Esta carta foi deixada por M.
Sacramento em envelope fechado com a indicação «Para ser aberto
quando eu morrer» e assinado o envelope com a indicação «Escrito
em 7-4-1967»
Caramulo,
Pousada de S.
Lourenço,
7 de Abril de
1967
Aos mais
adiados...
Vai sendo
tempo de escrever uma carta de despedida! A velha carcaça é já
uma ruína nítida. A somar às cicatrizes das lesões pulmonares
que tive, há bronquiectasias e zonas de enfisema do impossível
fumador que sou, as quais hão-de vir a resultar num coração
pulmonar. A tensão mínima já começa a ressentir-se disso. O rim
deita vestígios acentuados de albumina e cilindros. E o estômago
tem qualquer coisa que um destes dias hei-de averiguar... Como
não posso nem devo emagrecer excessivamente — são os próprios
colegas que mo dizem —, dado o perigo de reactivação das antigas
lesões bacilares, o peso é também um contra. E, como deixar de
fumar, nesta idade, além de ser um sacrifício inglório que me
roubaria um dos poucos apegos concretos que ainda tenho à vida,
seria levar-me a engordar ainda mais, o balanço é portanto muito
nítido. Quantos anos? Depois dos cinquenta acaba-se, estou
convencido. Mais erro, menos erro, a média deve ser essa.
Começo por
isso a ter pressa de fazer umas tantas coisas que reservei para
a fase final, quando a terrível batalha que travei na
sobrevivência contra o fascismo me deixasse, à margem desta
profissão cujas dificuldades e condicionamentos económicas,
sociais e políticos liquidaram tantos dos meus sonhos, margem
para isso. Espero roubar, sempre que possa, alguns dias à labuta
e à engrenagem diária e isolar-me, como agora fiz, para escrever
qualquer coisa de mais íntimo. Para o romance cíclico que trago
há tantos anos na cabeça, não chegará o tempo, decerto. E é
melhor assim, pois evito uma desilusão e sempre morrerei com o
arzinho angustiado de vítima dum mau destino, o que é chique,
como diria o Eça...
Antes de
tudo, impõe-se, porém, que escreva estas singelas palavras. Quem
pode afiançar-me que não vou acabar hemiplégico e afásico, como
minha Mãe? Deixa aqui, então, o que depois não poderás!
Deixar cheira
a testamento. E eu, que deixe, só tenho o corpo. Por mais que
fizesse, por mais que me fizessem, disso é que nunca consegui
ser espoliado! E, como é com ele que me avenho nas noites de
insónia e nas porfias diárias, é justo que lhe dedique, ao
menos, um pensamento em vida. E não o legue aos cães... Pois não
equivaleria a isso estar a ver-me, daqui, de barba feita a
posteriori, sapatos engraxados, fato de ver a Deus, a apresentar
as minhas despedidas, muito formalizado, de dentro da cabine -
especial? Como não tenciono ir para parte nenhuma, metam-me como
eu estiver no caixote mais barato que encontrem e devolvam-me os
restos à terra. A terra sabe lavar-se. E não há nada como um
cadáver «limpo» para marcar um limite.
Se morresse
em localidade com forno crematório, não desgostava disso, se não
fosse caro. E, por falar em caro: não sei se a terra será o mais
barato para o caso, - ó contradições do capitalismo! E, como
isto de morrer também «custa» aos outros, há que prevê-lo. A
família tem uma pirâmide egípcia em Ílhavo. Embora eu esteja
farto de conhecer prisões em vida, como nessa altura quem terá
de aguentar isso é «o outro», não me oponho a ir para lá, se for
mais económico ou mais fácil de arrumar. Não faço questões
nenhumas com a morte... Ela nega-me, e é tudo. A grande magana!
Não, o motivo
fundamental desta carta é outro. Aceitei dialogar, nestes
últimos tempos, com os católicos. Se tivesse nascido num país
protestante ou árabe ou budista, tê-lo-ia feito com esses. Pois
do que se tratava — se trata, ó morto-vivo!, ainda não acabaste!
— era, é de dialogar com os progressistas e, sobretudo, com o
povo, directa ou indirectamente. Não há-de faltar contudo —
sempre assim foi, ó alminhas santas! — quem procure fazer
sujeira com isso e aproveitar-se duma ambiguidade que surja para
me denegrir a memória. Se a minha Mulher ainda estiver viva —
ela tem sido boa companheira! Não haverá problemas com isso,
estou convencido. E o mesmo se dará se os filhos estiverem
atentos: eles têm carácter. Mas quem pode prever tudo? Não que
eu faça grande questão do meu bom nome: estou-me nas tintas para
ele, depois de morto. Mas, além dele pertencer aos meus
companheiros de jornada. E, que diabo, se passei tantos maus
bocados por eles, em vida, é porque considerei que era esse o
meu destino. E um homem tem o direito de o defender, mesmo
depois de morto!
Fica portanto
entendido que sou ateu e como ateu devo ser enterrado. Em vez dum
pano preto, ponham um paninho vermelho no caixote, se puderem. E
usem luto vermelho, se algum quiserem usar...
Mesmo que eu
ficasse pílulas ou sugestionável à hora da morte, isso não
modificaria ser esta a minha opinião responsável. É esta, por
conseguinte, a única válida.
Claro está
que gostaria de ter sido melhor homem, melhor marido e melhor
pai. A perspectiva da morte só tem de positivo fazer-nos pensar
assim. Mas o homem é um bicho complicado. E eu tenho a
consciência de que pelo menos, me bati sempre comigo mesmo para
ser melhor do que poderia ter sido. Fui amigo da família à minha
maneira: sem efusões líricas ou rodriguinhos. E, se não fiz mais
por ela, foi porque não pude, tanto no sentido social como
psicológico do verbo. A prova de que o meu desejo era ser bom
marido e bom pai está no muito que li, pensei e escrevi sobre
isso. Sejam os Filhos melhores do que eu pude — foi sempre esse
o meu sentido de missão.
Nasci e vivi
num mundo de inferno. Há dezenas de anos que sofro, na minha
carne e no meu espírito, o fascismo. Recebi dele perseguições de
toda a ordem — físicas, económicas, profissionais, intelectuais,
morais.
Mas, que não
as tivesse sofrido, o meu dever era combatê-lo. O fascismo é o
fim da pré-história do homem. E procede, por isso, como um gangster encurralado. Fiz o que pude para me libertar, e aos
outros, dele. É essa a única herança que deixo aos meus Filhos e
aos meus Companheiros. Acabem a obra! Derrubem o fascismo, se
nós não o pudermos fazer antes! Instaurem uma sociedade humana!
Promovam o socialismo, mas promovam-no cientificamente, sem
dogmatismos sectários, sem radicalismos pequeno-burgueses!
Aprendam com os erros do passado. E lembrem-se de que nós, os
mortos, iremos, nisso, ao vosso lado!
Não veremos o
que quisemos, mas quisemos o que vimos. E este querer é um
imperativo histórico. Há milhões de mortos a dizer-vos: avante!
Para a
Mulher, um abraço, simples e esquivo como eu sempre fui. Para os
Filhos, um beijo, frio e recalcado como eu sempre lhes dei. Para
todos, um afecto. Quem tinha tão pouco que dar a tantos, teve de
ser avaro... Mas morre convencido de que não guardou nada para
si. Ou de que teve, pelo menos, essa intenção.
Façam o mundo
melhor, ouviram? Não me obriguem a voltar cá!
Mário Sacramento |