José Estêvão

 
 
 

Discursos de José Estêvão

 

8 - Sobre a dotação da família real -  7/6/1843

 

 

SESSÃO DE 7 DE JUNHO DE 1843

 

(Em resposta ao ministro do reino, Costa Cabral)

 

Sr. presidente, eu rio da cólera do homem que se sente pilhado nas próprias ciladas, nas ciladas que tinha querido armar aos homens de boa fé deste parlamento! Eu rio de ser apodado de cobarde pelo célebre e notório trânsfuga da batalha do Chão da Feira, pelo homem que tem acobertado a sua cobardia sob a sua importância política, pelo homem que se tem escusado a todas as satisfações de cavalheiro, brandindo como nunca arma o Digesto, em que é tão forte como na espada!

O SR. MINISTRO DO REINO: - Ah!... Ah!... Está rico!

O ORADOR: - Sr. presidente, a corrupção chega ao ponto de se prezar com riso a honestidade, a coragem, o brio e a honra...

O SR. MINISTRO DO REINO : - Onde está a coragem, diga lá?...

O ORADOR: - Sr. presidente, a quem assim me interpela pela minha coragem, a resposta é impossível. Porque, quando eu me aprontasse a responder-lhe pelo único modo por que se responde a perguntas daquelas, S. Ex.a escondia-se atrás da sua posição oficial, pois o zelo pela própria existência há de ser o último sentimento que há de acabar naquele coração!

O SR. MINISTRO DO REINO: - É um miserável!

O ORADOR: - S. Ex.a não morrerá assim! Com S. Ex.a e impossível discutir com raciocínios, porque S. Ex.a lia-o raciocina; é impossível discutir com a ironia, porque responde com injúrias; e à injúria não sabe dar a última resposta, que é o duelo, que é uma bala, que é uma espada...

O SR. PRESIDENTE: - Posso interromper o Sr. deputado?

O ORADOR: - V. Ex.a pode interromper-me e ver interromper-me. Mas V. Ex.a deve reconhecer que é indispensável transcender os limites da discussão nesta casa, quando as provocações são tão directas, tão manifestas, tão insólitas, tão mal cabidas; quando o homem, que se diz honrado com a confiança do trono, vem falar da soberana, que representa dentro desta casa, por uma forma que repugna ao augusto daquelas funções e à decência daquele lugar. Os ministros não podem ser espadachins, não podem ser oradores de tripeça! Têm de ser homens nobres, decentes em seu porte, maneiras e linguagem. Sr. presidente, a V. Ex.a dou toda a licença para me interromper.  Nem tenho que lhe dar licença, porque V. Ex.a falia com o direito do regimento e com o direito da sua posição, da sua educação e da sua urbanidade.

O SR. PRESIDENTE: - Como o Sr. deputado reconhece qual é o meu dever, eu rogo-lhe que não saia da disposição do artigo 32.º do regimento.

O ORADOR: - Sr. presidente, um ilustre deputado, que nesta discussão não viu mais que um interesse de partido, e que, pela voz tremula com que pronunciou o seu discurso, parecia ver-me já de posse duma pasta e a expedir-lhe pelo correio da secretaria o decreto da sua demissão (e ainda que tal caso se desse, creia que nunca de minha mão a receberia) - esse deputado, Sr. presidente, com a inocência que caracteriza os poucos anos, denunciou completamente todo este trama ridículo. E o ilustre ministro que agradeça ao seu colega e amigo, o ter mostrado como é apropriadíssima esta qualificação.

Sr. presidente, já um aparte doutro deputado, que, por ser arrebatado e de paixões fortes, é muitas vezes sincero já esse aparte tinha anunciado todo este trama sórdido, cujo desfecho a câmara acaba de presenciar; já se tinha dito em apartes: «A moção de lá vem.» Sim, Sr. presidente, todas as diligências do governo tinham sido para que esta moção se levantasse deste lado da câmara... (Vozes do banco dos ministros: - É falso.) para que se apresentasse a coroa como obrigada a passar sob as forças caudinas, para que se lhe dissesse: «Ou agora, com decência e honra, para sustentar um partido, verdadeiro zelador das prerrogativas da coroa, ou depois, com violência e perigo, para dar força aos nossos e vossos inimigos!»

Sr. presidente, esta medida parece ser a medida essencial da organização das nossas finanças, parece ser a grande inspiração financeira do movimento de 27 de Janeiro! Porque logo depois dele, ouvindo o que se espalhava pela capital, nesses conventículos políticos que se formavam a todas as esquinas, eu vi, Sr. presidente, que era coisa assente e decidida obrigar a coroa a reconhecer a causa desse partido, que se apresentava como monárquico, mas em que referviam todas as paixões duma oligarquia desenfreada, duma aristocracia tonta, dum monarquista sem missão, nem fim, nem lei. Sr. presidente, então ouvi dizer muitas vezes: «A rainha! a rainha!... Havemos de fazer um corte na sua dotação. É impossível que a casa real se sustente neste luxo. Se quer governar-nos, há de sujeitar-se à pobreza do país. E se o não fizer por bem, há de fazê-lo por mal: temos forças suficientes para a obrigar.» E ainda me sussurra aos ouvidos este argumento: «Oh! pois ela (vai o mesmo pronome) cedeu generosamente diante das Cortes Constituintes, que cerceavam as suas prerrogativas e queriam destruir o trono, depôs aos pés desses repúblicos parte da sua dotação, e há de recusar um benefício desta ordem ao seu partido, ao partido que trabalha pelos interesses da monarquia! Se o fizer, se for mal aconselhada, nós lhe faremos entender os nossos conselhos violentamente.»

E acaso, depois do que se tem passado, à vista deste tão curioso incidente, não vemos nós bem clara a duplicidade deste partido, que, ao mesmo tempo que se apresenta nas salas do paço, umas vezes lisonjeiro e bajulador, outras aterrador, senhor de revoluções, dos segredos delas, com máquinas especiais para as fazer mais ou menos fortes, mais ou menos sanguinolentas, de manhã e à tarde, - vem depois para os corrilhos políticos ostentar as suas paixões anti-monárquicas, a sua independência, o seu orgulho, afirmando-se como o único capaz de organizar a administração do país, embaindo os ingénuos que com sincera fé acreditam nessa virtude especial do Sr. ministro do reino?!

Sr. presidente, que fazer nesta situação? Iríamos nós ajudar com o nosso voto um trama ridículo e imbecil, e com esse trama sustentar um governo obnóxio ao país? Iríamos nós, para satisfazer uma indicação da oposição, cometer um erro essencial de táctica? Iríamos nós comprometer os interesses do país e os deste lado da câmara, que com eles estão ligados, para tios submetermos ao rigor dos princípios? Serei eu tão fátuo, que, o deputado democrata e oposicionista, atacasse como de obrigação a dotação da coroa, para que o governo, repelindo essa agressão, ganhasse mais força nesse débil apoio áulico que o sustenta, apoio que em minha consciência entendo que é o único que lhe resta, apoio que e sempre o último a desenganar-se?!

Sr. presidente, se eu tal fizesse, cometeria um grande erro desconheceria, repito, os interesses do país e os deste lado da câmara.

Mas, Sr. presidente, a falta dum discurso não significa a falta dum voto. Eu entendo que a dotação da coroa não está ao nível dos recursos do país, que é necessário que ela seja diminuída, não por um corte feito pelo corpo legislativo, mas por meio duma mensagem, que é o meio mais decente, eficaz e constitucional. E, se unia moção nestes termos se apresentar à votação da câmara, o meu voto há de unir-se aos dos Srs. deputados que a apoiarem.

Sr. presidente, eu entendo que a coroa é um princípio essencial do sistema representativo, e que a pessoa em quem está encarnado esse princípio, é sagrada por ele e é sagrada pelo sexo. Assim não compreendo que, numa Assembleia de homens constitucionais, se venha falar das suas virtudes, da sua fidelidade e do seu amor ao país. O assumpto e árduo, e eu reputo-me pessoalmente incompetente para o tratar, e reputo a câmara legalmente incompetente para considerá-lo. E permita-me V. Ex.a que lhe lembre que o primeiro esforço a empregar para trazer esta discussão aos seus termos verdadeiramente constitucionais, é tirar dela a pessoa da rainha, porque é impossível que a nossa voz não emudeça, que os nossos braços não se abatam, quando nos lembramos que temos a discutir uma senhora, uma rainha, filha e neta de príncipes. Eu assim o entendo, porque sou de parecer que se deve respeitar tudo o que é respeitável.

 

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