Como a de
Garrett ou a de Eça, entre todas, a geração de 40, a que
pertence Namora, não é estritamente literária, pelo que se
impõe abordá-la no seu sentido mais lato, antes de passar ao
que lhe é específico do ponto de vista deste livro.
Como é que
o conceito de geração tem o seu lado aleatório. Mas certo é,
também, que tem outro insubstituível. E se é lugar-comum dizer
que em todas as gerações (no sentido civil da palavra) há
gente para tudo, como na botica, já não o é afirmar que,
nalgumas delas (em sentido cultural), há um estreito liame
entre a ideologia social e a expressão literária ou artística,
liame esse que, noutras, é mais laxo e inapreensível.
Pequenos-burgueses quase todos e nascidos pela década de
10-20, herdáramos da geração ideológica anterior as decepções
da Primeira República, ou melhor dizendo, o cíclico remoer de
engrenagem viciada que a inviabilidade de uma autêntica
revolução social fizera impender sobre o País desde 1820,
condenando-o a uma luta intérmina com o compromisso que as
suas sucessivas elites negociavam com as oligarquias
económico-políticas, às quais iam ajudando a reajustar a
superstrutura nacional às bases retardatárias dum
subdesenvolvimento crónico. Às primeiras vitórias colhidas
pelo socialismo, lá fora, o imperialismo financeiro havia
oposto uma cadeia de regimes militaristas e policiais que
arvoravam uma máscara pseudo-reformista dos interesses
económicos das massas populares e repercutiam nas perspectivas
internas.
Se, como
pequenos-burgueses, era às
élites críticas do liberalismo e da
república que íamos buscar os nossos paradigmas nacionais —
nomeadamente aos homens da geração de 70 e aos da
Seara
Nova
—, a época exigia-nos uma opção fundamental, não já como
tartamudear utópico de programa no género do das Conferências
do Casino, mas como realidade efectiva e cientificamente
encaminhável. O grande objectivo era o aparecimento e a
consciencialização de uma nova classe ascendente. E, à míngua
de um proletariado industrial suficientemente representativo,
passámos a confundir com ele (por vezes) o nosso radicalismo
pequeno-burguês, intentando criar-lhe um sucedâneo — e não um
aliado — no proletariado rural ou, até, a sublinhar as nossas
mais pessoais raízes populares, fazendo delas uma espécie de
direito de sangue. Intelectuais houve que formalizaram na
ostentação dum fato de ganga, por exemplo, o que lhes minguava
em autenticidade de classe mais popular.
Não havia,
contudo, outra alternativa no plano do progresso. A aliança
com os ideólogos e com os quadros remanescentes da Primeira
República era precária, na própria medida em que eles se
tinham deixado trair e ultrapassar. Por seu turno, o
reformismo da chamada terceira força — em que preponderava a
personalidade prestigiosa de António Sérgio —, embora nos
dissesse muito no que tinha de negativo ou crítico da situação
existente, não podia alimentar ilusões em quem tivesse os
olhos abertos para a dureza da luta. Não obstante, um certo
utopismo se infiltrou também entre nós, quer no sentido da
viabilidade de uma frente popular de transição, quer no de uma
emergência pequeno-burguesa para o plano vintista — se bem que
actualizado — duma burguesia reascendente. Se, no que se
refere ao primeiro aspecto, o seu valimento estratégico foi
correcto na medida em que criou uma resistência nacional,
quero crer que o segundo apenas radicalizou, ainda mais, o que
já era estritamente pequeno-burguês. A abordagem autêntica do
operariado nacional e a homogeneização com ele num plano
objectivo que não visasse êxitos imediatos ou oportunistas,
foi muitas vezes prejudicada.
Sem
embargo, era este mesmo operariado, na margem sul do Tejo
sobretudo, quem ia dando a nota justa da conjuntura nacional,
precedendo por movimentos reivindicativos económicos os lances
políticos ou ideológicos que fomos vivendo. Sempre que as
condições objectivas o justificaram e permitiram, ele soube
criar, desse modo, as condições subjectivas de repercussões
mais amplas. E assim ocorreu, nomeadamente, no decurso da
Guerra Civil Espanhola e da Segunda Grande Guerra Mundial.
Foi no
clima internacional destas que emergiu a Geração de 40. A
cIausura em que o País vivia foi abalada por esses
acontecimentos. Escutando as emissoras estrangeiras, lendo as
revistas que as próprias embaixadas distribuíam, passando de
mão em mão folhetos e livros, segregando nos cafés ou nos
corredores das escolas, dos escritórios e das oficinas as
últimas novidades, essa geração ganhou, a pouco e pouco,
consciência de si mesma. Fragmentariamente e por surtos
ocasionais — quantas vezes ignorados uns dos outros mas
ligados pela sincronia da sementeira que o vento faz — a pouco
e pouco se foi constituindo. E empenhou-se numa batalha
ideológica e cultural que só cometia o erro de se jogar no
imediato pós-guerra, subestimando a importância que a vitória
falangista em Espanha tivera no isolamento do País.
Incluindo-se nos movimentos cívicos e reivindicativos,
multiplicando-se nos jornais que subsistiam pela província,
fundando o
Sol
Nascente
ou prosseguindo
O Diabo,
promovendo palestras ou recitais nas agremiações,
desencadeando movimentos estudantis e intelectuais,
estimulando a emancipação da mulher e da juventude,
aglutinando pelo seu dinamismo a solidariedade de outros, essa
geração criou valores em quase todos os quadrantes da vida
pública, dos quais só os que se votaram a uma obra pessoal de
investigação ou de literatura viriam a realizar-se mais
integralmente. Os restantes pagariam caro o preço da
antecipação.
A
divulgação do materialismo dialéctico, sempre precária, fez-se
por vezes à luz dum neopositivismo que prolongava o da
Primeira República e criava, não raro, equívocos como o do
prestígio (ideológico, note-se bem) dum grande artista e
eminente sábio como Abel Salazar, o que contribuiu para o
agravamento das contradições intelectuais dessa época. Sem
sólida fundamentação científica e preparação ideológica,
ignorando em muitos casos as obras-chave dos maiores
teorizadores, as quais dificilmente encontrava ao seu alcance,
movendo-se por esquemas que por surtos voltearam dum
hemisfério para outro ao sabor de improvisações inevitáveis,
momentos houve em que um certo masoquismo político chegou a
preponderar, confundindo a luta social com a autoflagelação. A
sobrevivência moral tornou-se, para Os melhores, não já um
caminho mas um refúgio.
Não admira,
pois, que ao chegar aos anos de 50, com seu cortejo de
guerra-fria e hegemonia atómica americana, ou aos anos 60, com
o seu clima de coexistência e transformação qualitativa das
perspectivas do devir, se assistisse, em certos casos, à
inversão do que fora radicalismo pequeno-burguês para formas
subjectivistas de vencidismo, igualmente pequeno-burguesas. O
positivismo à 1910 já dera origem a uma reacção antipositiva,
em que se haviam destacado os nomes de Teixeira de Pascoaes e
de Leonardo Coimbra. O neopositivismo pseudodidáctico de 1940
- quando foi o caso - cairia por seu turno nos braços duma
ressaca chamada existencialismo.
Contudo,
assim, como houve, na primeira artítese, quem superasse esse
nível da temática lançando uma ponte entre o passado e o
futuro - e foi essa a singularidade de Raul Brandão -, assim
na segunda irá aparecer, ao lado de formas nitidamente
repressivas, quem não só revalorize a experiência anterior,
como a transmita à geração seguinte, cujo existencialismo
assumirá aspectos criadores.
Claro está
que, num plano mais profundo, a consciencialização ideológica
e, em especial, dialéctica, irá prosseguir, e com outra
qualidade, não só através de Vértice e duma
Seara
Nova
renovada, mas de obras de investigação, de divulgação e de
ensaísmo da melhor qualidade. Mas, como este bosquejo da
Geração de 40 serve de introdução apenas ao estudo da obra dum
romancista, pareceu-me que o mais importante seria explicar
como se fez a transição, no plano ideológico, do primeiro para
o segundo neo-realismo, de que adiante voltaremos a falar.
Com efeito,
o neo-realismo não aparece, como tantos outros movimentos
literários, com base numa estrutura ideológica já criada. Ao
mesmo tempo que cria literariamente, a geração cria
ideologicamente. E daí que tenda a submeter, por vezes, a
literatura à ideologia, coarctando-a. É bem elucidativo
passar os olhos, por exemplo, num extenso texto de divulgação
neo-realista que foi publicado no n.O 32 do jornal
O Globo
(1944). Aí se diz que «o neo-realismo não é uma escola
literária e artística, pelo menos no sentido vulgar que se dá
a esta palavra. [...] É a expressão artístico-literária do
novo humanismo. Portanto: a) É um movimento afirmativo da
realidade; b) É informado ideologicamente pelas concepções
teóricas do novo humanismo; c) Respeita, sem partilha, ao
pensamento de um novo grupo social que pela primeira vez tem
voz activa na arte». Como daqui se depreende, a sondagem e
transformação do real que ao neo-realismo se cometia
pressupunha um cânone ideológico. Sem dúvida que qualquer arte
implica um, pois ela é criação de homens mentalizados. Mas a
imaturidade, o esquematismo, a rigidez da incipiente ideologia
neo-realista funcionava muitas vezes como um artificioso
alter ego.
E punha a literatura ao serviço duma ética irreal, porque
inexistente ainda. Essa a razão por que pôde ser dito que a
ideologia funcionou, no primeiro neo-realismo, como um
ex
machina,
excepção feita, está claro, das obras que conseguiram
ultrapassar isso e que são, como é óbvio, as que perduram. Ou,
citando o que eu próprio escrevi, em tempos, num ensaio
intitulado Arte-possível
e Arte-necessária:
«A arte-necessária, que o renovo do homem implica, luta, em cada
época, com a arte-possível - a existente e herdada. [...] Mas,
sendo a arte um produto ideo-sensível, o homem reconstruído
pelas novas perspectivas históricas só passa a habitar a casa
nova quando nela já instalou sensações e afectos.» E isso
nunca chegou a operar-se, entre nós, no terreno colectivo da
praxis.
Como seria
de esperar, dadas as tradições, Coimbra foi um dos focos de
irradiação do pensamento juvenil de 40. Mas dizer
um e não
o
significa uma diferença profunda. A Coimbra-doutora não era já
a madre incontestada do novo, como sempre sucedera no plano
intelectual! Era um afluente, apenas, do grande rio que de mil
nascentes manava. Torneando, no rescaldo da
Presença,
em torno de figuras como as de Afonso Duarte, Lopes Graça (ao
tempo residente em Coimbra) e Miguel Torga - mas sobretudo do
primeiro, espécie de «veterano» perpétuo de todos os surtos
intelectuais coimbrãos e «padrinho» do
Novo
Cancioneiro
-, os jovens iam aglutinando os seus dispersos anseios.
Joaquim Namorado ainda hoje conserva intacto o prestígio que
colheu nesse agulhar de destinos de que foi um dos corifeus. A
casa de João José Cochofel, à Rua do Loureiro, funcionava como
tertúlia do escol. Nela se realizavam audições de música,
cavaqueiras e leituras. Chamavam-lhe o «202» de Coimbra e
intelectual consagrado que se prezasse e adregasse de passar
nas redondezas tinha de comparecer a depor sem falta. A já
citada e efémera revistinha
Altitude,
de direcção
colectiva, assumia a função de diálise entre o eco da Presença
e a gestação que a pouco e pouco se ia processando do
neo-realismo.
O
Diário de Coimbra
franqueava as portas aos que o procuravam.
Manuela Porto fazia recitais de poesia.
O
Sol Nascente,
remetido do Porto, era dobrado à mão, por turmas de
voluntários.
Os
prelos da Coimbra Editora começavam a gemer, sob a pressão dos
tempos...