Desde que o
professor conseguira amealhar uns cobres com trabalho extra e
comprar um Fiat 600, a bicicleta ficou para ali definitivamente
esquecida. Esquecida para os adultos, mas não para os miúdos que
quase todos os dias ocupavam as carteiras, durante as horas de
escola, e a namoravam sorrateiramente, pelo canto do olho, com
vontade de a acariciar e dominar.
Era
uma bicicleta grande, adulta e robusta, cheia de carácter e orgulho
da sua origem inglesa. Era uma bicicleta toda preta com letras
douradas, de pneus largos e com um selim de molas largas que mais
parecia um sofá, bem moldado às bochechas inferiores dos humanos
que nele se sentassem. Era uma bicicleta cheia de recordações, com
um farol na frente, bem no meio do guiador, um farol grande e
cromado, que piscava o olho guloso aos miúdos, despertando-lhes
desejos para umas voltas de sonho pelas ruas da vila.
A
bicicleta era demasiado alta para os miúdos que frequentavam a
escola, para uns miúdos ainda com umas pernas de palmo e meio. Mas
era incrivelmente tentadora, constantemente a mandar convites
secretos que só os miúdos conseguiam ouvir e que, na cabeça do
filho do professor, eram reforçados pelas várias recordações de
episódios em que ela fora a protagonista.
Tirando
os pneus vazios, tudo nela parecia em perfeito estado de
funcionamento. E as várias peças cromadas, que se destacavam do
conjunto preto, reluziam naquele recanto esquecido da sala,
lançando mensagens de brilho tentador: «Andem! De que estão à
espera? Experimentem-me. Estou aqui ao vosso serviço. Viagem
comigo».
Até
o sol a namorava frequentemente. Naqueles dias de Inverno, em que o
sol anda mais baixo, mais curvado, mais junto à terra e com menos
forças, até ele penetrava, a meio da tarde, pelas largas janelas e
esticava os braços brilhantes até ao canto da sala, onde estava a
bicicleta. Também ele a acariciava e fazia concorrência aos
miúdos. Passeava os braços de luz pelo adormecido biciclo.
Arrancava-lhe reflexos brilhantes das peças cromadas, que iam
projectar-se no tecto branco da sala, por cima das cabeças dos
miúdos, desviando-lhes a atenção e ateando-lhes uma pequena chama,
chama de desejo, que os fazia sonhar e sair da sala, deixando a voz do
professor cada vez mais distante.
Na
carteira da frente, estava o filho do professor. Entre ele e a
bicicleta, a distância era considerável. Todavia, os reflexos
arrancados pelas carícias do sol nos cromados da bicicleta
projectavam no tecto raios brancos que se espraiavam, cada vez mais
largos, até ao fundo da sala. E aquela claridade súbita vinda de
cima atraia o olhar do miúdo. Levava-lhe as mensagens secretas da
velha bicicleta esquecida:
«Lembras-te
daquela tarde em que o teu pai andou comigo horas e horas à tua
procura por vários locais de Espinho? E tu sem apareceres! Lembras-te?
Lembras-te disso? Andavas com os teus amigos a brincar nas dunas ao
sul da vila, naquelas dunas que as máquinas arrasaram para dar
lugar às paredes de cimento do hospital e de uma fábrica de cordas.
Lembras-te disso? Fui eu que te trouxe para casa. Vieste em cima de
mim, sentado no quadro, entre o guiador e o teu pai. Não estás a
lembrar-te?! Até foste ao Porto, nessa noite, assistir a um
espectáculo de patinagem artística sobre o gelo. E os passeios que
davas comigo e com o teu pai até ao Rio Largo, e até àquela fonte
nos arredores de Espinho, onde o teu pai te contou uma história
fantástica de que tu tanto gostaste! Lembras-te disto?»
Estão
a ver a quantidade de conversas secretas que se podem estabelecer
entre uma bicicleta esquecida a um canto de uma sala e um miúdo de sete ou
oito anos?
Estes namoros secretos foram-se mantendo durante
bastante tempo, foram trazendo várias recordações e foram
engrossando a bola de neve do desejo, a ponto de conseguirem vencer
a força bloqueante de uma ordem: «não mexas na bicicleta, que te
podes magoar».
Deste
modo, juntaram-se duas forças tentadoras, capazes de levar um
miúdo à acção. Duas forças que fazem girar o mundo. Duas
forças que o têm levado a alterações, umas vezes para melhor, outras
para pior, mas sempre fazendo-o evoluir. A primeira grande força é
a das mensagens secretas, frequentemente repetidas, só entendidas por uma
criança ou por aqueles que conseguem manter-se crianças, por
aqueles a quem a
imaginação comanda a vida; a segunda,
uma força ainda mais irresistível, a mesma que fez pecar Adão,
aquela força fantasticamente poderosa e tentadoramente irresistível para todo o
ser humano, que o leva a procurar alcançar o fruto proibido,
sempre o mais
saboroso e o mais apetecido.
Da conjugação
das duas forças
aliadas e sobre-humanas resultou um acontecimento funesto, que me
impediu a prática de um desporto novo, em breve tornado
impossível, como iremos ver. >>> |