Alberto Ribeiro Soares et alii, Hinos Patrióticos e Militares Portugueses, Estado-Maior do Exército e Maisimagem, Ldª, Lisboa, 2010, 354 págs., ISBN 978-989-97013-0-4.

Prefácio

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Contributo importante para a história das práticas performativas em Portugal, esta colectânea de Hinos Patrióticos e Militares Portugueses vem trazer à luz um reportório sobre o qual pouco se sabia, e cuja sistematização era urgente. Cantados por muitos, tantas vezes com uma forte dimensão emocional, após serem utilizados os hinos caíram no esquecimento. Com a publicação desta obra podemos enriquecer a nossa perspectiva sobre as práticas musicais dos dois últimos séculos da nossa história.


Os hinos constituem uma dimensão da prática musical com características muito particulares. O momento de performação de um hino é um dos poucos que escapam às categorias mais convencionais, que cada vez mais dividem a prática musical em "profissional" ou "amadora", e em tipos, géneros ou estilos musicais. Cantar um hino é, supostamente, uma ocasião que dispensa competência musical e que obriga à participação de todos quantos se identificam com o seu propósito simbólico. Os hinos são, portanto, exemplares muito particulares da cultura musical e literária de um grupo humano, e a sua prática ocorre em circunstâncias muito específicas do comportamento musical.

As ocasiões e propósitos para os quais os hinos são concebidos são diversos: render homenagem a um monarca ou presidente, celebrar um feito militar, exaltar um sentimento associado a um acontecimento histórico marcante, celebrar uma data da vida
de um governante ou de um dos seus familiares (a família real, por exemplo), a aclamação de um rei ou presidente; glorificar uma unidade militar ou uma corporação, um regimento ou batalhão, uma companhia, uma escola. Servem também para celebrar uma ilha ou cidade, ou uma figura nacional. Muitas vezes estes hinos são tocados e cantados na presença da individualidade neles referida, e muitas vezes são utilizados apenas uma vez. Foram tocados, frequentemente, em salas de concertos, de ópera ou de teatro.

A presente colecção de Hinos Patrióticos e Militares Portugueses reúne, pela primeira vez, o reportório dos séculos XIX e XX que foi possível identificar em diversas fontes e arquivos. A sua leitura permite identificar aspectos característicos deste reportório em Portugal – alguns comuns a outros países e outros mais específicos do caso português.

Em primeiro lugar, fica evidenciado que este reportório de hinos resulta largamente de um fervor nacionalista acentuado em momentos de crise. É evidente a relação entre a produção de hinos e a história de Portugal nos seus momentos mais críticos. No século XIX, as guerras peninsulares e toda a série de factos que despoletaram (deslocação da corte para o Brasil, guerras liberais, os sucessivos textos constitucionais) foram dos principais motivos para a composição de hinos. A guerra civil e as ameaças externas à entidade nacional desencadearam ondas de afirmação colectiva, rotulada de "patriotismo", que se manifestou poética e musicalmente através dos hinos. No final do século, mais acontecimentos vieram alimentar a composição: as expedições em África e o ultimatum inglês. Já no séc. XX a República, a participação do Corpo Expedicionário Português na 1ª Guerra Mundial, o Estado Novo, a tomada dos territórios portugueses pela União Indiana e a Guerra de África (que deu origem a uma grande proliferação de obras) foram os temas principais para a produção de hinos.

Do ponto de vista literário, sobressai nestes hinos um registo épico com referências permanentes a um passado referido como heróico. Personagens históricas são frequentemente referidas, e não é raro encontrarem-se nos textos alusões ao universo de Camões e mesmo a passagens de "Os Lusíadas". A tradição heróica portuguesa parece, em muitos hinos, servir como garantia do futuro das pretensões nacionais. Encontramos, também, uma mística religiosa que evoca Nuno Álvares Pereira, a Rainha Santa Isabel, Nossa Senhora da Conceição, entre outros.

A linguagem musical dos hinos é muito diversificada. São três os principais tipos que emergem do universo desta colectânea. Em primeiro lugar, as marchas adequadas ao desfile proporcionam uma cadência que facilita a apresentação do texto literário. Em segundo lugar, hinos cuja configuração musical se enquadra na tradição operática oitocentista, marcadamente melódica. Em terceiro lugar hinos quer pela sua forma, quer pela sua simplicidade melódica parecem ajustar-se a uma tradição de canção popular. Em muitos casos os hinos contêm uma pequena introdução instrumental que facilita a performação da parte vocal.

A tradição oitocentista dos hinos em Portugal revela um forte pragmatismo: em muitos casos, as mesmas melodias foram aproveitadas para diferentes hinos. Esta prática dispensava o trabalho de uma nova composição musical, e sublinhava a conveniência de não ser necessária a produção e distribuição de partes musicais, nem tão-pouco a realização de novos ensaios musicais. Não se conhecem harmonizações ou orquestrações de muitos dos hinos aqui apresentados; neste domínio, é difícil reconstruir a prática performativa dos hinos.

Compositores bem conhecidos, conjuntamente com outros menos ou completamente desconhecidos, construíram este rico corpus de hinos. Muitos nomes, daqueles que ficaram para a posteridade ligados à história da música em Portugal, marcam presença na lista dos autores desta colectânea: Marcos Portugal, João Domingos Bomtempo, Carlo Coccia, Manuel lnocêncio, Joaquim Casimiro Júnior e João Guilherme Daddi, entre muitos outros. Fernandes Fão e Manuel Joaquim são exemplo dos muitos músicos militares que igualmente nela se inserem.

Esta colecção de Hinos Patrióticos e Militares Portugueses constitui um desenvolvimento inédito no nosso país no domínio dos reportórios considerados pelos estudos sobre a música. Decerto abrirá novos horizontes para o estudo e interpretação da cultura em Portugal.

JOÃO SOEIRO DE CARVALHO*

* Licenciado, Mestre e Doutor em Ciências Musicais pela Universidade Columbia, New York. Professor Associado da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Director do Departamenlo de Ciências Musicais.

 
 

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