Senhor Presidente
Senhores Representantes dos Distritos e dos Concelhos
Minhas Senhoras e meus Senhores
Em 1507, Afonso de Albuquerque — o terrível fundador do
Império Português do Oriente — enviou ao sultão de Ormuz um
ultimato impondo-lhe a submissão ao rei de Portugal e dos
Algarves. Em 1890, sua majestade britânica — rainha dos mares há
muito navegados mandou ao último rei de Portugal e dos Algarves,
senhor já da África e do mais que sabeis, um ultimato
semelhante, em que exigia a desguarnição do território
interposto entre Angola e Moçambique. (Como haveis notado,
chamei a D. Carlos o último rei português. D. Manuel foi, de
facto, um post scriptum da monarquia apenas, pois a data que
hoje comemoramos é a da implantação virtual da República entre
nós - a sua data-chave).
Entre aqueles dois marcos - o de 1507 e o de 1891 - medeia
uma viagem histórica, que fez de um país pioneiro de progresso a
lanterna vermelha de todas as nações europeias. O celebrado
«mapa cor-de-rosa» ou seja, o que cingia o território africano
que motivou o segundo ultimato - foi o delírio oco de uma
masturbação política: a dos que se aninharam na utopia insulsa,
incapazes que foram de apreender e dinamizar o real autêntico.
Em 1507, o porto de Ormuz ficara cor-de-rosa também, mas do
sangue que correu, pois Albuquerque não aguardou a rendição dos
atacados e abriu fogo de bombardas, mandando às almadias que
lançassem os que pelas águas do naufrágio bracejavam. Em 1891, a
cor de rosa que enfeitava as lapelas dos cortesãos parasitários
do trono retingiu-se na cor rubra da primeira bandeira da
República. O navio de guerra que aguardara em Vigo o embaixador
inglês, um ano antes, para o repatriar no Caso de o ultimato não
ser aceite, não precisou sequer de recolher o passageiro, pois o
rei de Portugal, súbdito inglês — como lhe chamou Guerra
Junqueiro — apressara-se a ceder, sem regateio, o que cobiçara
não se sabia bem para quê, já que se mostrava inepto para
prospectar, propulsionar e desenvolver o que há muito possuía.
É neste para quê que se joga toda a nossa História, do século
XV até hoje. E adquirir a consciência disso é conhecer (de fonte
viva) o passado e programar (de fronte lúcida) o futuro.
Habituados a viver de recursos estranhos ao nosso solo europeu e
à nossa iniciativa doméstica, saqueámos e mercadejámos a
pimenta, o gengibre, o cravo, o sândalo, o pau-brasil, o
benjoím, o azougue, a seda, o ouro, o aljôfar, as pedrarias, os
chamalotes, o açafrão, a cera, o cardamomo, os brocados, o
marfim, a prata, o cobre, os escravos, o café, a emigração e o
petróleo. Mas não soubemos investir na metrópole toda essa
riqueza.
Água a trouxe água a levou! Fomos e somos uma maternidade que
exporta braços em proveito alheio. Ajudámos e ajudamos meio
mundo a desenvolver-se, mas nunca pensámos a sério no desvalido
terrunho natal em que vivemos! Fizemos e fazemos da
instabilidade um destino trágico, como as nossas datas nacionais
há século e meio assinalam.
Assim, a revolução liberal de 1820 foi inseparável da crise
que levou à independência do Brasil. E a implantação da
República, em 1910, constituiu um atraso de vinte anos sobre o
calendário africano que assinalou o seu advento. Se a revolução
de 31 de Janeiro não triunfou, mais se deve isso à improvisação
que lhe coube do que à impossibilidade objectiva de o conseguir.
Mas — perguntar-se-á — seriam equivalentes em importância o
Brasil das patacas e o cerrado mato, inculto e bárbaro, que
separava Angola de Moçambique? É óbvio que não. E isso nos
permite ver a mistificação em que se vivia na época. Fazia-se da
posse simbólica um sinónima de riqueza — é esta é produção, é
desenvolvimento, é labor rendável. O mito sebastiânico leva-nos
a sonhar, então como sempre, com Quintos Impérios, incapazes que
fomos de ver que a nossa fortuna estava aqui e não alhures. De
nada nos serviu, nunca, a lição de pequenos países como a Suíça,
a Albânia, a Holanda, a Finlândia ou Cuba, para os citar à toa.
E, quando a economia moderna tornou impossível que, num mundo em
que há milhões de homens que morrem à fome, haja - por absurdo -
milhões de hectares de terra inculta, tornámo-nos os
depositários de interesses económicos alheios, não alienando a
propriedade, mas alienando o fomento e os lucros dela. Como
sempre, o derrotado de Alcácer Quibir — pensam tais «místicos» —
há-de voltar numa manhã de nevoeiro — nem que seja como turista
algarvio, ao menos!
O 31 de Janeiro de 1891 foi, assim, o estrebuchar de um povo
que supôs bastar-lhe a mudança de patrão — o rei, no caso — para
resolver os seus dramáticos problemas. Não há dúvida que o
patrão se tornara um mero feitor de interesses absentistas, pois
Os verdadeiros donos do País eram os proprietários ingleses do
vinho do Porto, por exemplo, ou as companhias estrangeiras que
exploravam os nossos recursos metropolitanos e ultramarinos.
Merecia que o escorraçassem, e a quantos partilhavam tais
despojos! Mas mudar de feitor não é transformar as estruturas
que administre por conta alheia. Distinguir o falso dono do
verdadeiro proprietário — seja ele inglês, americano ou alemão —
é o passo fundamental que desde sempre se nos impôs dar para que
a Pátria seja verdadeiramente nossa e, como tal, soberana,
independente e livre. Há quem tenha milhões de contos
depositados em bancos suíços e americanos! E eu pergunto que
patriotismo é o desses, e se os seus nomes não terão de
conhecer-se para que possa ser ponderado se deverão excluir-se
do recenseamento em curso (art.º 2.° da lei n.º 2015). Os juros
fabulosos que lá auferem são arrancados à pele de países
subdesenvolvidos como o nosso, através de empréstimos a que nós
próprios recorremos para incremento do fomento interno...
Como sabeis, foi António Sérgio, o grande pensador e
democrata há dias falecido, quem melhor expôs — na sequência dos
teorizadores socialistas do nosso século XIX — essa absurda e
estagnada contradição que os republicanos da propaganda tentaram
resolver em termos de regime apenas. Não o conseguiram porque
não democratizam suficientemente o País no plano das estruturas
económicas e sociais, de modo a tomarem impossível a perpetuação
do logro e, para além dele, a contra-revolução que envolvia.
Onde Os privilégios económicos subsistem, os direitos políticos
não estão enraizados e podem ser coarctados sem dificuldade. A
política não é mais do que a cúpula do edifício societário. Pode
ser pintada de mil maneiras, mas não deixa por isso de fazer
corpo com as paredes que a sustentam.
Também neste particular o 31 de Janeiro de 1891 é uma grande
lição. O movimento só não triunfou porque não se fez a unidade
entre republicanos e socialistas. À última hora, já o sangue
corria, Basílio Teles tentou mobilizar, ainda, o operariado do
Porto, a fim de fazer divergir para os bairros periféricos ou
fabris as forças repressivas da Guarda Municipal. Era tarde! A
revolução perdera-se! Teoria e prática mostravam-se, uma vez
mais, inseparáveis.
Onde não fora possível um acordo teórico, a acção não operava
com a eficiência indispensável.
Não obstante, foram homens do Povo — logo, representantes da
maioria nacional — os que intervieram, quase exclusivamente, em
31 de Janeiro. Ao contrário do que sucedera em 1820, cujos
dirigentes constituíram um verdadeiro escol da burguesia, em que
preponderavam jurisconsultos, generais e bispos, o 31 de Janeiro
envolveu soldados, populares e sargentos. A burguesia, já então
incapaz de correr riscos e de fazer sacrifícios como classe
propriamente dita, apenas teve lá um advogado, um actor, um
abade e um capitão. Faltou aos revoltosos uma vanguarda
esclarecida, isto é, táctica e politicamente capaz — o que não
significa, evidentemente, que devesse ter origem social
diferente da que teve. Decalcaram, passo a passo, o que o 24 de
Agosto de 1820 fizera. E o espírito revolucionário só obtém
êxito se é criador. Foram valentes, foram firmes e dedicados os
que vieram para a rua, mas uma revolução é também (ou sobretudo)
um acto de competência, de organização, de comando. E o atraso
do País - Marrocos de aquém-mar, como lhe chamou Basílio Teles —
restringia à aristocracia e à burguesia o acesso à cultura,
chave de todas as portas.
O próprio 5 de Outubro, como estareis recordados, esteve à
beira do fracasso. Não fora a intrepidez esclarecida dum oficial
subalterno — Machado Santos — e do punhado de humildes bravos
que reinventaram, na Rotunda, a táctica do quadrado, e os
vacilantes, os comendadores das causas ganhas, os militantes do
fala-barato teriam ficado, impassíveis e covardes, na
expectativa. Tudo isto traduz, minhas Senhoras e meus Senhores,
a menoridade política com que tem sido tratado o nosso Povo. Com
séculos de servidão e pesarem-lhe nos lombos, lembra aqueles
escravos que recusaram a alforria quando lha deram. Foi Sampaio
Bruno quem disse estar o Povo Português por fazer. Em linguagem
de hoje, diríamos que está por consciencializar ou politizar,
pobre dele! Entra em procissão mesmo quando se revolta, como
Basílio Teles soube dizer da coluna que avançou, confiante e
cândida, pela Rua de Santo António acima, ao encontro do
massacre que a Guarda Municipal lhe reservava, em 31 de Janeiro.
O regedor, o presidente da Câmara, o ministro são para ele
depositários divinos dos poderes de que dispunham os senhores
feudais. Deixa-se tutelar na própria hora em que as etnias
afro-asiáticas, juguladas por milénios, impõem a sua presença e
a sua emancipação. Recorda o baraço que outrora lhe puseram ao
pescoço e as masmorras infectas em que os ratos o comiam!
E, todavia, se assim é ou parece ser, por que não têm dormido
tranquilos e confiados os seus governantes? Por que precisam de
cercear o exercício de todas as liberdades fundamentais? Por que
estou eu autorizado a falar apenas do 31 de Janeiro de 1891, e
não (por exemplo) do 31 de Janeiro de 1969? Não teriam fim as
perguntas se o nosso objectivo não fosse, como é, extrair a
lição histórico-sociológica da data que comemoramos, a qual
implica a sua perspectivação no tempo. E diz-nos esta que foi
esse mesmo Povo, afinal, quem salvou a Pátria, em 1383 e em
1580-1640, quando os seus dirigentes se bandearam com o
estrangeiro para a aniquilar. Daí o carácter sedicioso que a
palavra República ainda conserva! É que República significa
Democracia e o 5 de Outubro fez a democracia económica e social
que o 31 de Janeiro visou sem muito bem saber como nem porquê.
Por isso afirmo: a verdadeira República Portuguesa decorre de
31 de Janeiro de 1891, mas como institucionalização a consumar
ainda, a fazer um dia!
Presos, julgados, exilados, os precursores de 31 de Janeiro
ensinam-nos que só há progresso onde houver mártir que o tomem
em suas mãos. Foi assim com o Iluminismo, foi assim com o
Setembrismo, foi e é assim com o Republicanismo Democrático. A
monarquia constitucional do fim do século passado teve, não
obstante, o bom senso de amnistiar os líderes civis do 31 de
Janeiro. Isso lhe permitiu sobreviver por mais vinte anos, ou
contribuiu para isso, pelo menos. Nem todos os regimes podem ou
sabem ter a mesma prudência. É lá com eles! O certo é que o
exílio e a prisão têm sido, entre nós, a verdadeira escola do
Futuro, pelo que é proporcional a virtualidade das
transformações sociais a haver ao número e à qualidade dos
nossos emigrantes e perseguidos económicos, intelectuais e
políticos. Nunca houve, na nossa História, migrações ou
clausuras maciças sem regressos ou libertações também maciços —
com amnistias ou sem elas. E o salto em frente processou-se em
todos os tempos desse modo, com atraso ou não. Muito haveria a
congeminar também sobre isto, se não estivéssemos pendentes do
tema já definido.
Mas pode ver-se o fim à História? É evidente que não. Quando
leio, por exemplo, numa biografia do Dr. Alves da Veiga — um dos
chefes políticos do 31 de Janeiro, como sabeis —, que morreu
satisfeito, em 1924, por ter visto triunfar os seus ideais,
rio-me do biógrafo, está claro. A História é um que fazer
incessante, e nunca ninguém viu ou verá tudo aquilo por que se
bateu ou luta, pois algo fica sempre a meio caminho. Ficou a
meio caminho o 31 de Janeiro de 1891. Está a meio caminho o 31
de Janeiro de 1969, pois há outros oradores inscritos depois de
mim. Vai a meio caminho, quanto à Humanidade, a ida à Lua, a
Vénus, a Marte, e não seremos nós os Vascos da Gama de tais
jornadas. Nenhum desses planetas aceitaria, aliás, ultimatos
como o que Afonso de Albuquerque enviou ao sultão de Ormuz ou o
que o embaixador Mr. Petre entregou a D. Carlos de Bragança. Não
se faz a História com ultimatos, em nossos dias! Mas faz-se,
como há 78 anos, com vivas simples como este:
VIVA A LIBERTAÇÃO! |