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Contributo importante para a história das
práticas performativas em Portugal, esta colectânea de Hinos
Patrióticos e Militares Portugueses vem trazer à luz um reportório
sobre o qual pouco se sabia, e cuja sistematização era urgente.
Cantados por muitos, tantas vezes com uma forte dimensão emocional,
após serem utilizados os hinos caíram no esquecimento. Com a
publicação desta obra podemos enriquecer a nossa perspectiva sobre
as práticas musicais dos dois últimos séculos da nossa história. |
Os hinos constituem uma dimensão da prática musical com características
muito particulares. O momento de performação de um hino é um dos poucos
que escapam às categorias mais convencionais, que cada vez mais dividem
a prática musical em "profissional" ou "amadora", e em tipos, géneros ou
estilos musicais. Cantar um hino é, supostamente, uma ocasião que
dispensa competência musical e que obriga à participação de todos
quantos se identificam com o seu propósito simbólico. Os hinos são,
portanto, exemplares muito particulares da cultura musical e literária
de um grupo humano, e a sua prática ocorre em circunstâncias muito
específicas do comportamento musical.
As ocasiões e propósitos para os quais os hinos são concebidos são
diversos: render homenagem a um monarca ou presidente, celebrar um feito
militar, exaltar um sentimento associado a um acontecimento histórico
marcante, celebrar uma data da vida
de um governante ou de um dos seus familiares (a família real, por
exemplo), a aclamação de um rei ou presidente; glorificar uma unidade
militar ou uma corporação, um regimento ou batalhão, uma companhia, uma
escola. Servem também para celebrar uma ilha ou cidade, ou uma figura
nacional. Muitas vezes estes hinos são tocados e cantados na presença da
individualidade neles referida, e muitas vezes são utilizados apenas uma
vez. Foram tocados, frequentemente, em salas de concertos, de ópera ou
de teatro.
A presente colecção de Hinos Patrióticos e Militares Portugueses reúne,
pela primeira vez, o reportório dos séculos XIX e XX que foi possível
identificar em diversas fontes e arquivos. A sua leitura permite
identificar aspectos característicos deste reportório em Portugal –
alguns comuns a outros países e outros mais específicos do caso
português.
Em primeiro lugar, fica evidenciado que este reportório de hinos resulta
largamente de um fervor nacionalista acentuado em momentos de crise. É
evidente a relação entre a produção de hinos e a história de Portugal
nos seus momentos mais críticos. No século XIX, as guerras peninsulares
e toda a série de factos que despoletaram (deslocação da corte para o
Brasil, guerras liberais, os sucessivos textos constitucionais) foram
dos principais motivos para a composição de hinos. A guerra civil e as
ameaças externas à entidade nacional desencadearam ondas de afirmação
colectiva, rotulada de "patriotismo", que se manifestou poética e
musicalmente através dos hinos. No final do século, mais acontecimentos
vieram alimentar a composição: as expedições em África e o ultimatum
inglês. Já no séc. XX a República, a participação do Corpo
Expedicionário Português na 1ª Guerra Mundial, o Estado Novo, a tomada
dos territórios portugueses pela União Indiana e a Guerra de África (que
deu origem a uma grande proliferação de obras) foram os temas principais
para a produção de hinos.
Do ponto de vista literário, sobressai nestes hinos um registo épico com
referências permanentes a um passado referido como heróico. Personagens
históricas são frequentemente referidas, e não é raro encontrarem-se nos
textos alusões ao universo de Camões e mesmo a passagens de "Os
Lusíadas". A tradição heróica portuguesa parece, em muitos hinos, servir
como garantia do futuro das pretensões nacionais. Encontramos, também,
uma mística religiosa que evoca Nuno Álvares Pereira, a Rainha Santa
Isabel, Nossa Senhora da Conceição, entre outros.
A linguagem musical dos hinos é muito diversificada. São três os
principais tipos que emergem do universo desta colectânea. Em primeiro
lugar, as marchas adequadas ao desfile proporcionam uma cadência que
facilita a apresentação do texto literário. Em segundo lugar, hinos cuja
configuração musical se enquadra na tradição operática oitocentista,
marcadamente melódica. Em terceiro lugar hinos quer pela sua forma, quer
pela sua simplicidade melódica parecem ajustar-se a uma tradição de
canção popular. Em muitos casos os hinos contêm uma pequena introdução
instrumental que facilita a performação da parte vocal.
A tradição oitocentista dos hinos em Portugal revela um forte
pragmatismo: em muitos casos, as mesmas melodias foram aproveitadas para
diferentes hinos. Esta prática dispensava o trabalho de uma nova
composição musical, e sublinhava a conveniência de não ser necessária a
produção e distribuição de partes musicais, nem tão-pouco a realização
de novos ensaios musicais. Não se conhecem harmonizações ou
orquestrações de muitos dos hinos aqui apresentados; neste domínio, é
difícil reconstruir a prática performativa dos hinos.
Compositores bem conhecidos, conjuntamente com outros menos ou
completamente desconhecidos, construíram este rico corpus de hinos.
Muitos nomes, daqueles que ficaram para a posteridade ligados à história
da música em Portugal, marcam presença na lista dos autores desta
colectânea: Marcos Portugal, João Domingos Bomtempo, Carlo Coccia,
Manuel lnocêncio, Joaquim Casimiro Júnior e João Guilherme Daddi, entre
muitos outros. Fernandes Fão e Manuel Joaquim são exemplo dos muitos
músicos militares que igualmente nela se inserem.
Esta colecção de Hinos Patrióticos e Militares Portugueses constitui um
desenvolvimento inédito no nosso país no domínio dos reportórios
considerados pelos estudos sobre a música. Decerto abrirá novos
horizontes para o estudo e interpretação da cultura em Portugal.
JOÃO
SOEIRO DE CARVALHO*
* Licenciado, Mestre e Doutor em Ciências
Musicais pela Universidade Columbia, New York. Professor Associado da
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Director do Departamenlo de Ciências Musicais. |