A
compilação representa cinquenta anos de criação
poética e testemunha, de acordo com a Advertência do
Autor, “um sentimento incontido de muito Amor”.
Esse
sentimento é revelado na epígrafe que anuncia o
primeiro conjunto de poemas da colectânea: “Esse
Aveiro que eu amo”. Os títulos dessa secção
confirmam o lirismo da relação do homem com a sua
terra: “Aveiro, meu amor”, “Meu Aveiro” e “A
Paixão”.
O
primeiro poema apresenta um cunho nitidamente
autobiográfico: o Autor identifica-se como um “Cagaréu”
autêntico, nascido em São Gonçalinho; o seu destino
é a poesia, através de uma busca incessante da “beleza
infinita deste nosso Aveiro!”.
Tal
missão surge elevadamente cumprida na séria de
retratos de Aveiro num profundo enquadramento
literário. A título de exemplo, cito algumas
expressões a esse nível: “céu terreno de ria
semeado”, “trono de sol enluarado”, “chão
salgado de luz” e “aguarela de azul e sal”. Na
linguagem poética sobressai o visualismo descritivo que
esboça a composição estética do espaço envolvente.
O mundo físico é filtrado pela subjectividade do poeta
através de uma escrita também dotada de um artístico
poder impressionista e de uma admirável força
sugestiva. Aveiro é pintado por uma embriaguez de
sentidos que lhe fantasia as formas, as cores e os
movimentos.
A
expansão da alma no delírio poético é bem patente no
soneto “A Paixão” (pág. 28) que conjuga a saudade
da raiz telúrica com o sentido projectivo da
eternidade:
Quem me dera enterrado junto ao cais
na tumba da maré da eternidade,
onde vive o Aveiro e a saudade,
a beleza infinita dos canais!
E nessa
sepultura ser arrais
do
barco ancestral desta cidade,
onde
mora a raiz da Liberdade,
semeada
por vozes imortais!
Então
nesse recanto do Rossio,
onde o
amor nasceu, e ali ouviu
o
murmurar da água na muralha,
quem me
dera morrer de maresia,
e na
urna embalada pela ria,
vestirem-me
de sal, como mortalha!
Em
várias composições, a linguagem reveste-se de um tom
místico que canta Aveiro como “terra abençoada”,
“altar de fé” ou “sacro rincão”, louvando a
alma da sua padroeira – Santa Joana Princesa.
Além
da vertente lírica, no primeiro conjunto de poemas
figura matéria de sabor épico. Verdadeiro documento da
nossa terra, o texto “Identidade” (pág. 18) convida
a uma leitura histórica que remonta ao tempo de
Mumadona, com a primeira referência toponímica a
Aveiro, passando pela aventura expansionista de João
Afonso por terras de Benim e da heroína Antónia em
Mazagão e terminando com a luta pela liberdade de
Gravito, José Estêvão e Mendes Leite.
Todos
os poemas da primeira secção revelam, por parte do
poeta, um profundo conhecimento da cidade de Aveiro, com
a qual ele mantém uma relação muito íntima,
engrandecida ainda pela expressão literária.
O
segundo agrupamento do livro de Amadeu de Sousa tem o
título de “Dois mundos diferentes”. Nesta parte da
colectânea, o poeta tem uma postura reflectida e
crítica perante o mundo circundante. O espaço
dominante é o ambiente nocturno, palmilhado por um
espírito inquieto que perscruta um sentido para a
existência humana (“Meta final”, pág. 59).
Já
percorri mil ruas e vielas,
noite
após noite, em longas caminhadas,
quando
a luz não existe nas janelas
e as
portas já há muito estão cerradas;
Quando
no céu o brilho das estrelas,
tremula
ao som das horas avançadas;
quando
o silêncio enorme invade as celas
e desce
às pedras negras das calçadas.
Não
encontrei ainda o que procuro,
neste
mundo vazio e obscuro,
só
cheio de loucura e de ambição.
—
Continuo, porém, a caminhar,
seguro
de que um dia hei-de encontrar
o mundo
da verdade e da razão.
Da sua
análise da vida resulta a consciência de um binómio
que distancia, antagonicamente, dois mundos: por um
lado, o mundo real, “vazio e obscuro”, ensombrado de
“soberba”, “ambição”, “loucura” e “morte”;
por outro lado, o mundo idealizado pelo poeta,
acalentado em tantos sonhos e iluminado por uma mente
lúcida e racional (“Taça da ilusão”, pág. 58).
A vida
do poeta é traduzida, metaforicamente, como uma
caminhada que oscila entre a esperança de encontro com
um mundo edificante e o desalento na busca desse sonho.
A esta
concepção dual da existência corresponde a visão
dialéctica que opõe o bem e o mal no retrato do ser
humano. O título “Resumo” (pág. 48) é bem
sintomático dessa linha de pensamento (“É no bem ou
no mal que se resume/ a maneira de ser de toda a gente”).
A obra
“conflito” retoma, com este título, a dicotomia de
“Dois mundos diferentes”. O texto “Meu coração
anseia” (pág. 76) dispõe essa dualidade numa
confissão frustrada do poeta: “ ... Pouco ou nada
ganho que se veja,/ p’ra quem tanto deseja, ou quase
tudo.”
Também
o desalento alterna, nesta secção, com a esperança
que alimenta o Ideal perseguido de salvação da
Humanidade. Mas agora é mais pesado o cansaço do
poeta, como anuncia a composição “Envolve-se-me o
corpo já de pó” (pág. 79).
A
estrutura dialéctica do pensamento poético
enquadra-se, perfeitamente, no esquema versificatório
adoptado, com pertinência e predominância, nestes
agrupamentos da colectânea – o soneto.
Nas
duas partes seguintes da compilação – “Que todos
os dias não sejam iguais” e “O homem” – a
mensagem poética é comunicada, de novo, sob a forma de
uma busca, conforme se pressente no título “Chave-mestra”
(pág. 98) e se esclarece no texto “Homem de bem”
(Pág. 110).
Noutros
momentos, a ânsia de descoberta de um sentido para a
vida é articulada com interrogações sucessivas num
quadro de ócio filosófico: “Por que sou?, / por que
estou?,/ por que vim?” (pág. 137).
Os
vários auto-retratos e a inclusão de textos alusivos
ao núcleo familiar do Autor, particularmente em
memória de sua mãe, perspectivam o poeta em busca de
si mesmo, ao encontro das suas origens e em cumprimento
de um destino.
Já na
parte final de uma longa caminhada, a procura do “eu
poético” complica-se com a dúvida de um outro,
enevoando a sua jornada e adensando a eterna incógnita
(pág. 141). Surge então, inevitavelmente, a ideia da
morte, decorrente da consciência do sentido precário
da existência e da ânsia de libertação (“Na hora
da morte”, pág. 139).
As
páginas finais da colectânea prestam homenagem a
Aveiro e às suas gentes, relembrado o amor do Poeta
pela sua terra. Distingo, para terminar, o soneto
dedicado a Jeremias Bandarra, o Artista que ilustrou
superiormente a “Colectânea Poética” de Amadeu de
Sousa (pág. 145):