Discurso proferido no Teatro Aveirense em 11 de Janeiro de 1969.

31 de Janeiro de 1969

 

Senhor Presidente

Senhores Representantes dos Distritos e dos Concelhos

Minhas Senhoras e meus Senhores

 

Em 1507, Afonso de Albuquerque — o terrível fundador do Império Português do Oriente — enviou ao sultão de Ormuz um ultimato impondo-lhe a submissão ao rei de Portugal e dos Algarves. Em 1890, sua majestade britânica — rainha dos mares há muito navegados mandou ao último rei de Portugal e dos Algarves, senhor já da África e do mais que sabeis, um ultimato semelhante, em que exigia a desguarnição do território interposto entre Angola e Moçambique. (Como haveis notado, chamei a D. Carlos o último rei português. D. Manuel foi, de facto, um post scriptum da monarquia apenas, pois a data que hoje comemoramos é a da implantação virtual da República entre nós - a sua data-chave).

Entre aqueles dois marcos - o de 1507 e o de 1891 - medeia uma viagem histórica, que fez de um país pioneiro de progresso a lanterna vermelha de todas as nações europeias. O celebrado «mapa cor-de-rosa» ou seja, o que cingia o território africano que motivou o segundo ultimato - foi o delírio oco de uma masturbação política: a dos que se aninharam na utopia insulsa, incapazes que foram de apreender e dinamizar o real autêntico. Em 1507, o porto de Ormuz ficara cor-de-rosa também, mas do sangue que correu, pois Albuquerque não aguardou a rendição dos atacados e abriu fogo de bombardas, mandando às almadias que lançassem os que pelas águas do naufrágio bracejavam. Em 1891, a cor de rosa que enfeitava as lapelas dos cortesãos parasitários do trono retingiu-se na cor rubra da primeira bandeira da República. O navio de guerra que aguardara em Vigo o embaixador inglês, um ano antes, para o repatriar no Caso de o ultimato não ser aceite, não precisou sequer de recolher o passageiro, pois o rei de Portugal, súbdito inglês — como lhe chamou Guerra Junqueiro — apressara-se a ceder, sem regateio, o que cobiçara não se sabia bem para quê, já que se mostrava inepto para prospectar, propulsionar e desenvolver o que há muito possuía.

É neste para quê que se joga toda a nossa História, do século XV até hoje. E adquirir a consciência disso é conhecer (de fonte viva) o passado e programar (de fronte lúcida) o futuro. Habituados a viver de recursos estranhos ao nosso solo europeu e à nossa iniciativa doméstica, saqueámos e mercadejámos a pimenta, o gengibre, o cravo, o sândalo, o pau-brasil, o benjoím, o azougue, a seda, o ouro, o aljôfar, as pedrarias, os chamalotes, o açafrão, a cera, o cardamomo, os brocados, o marfim, a prata, o cobre, os escravos, o café, a emigração e o petróleo. Mas não soubemos investir na metrópole toda essa riqueza.

Água a trouxe água a levou! Fomos e somos uma maternidade que exporta braços em proveito alheio. Ajudámos e ajudamos meio mundo a desenvolver-se, mas nunca pensámos a sério no desvalido terrunho natal em que vivemos! Fizemos e fazemos da instabilidade um destino trágico, como as nossas datas nacionais há século e meio assinalam.

Assim, a revolução liberal de 1820 foi inseparável da crise que levou à independência do Brasil. E a implantação da República, em 1910, constituiu um atraso de vinte anos sobre o calendário africano que assinalou o seu advento. Se a revolução de 31 de Janeiro não triunfou, mais se deve isso à improvisação que lhe coube do que à impossibilidade objectiva de o conseguir.

Mas — perguntar-se-á — seriam equivalentes em importância o Brasil das patacas e o cerrado mato, inculto e bárbaro, que separava Angola de Moçambique? É óbvio que não. E isso nos permite ver a mistificação em que se vivia na época. Fazia-se da posse simbólica um sinónima de riqueza — é esta é produção, é desenvolvimento, é labor rendável. O mito sebastiânico leva-nos a sonhar, então como sempre, com Quintos Impérios, incapazes que fomos de ver que a nossa fortuna estava aqui e não alhures. De nada nos serviu, nunca, a lição de pequenos países como a Suíça, a Albânia, a Holanda, a Finlândia ou Cuba, para os citar à toa. E, quando a economia moderna tornou impossível que, num mundo em que há milhões de homens que morrem à fome, haja - por absurdo - milhões de hectares de terra inculta, tornámo-nos os depositários de interesses económicos alheios, não alienando a propriedade, mas alienando o fomento e os lucros dela. Como sempre, o derrotado de Alcácer Quibir — pensam tais «místicos» — há-de voltar numa manhã de nevoeiro — nem que seja como turista algarvio, ao menos!

O 31 de Janeiro de 1891 foi, assim, o estrebuchar de um povo que supôs bastar-lhe a mudança de patrão — o rei, no caso — para resolver os seus dramáticos problemas. Não há dúvida que o patrão se tornara um mero feitor de interesses absentistas, pois Os verdadeiros donos do País eram os proprietários ingleses do vinho do Porto, por exemplo, ou as companhias estrangeiras que exploravam os nossos recursos metropolitanos e ultramarinos. Merecia que o escorraçassem, e a quantos partilhavam tais despojos! Mas mudar de feitor não é transformar as estruturas que administre por conta alheia. Distinguir o falso dono do verdadeiro proprietário — seja ele inglês, americano ou alemão — é o passo fundamental que desde sempre se nos impôs dar para que a Pátria seja verdadeiramente nossa e, como tal, soberana, independente e livre. Há quem tenha milhões de contos depositados em bancos suíços e americanos! E eu pergunto que patriotismo é o desses, e se os seus nomes não terão de conhecer-se para que possa ser ponderado se deverão excluir-se do recenseamento em curso (art.º 2.° da lei n.º 2015). Os juros fabulosos que lá auferem são arrancados à pele de países subdesenvolvidos como o nosso, através de empréstimos a que nós próprios recorremos para incremento do fomento interno...

Como sabeis, foi António Sérgio, o grande pensador e democrata há dias falecido, quem melhor expôs — na sequência dos teorizadores socialistas do nosso século XIX — essa absurda e estagnada contradição que os republicanos da propaganda tentaram resolver em termos de regime apenas. Não o conseguiram porque não democratizam suficientemente o País no plano das estruturas económicas e sociais, de modo a tomarem impossível a perpetuação do logro e, para além dele, a contra-revolução que envolvia. Onde Os privilégios económicos subsistem, os direitos políticos não estão enraizados e podem ser coarctados sem dificuldade. A política não é mais do que a cúpula do edifício societário. Pode ser pintada de mil maneiras, mas não deixa por isso de fazer corpo com as paredes que a sustentam.

Também neste particular o 31 de Janeiro de 1891 é uma grande lição. O movimento só não triunfou porque não se fez a unidade entre republicanos e socialistas. À última hora, já o sangue corria, Basílio Teles tentou mobilizar, ainda, o operariado do Porto, a fim de fazer divergir para os bairros periféricos ou fabris as forças repressivas da Guarda Municipal. Era tarde! A revolução perdera-se! Teoria e prática mostravam-se, uma vez mais, inseparáveis.

Onde não fora possível um acordo teórico, a acção não operava com a eficiência indispensável.

Não obstante, foram homens do Povo — logo, representantes da maioria nacional — os que intervieram, quase exclusivamente, em 31 de Janeiro. Ao contrário do que sucedera em 1820, cujos dirigentes constituíram um verdadeiro escol da burguesia, em que preponderavam jurisconsultos, generais e bispos, o 31 de Janeiro envolveu soldados, populares e sargentos. A burguesia, já então incapaz de correr riscos e de fazer sacrifícios como classe propriamente dita, apenas teve lá um advogado, um actor, um abade e um capitão. Faltou aos revoltosos uma vanguarda esclarecida, isto é, táctica e politicamente capaz — o que não significa, evidentemente, que devesse ter origem social diferente da que teve. Decalcaram, passo a passo, o que o 24 de Agosto de 1820 fizera. E o espírito revolucionário só obtém êxito se é criador. Foram valentes, foram firmes e dedicados os que vieram para a rua, mas uma revolução é também (ou sobretudo) um acto de competência, de organização, de comando. E o atraso do País - Marrocos de aquém-mar, como lhe chamou Basílio Teles — restringia à aristocracia e à burguesia o acesso à cultura, chave de todas as portas.

O próprio 5 de Outubro, como estareis recordados, esteve à beira do fracasso. Não fora a intrepidez esclarecida dum oficial subalterno — Machado Santos — e do punhado de humildes bravos que reinventaram, na Rotunda, a táctica do quadrado, e os vacilantes, os comendadores das causas ganhas, os militantes do fala-barato teriam ficado, impassíveis e covardes, na expectativa. Tudo isto traduz, minhas Senhoras e meus Senhores, a menoridade política com que tem sido tratado o nosso Povo. Com séculos de servidão e pesarem-lhe nos lombos, lembra aqueles escravos que recusaram a alforria quando lha deram. Foi Sampaio Bruno quem disse estar o Povo Português por fazer. Em linguagem de hoje, diríamos que está por consciencializar ou politizar, pobre dele! Entra em procissão mesmo quando se revolta, como Basílio Teles soube dizer da coluna que avançou, confiante e cândida, pela Rua de Santo António acima, ao encontro do massacre que a Guarda Municipal lhe reservava, em 31 de Janeiro. O regedor, o presidente da Câmara, o ministro são para ele depositários divinos dos poderes de que dispunham os senhores feudais. Deixa-se tutelar na própria hora em que as etnias afro-asiáticas, juguladas por milénios, impõem a sua presença e a sua emancipação. Recorda o baraço que outrora lhe puseram ao pescoço e as masmorras infectas em que os ratos o comiam!

E, todavia, se assim é ou parece ser, por que não têm dormido tranquilos e confiados os seus governantes? Por que precisam de cercear o exercício de todas as liberdades fundamentais? Por que estou eu autorizado a falar apenas do 31 de Janeiro de 1891, e não (por exemplo) do 31 de Janeiro de 1969? Não teriam fim as perguntas se o nosso objectivo não fosse, como é, extrair a lição histórico-sociológica da data que comemoramos, a qual implica a sua perspectivação no tempo. E diz-nos esta que foi esse mesmo Povo, afinal, quem salvou a Pátria, em 1383 e em 1580-1640, quando os seus dirigentes se bandearam com o estrangeiro para a aniquilar. Daí o carácter sedicioso que a palavra República ainda conserva! É que República significa Democracia e o 5 de Outubro fez a democracia económica e social que o 31 de Janeiro visou sem muito bem saber como nem porquê.

Por isso afirmo: a verdadeira República Portuguesa decorre de 31 de Janeiro de 1891, mas como institucionalização a consumar ainda, a fazer um dia!

Presos, julgados, exilados, os precursores de 31 de Janeiro ensinam-nos que só há progresso onde houver mártir que o tomem em suas mãos. Foi assim com o Iluminismo, foi assim com o Setembrismo, foi e é assim com o Republicanismo Democrático. A monarquia constitucional do fim do século passado teve, não obstante, o bom senso de amnistiar os líderes civis do 31 de Janeiro. Isso lhe permitiu sobreviver por mais vinte anos, ou contribuiu para isso, pelo menos. Nem todos os regimes podem ou sabem ter a mesma prudência. É lá com eles! O certo é que o exílio e a prisão têm sido, entre nós, a verdadeira escola do Futuro, pelo que é proporcional a virtualidade das transformações sociais a haver ao número e à qualidade dos nossos emigrantes e perseguidos económicos, intelectuais e políticos. Nunca houve, na nossa História, migrações ou clausuras maciças sem regressos ou libertações também maciços — com amnistias ou sem elas. E o salto em frente processou-se em todos os tempos desse modo, com atraso ou não. Muito haveria a congeminar também sobre isto, se não estivéssemos pendentes do tema já definido.

Mas pode ver-se o fim à História? É evidente que não. Quando leio, por exemplo, numa biografia do Dr. Alves da Veiga — um dos chefes políticos do 31 de Janeiro, como sabeis —, que morreu satisfeito, em 1924, por ter visto triunfar os seus ideais, rio-me do biógrafo, está claro. A História é um que fazer incessante, e nunca ninguém viu ou verá tudo aquilo por que se bateu ou luta, pois algo fica sempre a meio caminho. Ficou a meio caminho o 31 de Janeiro de 1891. Está a meio caminho o 31 de Janeiro de 1969, pois há outros oradores inscritos depois de mim. Vai a meio caminho, quanto à Humanidade, a ida à Lua, a Vénus, a Marte, e não seremos nós os Vascos da Gama de tais jornadas. Nenhum desses planetas aceitaria, aliás, ultimatos como o que Afonso de Albuquerque enviou ao sultão de Ormuz ou o que o embaixador Mr. Petre entregou a D. Carlos de Bragança. Não se faz a História com ultimatos, em nossos dias! Mas faz-se, como há 78 anos, com vivas simples como este:

VIVA A LIBERTAÇÃO!

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