Mário Sacramento, A Geração de 40 (do livro «Fernando Namora A Obra e o Homem), Editora Arcada, 1ª ed.

A Geração de 40

 

Como a de Garrett ou a de Eça, entre todas, a geração de 40, a que pertence Namora, não é estritamente literária, pelo que se impõe abordá-la no seu sentido mais lato, antes de passar ao que lhe é específico do ponto de vista deste livro.

Como é que o conceito de geração tem o seu lado aleatório. Mas certo é, também, que tem outro insubstituível. E se é lugar-comum dizer que em todas as gerações (no sentido civil da palavra) há gente para tudo, como na botica, já não o é afirmar que, nalgumas delas (em sentido cultural), há um estreito liame entre a ideologia social e a expressão literária ou artística, liame esse que, noutras, é mais laxo e inapreensível.

Pequenos-burgueses quase todos e nascidos pela década de 10-20, herdáramos da geração ideológica anterior as decepções da Primeira República, ou melhor dizendo, o cíclico remoer de engrenagem viciada que a inviabilidade de uma autêntica revolução social fizera impender sobre o País desde 1820, condenando-o a uma luta intérmina com o compromisso que as suas sucessivas elites negociavam com as oligarquias económico-políticas, às quais iam ajudando a reajustar a superstrutura nacional às bases retardatárias dum subdesenvolvimento crónico. Às primeiras vitórias colhidas pelo socialismo, lá fora, o imperialismo financeiro havia oposto uma cadeia de regimes militaristas e policiais que arvoravam uma máscara pseudo-reformista dos interesses económicos das massas populares e repercutiam nas perspectivas internas.

Se, como pequenos-burgueses, era às élites críticas do liberalismo e da república que íamos buscar os nossos paradigmas nacionais — nomeadamente aos homens da geração de 70 e aos da Seara Nova —, a época exigia-nos uma opção fundamental, não já como tartamudear utópico de programa no género do das Conferências do Casino, mas como realidade efectiva e cientificamente encaminhável. O grande objectivo era o aparecimento e a consciencialização de uma nova classe ascendente. E, à míngua de um proletariado industrial suficientemente representativo, passámos a confundir com ele (por vezes) o nosso radicalismo pequeno-burguês, intentando criar-lhe um sucedâneo — e não um aliado — no proletariado rural ou, até, a sublinhar as nossas mais pessoais raízes populares, fazendo delas uma espécie de direito de sangue. Intelectuais houve que formalizaram na ostentação dum fato de ganga, por exemplo, o que lhes minguava em autenticidade de classe mais popular.

Não havia, contudo, outra alternativa no plano do progresso. A aliança com os ideólogos e com os quadros remanescentes da Primeira República era precária, na própria medida em que eles se tinham deixado trair e ultrapassar. Por seu turno, o reformismo da chamada terceira força — em que preponderava a personalidade prestigiosa de António Sérgio —, embora nos dissesse muito no que tinha de negativo ou crítico da situação existente, não podia alimentar ilusões em quem tivesse os olhos abertos para a dureza da luta. Não obstante, um certo utopismo se infiltrou também entre nós, quer no sentido da viabilidade de uma frente popular de transição, quer no de uma emergência pequeno-burguesa para o plano vintista — se bem que actualizado — duma burguesia reascendente. Se, no que se refere ao primeiro aspecto, o seu valimento estratégico foi correcto na medida em que criou uma resistência nacional, quero crer que o segundo apenas radicalizou, ainda mais, o que já era estritamente pequeno-burguês. A abordagem autêntica do operariado nacional e a homogeneização com ele num plano objectivo que não visasse êxitos imediatos ou oportunistas, foi muitas vezes prejudicada.

Sem embargo, era este mesmo operariado, na margem sul do Tejo sobretudo, quem ia dando a nota justa da conjuntura nacional, precedendo por movimentos reivindicativos económicos os lances políticos ou ideológicos que fomos vivendo. Sempre que as condições objectivas o justificaram e permitiram, ele soube criar, desse modo, as condições subjectivas de repercussões mais amplas. E assim ocorreu, nomeadamente, no decurso da Guerra Civil Espanhola e da Segunda Grande Guerra Mundial.

Foi no clima internacional destas que emergiu a Geração de 40. A cIausura em que o País vivia foi abalada por esses acontecimentos. Escutando as emissoras estrangeiras, lendo as revistas que as próprias embaixadas distribuíam, passando de mão em mão folhetos e livros, segregando nos cafés ou nos corredores das escolas, dos escritórios e das oficinas as últimas novidades, essa geração ganhou, a pouco e pouco, consciência de si mesma. Fragmentariamente e por surtos ocasionais — quantas vezes ignorados uns dos outros mas ligados pela sincronia da sementeira que o vento faz — a pouco e pouco se foi constituindo. E empenhou-se numa batalha ideológica e cultural que só cometia o erro de se jogar no imediato pós-guerra, subestimando a importância que a vitória falangista em Espanha tivera no isolamento do País. Incluindo-se nos movimentos cívicos e reivindicativos, multiplicando-se nos jornais que subsistiam pela província, fundando o Sol Nascente ou prosseguindo O Diabo, promovendo palestras ou recitais nas agremiações, desencadeando movimentos estudantis e intelectuais, estimulando a emancipação da mulher e da juventude, aglutinando pelo seu dinamismo a solidariedade de outros, essa geração criou valores em quase todos os quadrantes da vida pública, dos quais só os que se votaram a uma obra pessoal de investigação ou de literatura viriam a realizar-se mais integralmente. Os restantes pagariam caro o preço da antecipação.

A divulgação do materialismo dialéctico, sempre precária, fez-se por vezes à luz dum neopositivismo que prolongava o da Primeira República e criava, não raro, equívocos como o do prestígio (ideológico, note-se bem) dum grande artista e eminente sábio como Abel Salazar, o que contribuiu para o agravamento das contradições intelectuais dessa época. Sem sólida fundamentação científica e preparação ideológica, ignorando em muitos casos as obras-chave dos maiores teorizadores, as quais dificilmente encontrava ao seu alcance, movendo-se por esquemas que por surtos voltearam dum hemisfério para outro ao sabor de improvisações inevitáveis, momentos houve em que um certo masoquismo político chegou a preponderar, confundindo a luta social com a autoflagelação. A sobrevivência moral tornou-se, para Os melhores, não já um caminho mas um refúgio.

Não admira, pois, que ao chegar aos anos de 50, com seu cortejo de guerra-fria e hegemonia atómica americana, ou aos anos 60, com o seu clima de coexistência e transformação qualitativa das perspectivas do devir, se assistisse, em certos casos, à inversão do que fora radicalismo pequeno-burguês para formas subjectivistas de vencidismo, igualmente pequeno-burguesas. O positivismo à 1910 já dera origem a uma reacção antipositiva, em que se haviam destacado os nomes de Teixeira de Pascoaes e de Leonardo Coimbra. O neopositivismo pseudodidáctico de 1940 - quando foi o caso - cairia por seu turno nos braços duma ressaca chamada existencialismo.

Contudo, assim, como houve, na primeira artítese, quem superasse esse nível da temática lançando uma ponte entre o passado e o futuro - e foi essa a singularidade de Raul Brandão -, assim na segunda irá aparecer, ao lado de formas nitidamente repressivas, quem não só revalorize a experiência anterior, como a transmita à geração seguinte, cujo existencialismo assumirá aspectos criadores.

Claro está que, num plano mais profundo, a consciencialização ideológica e, em especial, dialéctica, irá prosseguir, e com outra qualidade, não só através de Vértice e duma Seara Nova renovada, mas de obras de investigação, de divulgação e de ensaísmo da melhor qualidade. Mas, como este bosquejo da Geração de 40 serve de introdução apenas ao estudo da obra dum romancista, pareceu-me que o mais importante seria explicar como se fez a transição, no plano ideológico, do primeiro para o segundo neo-realismo, de que adiante voltaremos a falar.

Com efeito, o neo-realismo não aparece, como tantos outros movimentos literários, com base numa estrutura ideológica já criada. Ao mesmo tempo que cria literariamente, a geração cria ideologicamente. E daí que tenda a submeter, por vezes, a literatura à ideologia, coarctando-a. É bem elucidativo passar os olhos, por exemplo, num extenso texto de divulgação neo-realista que foi publicado no n.O 32 do jornal O Globo (1944). Aí se diz que «o neo-realismo não é uma escola literária e artística, pelo menos no sentido vulgar que se dá a esta palavra. [...] É a expressão artístico-literária do novo humanismo. Portanto: a) É um movimento afirmativo da realidade; b) É informado ideologicamente pelas concepções teóricas do novo humanismo; c) Respeita, sem partilha, ao pensamento de um novo grupo social que pela primeira vez tem voz activa na arte». Como daqui se depreende, a sondagem e transformação do real que ao neo-realismo se cometia pressupunha um cânone ideológico. Sem dúvida que qualquer arte implica um, pois ela é criação de homens mentalizados. Mas a imaturidade, o esquematismo, a rigidez da incipiente ideologia neo-realista funcionava muitas vezes como um artificioso alter ego. E punha a literatura ao serviço duma ética irreal, porque inexistente ainda. Essa a razão por que pôde ser dito que a ideologia funcionou, no primeiro neo-realismo, como um ex machina, excepção feita, está claro, das obras que conseguiram ultrapassar isso e que são, como é óbvio, as que perduram. Ou, citando o que eu próprio escrevi, em tempos, num ensaio intitulado Arte-possível e Arte-necessária: «A arte-necessária, que o renovo do homem implica, luta, em cada época, com a arte-possível - a existente e herdada. [...] Mas, sendo a arte um produto ideo-sensível, o homem reconstruído pelas novas perspectivas históricas só passa a habitar a casa nova quando nela já instalou sensações e afectos.» E isso nunca chegou a operar-se, entre nós, no terreno colectivo da praxis.

Como seria de esperar, dadas as tradições, Coimbra foi um dos focos de irradiação do pensamento juvenil de 40. Mas dizer um e não o significa uma diferença profunda. A Coimbra-doutora não era já a madre incontestada do novo, como sempre sucedera no plano intelectual! Era um afluente, apenas, do grande rio que de mil nascentes manava. Torneando, no rescaldo da Presença, em torno de figuras como as de Afonso Duarte, Lopes Graça (ao tempo residente em Coimbra) e Miguel Torga - mas sobretudo do primeiro, espécie de «veterano» perpétuo de todos os surtos intelectuais coimbrãos e «padrinho» do Novo Cancioneiro -, os jovens iam aglutinando os seus dispersos anseios. Joaquim Namorado ainda hoje conserva intacto o prestígio que colheu nesse agulhar de destinos de que foi um dos corifeus. A casa de João José Cochofel, à Rua do Loureiro, funcionava como tertúlia do escol. Nela se realizavam audições de música, cavaqueiras e leituras. Chamavam-lhe o «202» de Coimbra e intelectual consagrado que se prezasse e adregasse de passar nas redondezas tinha de comparecer a depor sem falta. A já citada e efémera revistinha Altitude, de direcção colectiva, assumia a função de diálise entre o eco da Presença e a gestação que a pouco e pouco se ia processando do neo-realismo.

         O Diário de Coimbra franqueava as portas aos que o procuravam.

         Manuela Porto fazia recitais de poesia.

         O Sol Nascente, remetido do Porto, era dobrado à mão, por turmas de voluntários.

         Os prelos da Coimbra Editora começavam a gemer, sob a pressão dos tempos...

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