sete cortes feitos à navalha. Era alto e forte. Teria uns dois 
        metros de altura. Mais além, um jovem dos seus dezoito anos estava 
        completamento cortado ao meio, com os intestinos de fora. Foram feitas 
        buscas nos corpos dos vivos e dos mortos. O jovem tinha consigo um 
        cartão da Juventude da UPA e diversa documentação, que nos permitiu 
        saber que aquilo era uma coluna de reabastecimento que se dirigia para a 
        sua base “Fuesse”, mais para Norte, mas ainda dentro da fronteira. Mais 
        tarde esta base foi atacada e destruída. Havia mantimentos espalhados 
        por todo o lado. Havia vidas perdidas. Certamente, assim como nós, não 
        seriam voluntários! 
        
        Havia mulheres, que carregaram à cabeça os 
        mantimentos. Havia crianças que ao ver-nos choravam de medo agarradas às 
        mães. 
        
        Informámos a Companhia do “sucesso” e pedimos para 
        que as viaturas nos viessem buscar, trouxessem macas para os feridos, 
        pás e enxadas para enterrar os mortos. Eu pedi que me trouxessem a minha 
        máquina fotográfica, onde fiz fotos que não tenho coragem de publicar. 
        Era a guerra... 
         
        Morto-Vivo 
         
        Enquanto aguardávamos pelas viaturas, separámos os mortos dos vivos e 
        íamos observando tudo! Um soldado chamou-me a tenção para o facto de lhe 
        parecer que o jovem da UPA se tinha mexido.  
        
        – Não pode ser – respondi. Não vez como ele está?!
         
        
        No entanto dirigi-me ao Alferes e pedi-lhe a pistola.
         
        
        – O que vais fazer? – Perguntou-me.  
        
        Contei-lhe o sucedido.  
        
        – Está bem. Toma lá. Não podemos enterrar uma pessoa 
        viva! 
        
        E dirigi-me para o rapaz. Observámos melhor. Não se 
        mexia; não respirava! Estava mesmo morto. Mas, pelo sim, pelo não, puxo 
        a culatra da pistola atrás, aponto e fico paralisado, dedo no gatilho, a 
        olhar aquele ser humano, prostrado Não fui capaz de disparar. 
        
        Um soldado diz-me: 
        
        – O meu Furriel não é capaz? Dê cá a pistola.  
        
        Automaticamente estendi-lhe a mão com a pistola. Ele 
        pegou-lhe, aponta à cabeça do jovem que estava com o rosto voltado para 
        baixo, e a cerca de um metro dispara. Com o impacto a cabeça saltou um 
        pouco e caiu sobre o capim.  
        
        – Este já não faz mal a ninguém! – Diz o soldado. Se 
        calhar foi ele que pôs a mina que matou os nossos companheiros. 
        
        Eu sei que aquele desabafo serviu para justificar o 
        seu acto. Não é fácil fazer-se o que ele fez... 
        
        Naquele grupo havia pessoas de idade e muitos jovens! 
        Será que lutam por um ideal, ou são obrigados a isso?! Isto é que dá 
        mais pena... 
        
        Dirijo-me a uma velhinha, sentada no chão, chorando. 
        Talvez lhe tivéssemos morto um filho ou o marido, quem sabe! Tentei 
        falar-lhe mas, ou porque não me entendia, ou por ter medo, não 
        respondia. Só o seu olhar suplicava caridade. Parecia dizer-me que não 
        queria morrer! Possivelmente ter-lhe-iam ensinado: os “Tropa” só matam! 
         
        O primeiro a aproximar-se fica! 
         
        Havia malta que se juntara à volta, rindo-se da velhinha, como que a 
        gozar com o seu medo.  
        
        – Sacana se calhar foi um dos dela que pôs as minas 
        que mataram os nossos companheiros – voltou a ouvir-se. 
        
        – Ó meu Furriel há tanto tempo não vemos mulheres! E 
        se aproveitássemos agora? – Diz outro enquanto avançava para a velhinha, 
        tentando consumar o acto… 
        
        Puxo a culatra da minha FBP atrás e digo:  
        
        – O primeiro a aproximar-se da mulher fica! 
         
        Devo ter sido muito convincente, pois toda a gente se afastou! A parte 
        animal do homem é irresponsável. E o corpo é que o paga sempre. 
        
        Não entendo por vezes a parte racional do homem! A 
        minha reacção naquele momento também não teria retorno, se a parte 
        irracional do soldado continuasse com a sua intenção! 
        
        Já é a segunda vez que isto me acontece! A primeira 
        foi em Maquela do Zombo. Tenho que ter cuidado comigo! Há qualquer coisa 
        que não está bem... 
        
        Chegam finalmente as viaturas, com a malta muito 
        satisfeita exclamando. – Desta vez conseguimos…  
        
        “Porca de vida”! pensei... 
        
        Os “prisioneiros” foram embarcados numa GMC, enquanto 
        os soldados acabavam de enterrar os mortos. Não podíamos deixá-los ali 
        para repasto das feras ou dos abutres.  
        
        Partimos em direcção ao acampamento. Senti-me muito 
        aliviado ao deixar aquele local. Por hoje basta. Enquanto as viaturas 
        seguiam vagarosas, eu recordei aquele soldado no acampamento, sozinho na 
        noite com a ideia do companheiro morto pela mina:  
        
        – Porquê a nós meu Furriel?  
        
        Agora eu também penso: porquê a nós? Porquê ao nosso 
        pelotão ter a “sorte” de fazer isto? Isto marca um homem para toda a 
        vida...  
        
        Chegados ao acampamento, os prisioneiros foram 
        sumariamente interrogados e seguindo para a sede do Batalhão para 
        continuarem os interrogatórios. No dia seguinte foram enviados para São 
        Salvador do Congo, e depois mandados entregar na Missão que lá existia. 
  
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