José Estêvão

 
 
 

Discursos de José Estêvão

 

7 - Sobre o Bill de indemnidade - 17/1/1843

 

 

SESSÃO DE 17 DE JANEIRO DE 1843

 

(Pedido pelo gabinete Terceira-Costa Cabral para ditatoriais de 1842)

 

Sr. Presidente, venho arrastado pelo meu dever tomar parte neste debate, não para discutir, porque as discussões acabaram nesta casa, mas para livrar-me da cumplicidade nos agravos feitos ao sistema representativo.

Sr. presidente, ontem, estando ocupadas todas as cadeiras dos ministros, apresentando-se os membros do conselho com um ar de solenidade, tomando igualmente a discussão um tom solene, foram dirigidas aos Srs. ministros acusações graves, tais como a de violadores da constituição e das leis. A mudez, o silêncio foi a única resposta que tiveram acusações tão importantes.

Essa mudez, esse silêncio, são o funeral do sistema representativo. o acto material da votação é o holocausto da inteligência a um novo despotismo. Será a jornada de Vila Franca, partindo-se para ela das cadeiras do parlamento.

Sr. Presidente, eu vivo em dois mundos, tenho a consciência de duas existências. Vivo no mundo mortal da realidade, onde tenho companheiros, mundo donde desapareceu o sistema representativo, onde os ministros imolaram a lei e onde o povo foi ludibriado. Tenho a consciência desse mundo, sei que esse mundo existe. Mas, por um esforço da minha imaginação, por um impulso do meu próprio dever, ascendi ao mundo do puro sistema representativo, ressuscitei nele, nesse mundo da Carta, nesse mundo da legalidade, da publicidade, do pundonor, da honra e do brio políticos. E é desse mundo fictício que eu falo!

Sr. presidente, podem os ministros da coroa, por não terem força de resistir a uma tentação mil vezes desculpável, violar uma lei que marca os quadros duma repartição, e despachar um afilhado. Podem os ministros, temendo pela Constituição, cuja guarda lhes está confiada, em circunstâncias que não carecem de medidas extraordinárias, tomá-las todavia. Podem os ministros, levados duma paixão vil, pôr mãos sacrílegas sobre os dinheiros públicos. Tudo isto são grandes crimes, dignos de castigo. Mas pior do que isto, porque ainda é menos decoroso, é responder com a mudez ou com um riso sardónico a acusações tão graves como as que ontem se lhes fizeram!

Eu cuidei que uma discussão era um acto querido e desejado pelo governo, que era uma consequência do sistema representativo; cuidei que uma discussão era para os ministros o ensejo de darem um testemunho das suas consciências. Mas agora vejo que uma discussão é um martírio para os ministros, é um tormento de que eles nos pedem, embora com fanfarronice, que os livremos.

Sr. presidente, não é bastante ter uma maioria. É muito importante tê-la, mas é preciso agradecer-lhe os votos e não contribuir para o seu descrédito. Nos bancos dos ministros sobram talentos para sustentar as suas medidas. Cumpria-lhes sustentá-las, para não desacreditarem a sua maioria. Não o fizeram. A maioria corre perigo de perder o seu crédito  e a culpa é dos seus chefes.

Nem o comedimento dos oradores, nem a sua autoridade pessoal, nem uma certa filiação de partido, que aquele lado da câmara devia respeitar  nada disto pôde fazer quebrar o silêncio do governo! Este exemplo autoriza a violência na tribuna, justifica o fogo das paixões, porque o ministério está suficientemente endurecido para não sair, senão com incentivos desta ordem.

Eu desejava mil vezes não ter que proferir nesta câmara uma oração verrinária. E, todavia, nunca foi tão lícito, tão necessário, tão moral, o emprego duma oratória violenta, como na presente ocasião.  Ela seria um serviço feito à verdade e ao sistema representativo.

Sr. presidente, nós discutimos hoje um assunto, que está discutido, que está, pelo menos, moralmente discutido, e aprovado. Entretanto, é forçoso que cumpramos esta formalidade,  porque este debate não é senão uma formalidade desde que o ministério se recusou a discutir. A questão é complexa e deve examinar-se, não só pela razão intrínseca, mas por toda a ordem de razões que possam advir no mesmo sentido.

Pede o governo um bill de indemnidade por ter infringido a Carta. Precisa-se, pois, examinar a importância das medidas ditatoriais, a sua influência sobre o bem público, a facilidade ou a dificuldade de as fazer passar no corpo legislativo; precisa-se considerar este objecto em todas as suas diferentes relações.

Sr. Presidente, foi já aqui dito, e é um princípio fundamental consignado na Carta e em todas as constituições, que a divisão dos poderes políticos é a base do sistema representativo. Ora, Sr. presidente, quando um desses poderes se atribui mais direitos do que aqueles que lhe estão estabelecidos na Carta Constitucional, dá-se uma violação da mesma Carta, comete esse poder um abuso.  Logo o ministério abusou, violou a Carta Constitucional, segundo ele mesmo confessa, porque exerceu mais poderes do que lhe competia. O ministério tornou-se, por conseguinte, um poder de facto. E não cuidem os Srs. deputados que eu levo, na exposição destas doutrinas, vistas partidárias: eu falo geralmente de todos os poderes do estado. Se o poder legislativo absorver poderes que pertençam ao executivo, o poder legislativo tornar-se-á igualmente um poder de facto; o mesmo aconteceria quanto ao judiciário. Todas essas usurpações de direito são atentatórias da Carta Constitucional. Mas o poder que, neste caso, cometeu essa usurpação foi o executivo, que, legislando, usurpou atribuições do poder legislativo, tomou para si mais direitos do que aqueles que lhe estão consignados na lei fundamental do estado. Portanto, repito, o ministério, agente desse poder, converteu-se num poder de facto. Mas, convertido em poder de facto, o ministério pode ainda exercer sobre o poder legislativo o direito de dissolução, que lhe é dado pela Carta Constitucional. E o que pode resultar daqui? Que o poder executivo, convertido em poder de facto, se apresente a pedir um bill de indemnidade. Se a câmara lho recusa, ele dissolve-a:  dissolve, sendo um poder de facto, um poder legítimo. E, desta sorte, livra-se de que esse poder legítimo lhe tome as devidas contas. Depois, com um plano premeditado, apresenta-se aos colégios eleitorais; cansa a energia do país: e, de dissolução em dissolução, sempre poder de facto, consegue finalmente, pelo repetido uso desse direito, (direito anticonstitucional, por isso que esse governo não é verdadeiramente senão um poder de facto) uma câmara que o apoie em tudo e por tudo.

Apesar disto, nós reconhecemos a necessidade das ditaduras  mas não as desejamos. Reconhecemos a sua necessidade, porque reconhecemos que a Carta Constitucional, que devia resolver todos os problemas sociais, é para isso ineficaz.

Sr. Presidente, nas sociedades ainda bárbaras, se assim lhes posso chamar, as constituições são acanhadas, ineficazes, pelo receio de enfraquecer as instituições. Nas sociedades verdadeiramente educadas e bem constituídas, a constituição tem toda a eficácia para resolver os problemas da liberdade, da ordem e da acção do governo. Nas sociedades corrompidas, a constituição não tem força para resolver nenhum destes problemas: serve só de instrumento aos ministros  É preciso, portanto, que o governo, segundo o seu procedimento, qualifique a sociedade em que vive.

Sr. presidente, o procedimento do governo não podia desculpar-se senão por três causas: ou pela incapacidade do parlamento, ou pela impossibilidade de o reunir, ou pela necessidade inadiável de tomar aquelas medidas. Incapacidade do parlamento, não é o ministério que pode decidir dela: são os colégios eleitorais. Impossibilidade de o reunir, não a havia: ele estava reunido, e o ministério adiou-o. Resta, portanto, a necessidade urgente destas medidas  não uma necessidade vaga, indeterminada, mas uma necessidade estrita, demonstrada, com as suas causas e os seus resultados bem expressos.

Levantou-se aqui uma discussão para saber se a sessão passada era ordinária ou extraordinária. Discussão impertinente, que não vem nada para o caso. Aquela sessão não pode deixar de ser considerada ordinária, porque todos os requisitos duma sessão ordinária se deram nela: apresentaram-se os orçamentos, todas as leis promulgadas referiam-se no seu preâmbulo às «cortes gerais da nação», não houve nenhum acto anterior, que declarasse essas cortes extraordinárias. Como é, pois, possível classificar de extraordinárias essas cortes ordinárias? Argumentou-se que na resposta ao discurso do trono se disse serem essas cortes chamadas para darem um voto sobre uma questão particular. Esta declaração póstuma não basta para classificar uma sessão em ordinária ou extraordinária. Passando tal doutrina, o governo poderia, com um parágrafo da resposta ao discurso do trono, converter todas as sessões ordinárias em extraordinárias. Seria um caos! A Carta Constitucional determina que a sessão dure três meses cada ano. A razão deste preceito é óbvia. Todas as constituições modernas foram feitas para revalidar as representações antigas, que tinham deixado olvidar-se. Tanto se pode obliterar a representação nacional, deixando de a reunir um ano, como encurtando pouco a pouco o tempo dessa reunião. É este um meio paulatino de destruir uma garantia constitucional e indispensável, e de atacar o desenvolvimento que ela tem tido.

Os defensores da restauração sempre disseram que o grande movimento de 27 de Janeiro separara do quadro da nossa história contemporânea todos os tempos que medeiam da revolução de Setembro até essa data. E, nesta ordem de ideias, afirmava-se que as cortes actuais deviam reatar-se com as que foram interrompidas pela revolução de Setembro, e de que eram apenas a continuação.

Sr. presidente, parece que o apresentar-se o governo a pedir um bill de indemnidade o ressalva completamente de todos os escrúpulos constitucionais. Mas esta doutrina importaria, na ordem criminal, o absurdo de que quem confessa o crime não o comete; na ordem doutrinal, o de reduzir o corpo legislativo à triste perspectiva de se deserdar dos poderes que lhe são confiados pela Carta, e de vê-los usurpar tranquilamente por outro poder; e, na ordem constitucional, o de debilitar pouco a pouco as garantias constitucionais e convertê-las em excepção, quando elas são a regra!

A omnipotência parlamentar pôde invocar-se para todos os assuntos; mas essa omnipotência, que é uma teoria muito racional e muito lógica, daria os mais tristes resultados aplicada ao nosso país. Num país adiantado constitucionalmente, a omnipotência parlamentar não significa senão a liberdade de discussão e de votação dada a um corpo que se entende que nunca exorbitará das suas atribuições.  Mas, num país com meia educação constitucional, é preciso que a omnipotência da lei seja superior à do parlamento e à de todos os poderes do estado.

Mas a questão está reduzida a termos muito claros: não é se a sessão é ordinária, se extraordinária, se durou três meses ou dois. A própria maioria não pôs assim a questão; e eu não tratei deste objecto senão por o terem aqui trazido  A comissão não diz que o governo infringiu o artigo da Carta Constitucional que determina que as sessões sejam de três meses, que se abram em 2 de Janeiro, etc., mas que ofendeu o artigo que assigna especialmente às cortes o poder de legislar. Mas, visto o governo, como razão atenuante do seu delito, citar as vantagens das medidas que tomou, é forçoso que eu percorra, não todas essas medidas, porque nem isso cabe na discussão geral, nem mo permitem às apoucadas noções que tenho sobre os assuntos do estado, mas algumas delas, de que passo a tratar.

A razão genérica por que o governo justifica esta medida é a economia, a necessidade de ocorrer aos apuros do tesouro, de fazer cortes nas despesas públicas Vamos, portanto, examinar se nessas medidas se realizam estas promessas de economia.

Dessas economias, de que o governo tem feito tanto alarde, umas são recomendáveis, e ele devia prontamente executá-las; outras, completamente falsas; outras, frustradas; outras, adiadas sabe Deus para quando! Uma delas foi a extinção da repartição das obras militares. Efectivamente este ramo do serviço público tinha vícios importantes, e o governo entendeu que os destruía, dividindo-o por duas repartições! Entretanto foi tão bem pensada esta medida, tão bem organizada esta divisão do trabalho, que alguns dias depois o governo teve de recuar diante da sua própria obra, e de chamar em segredo o chefe da repartição extinta, pedindo-lhe que misericordiosamente continuasse na gerência daquela repartição! Não há muito tempo que esta medida se executou. Assim, estas economias foram das adiadas para quando o ministério souber fazer um projecto...

O governo organizou o exército. Dispensar-me-ei das considerações de táctica, que se podiam fazer sobre essa nova organização. Mas, Sr. presidente, este assunto é fértil em considerações; e, nesta imensa mistura de partidos hoje existente, ainda me não separei da antiga bandeira sob que me alistei, se bem. que isso possa vir a dar-se um dia, em virtude das novas alianças dos diversos grupos partidários. Sr. presidente, organizou-se o exército e fizeram-se grandes economias. A câmara sabe que este lado foi sempre acusado de estar em oposição constante ao exército, por não votar a força precisa para manter a ordem pública. E depois de tanto tempo em que a administração tem estado nas mãos dos actuais ministros, que não podem ser suspeitos a essa classe, aparece na nova organização do exército uma diminuição de duzentos e tantos homens! Que é dessa gloria do exército? Que é dessa necessidade de. manter a ordem pública? Que é dessa teima, tão criticada, com que nos opúnhamos ao desenvolvimento da força militar?...

Sr. presidente, fizeram-se muitas economias na reforma do exército; mas fizeram-se economias nas praças de pret., nos cabos, nos sargentos e nos subalternos. o que se economizou, porém, aí, foi para consumir com um maior numero de oficiais superiores, que depois foram promovidos!

Apresentou-se um novo regulamento para fardar o exército. Toda a administração militar demandava reforma; entendiam todos que deviam ser estabelecidos os conselhos militares. Os conselhos militares estabeleceram-se, mas não integralmente. Ficou, assim, a reforma militar partida: os diversos objectos do fardamento são comprados pelos conselhos militares, com excepção do pano, que é fornecido pelo arsenal do exército! E quer V. Ex.a saber em que consistem aqui as economias? Em vez de darem uma farda a um soldado de três em três anos, dão-lha de cinco em cinco anos; em vez de lhe darem uma camisa de linho, que lhe durava mais tempo, dão-lhe uma de algodão; e tiram-lhe as meias!... (Riso). Há ainda uma economia, que honraria qualquer das nossas velhas mulheres do campo, a mais prudente economizadora de sua pouca fortuna: (riso) até aqui dava-se aos soldados o pano molhado, agora dá-se-lhes sem ser molhado! De modo que, depois de todos os serviços do exército, o soldado da restauração simboliza-se num pobre homem encolhido, que não pôde mover-se porque lho não permite a sua apertada farda, e que anda completamente despalmilhado!... (Riso).

Eu não posso deixar passar este assunto sem tocar noutro ponto relativo ao ministério da guerra. Apareceu uma portaria ou ordem para os militares da 3.a secção darem o seu nome a fim de serem empregados, e tomarem-se medidas a respeito daqueles que se recusassem a aceitar esses empregos. Estas medidas reduzem-se a tirar-lhes o soldo. Ora a patente militar é uma propriedade, e uma propriedade a que estão unidos direitos, gozos e interesses; e o governo não pôde, por um acto seu, derrogar as leis em que está assente essa propriedade. Manda-se um militar, por princípios políticos, para a 3.a secção; depois o governo, pretendendo dar um testemunho de generosidade, inuma-o a que vá para tal emprego. Ele não quer. Fica sem soldo!... (Uma voz: - Não é exacto.) Eu podia trazer testemunhas à barra: ainda ontem falei com uns poucos de indivíduos que estavam debaixo desta cominação e que me perguntavam como haviam de sair de semelhante apuro. É melhor metê-los em conselho de guerra, e depois demiti-los! Por princípios políticos e por um grande alarde de tolerância, manda-se um capitão para um corpo, como agregado a uma companhia comandada por um oficial que lhe é subalterno, e o oficial subalterno continua no comando da companhia recebendo a gratificação! Sr. presidente, isto só se fazia no tempo do marechal por se terem cometido graves faltas militares!

Sr. presidente, a classe militar, classe da maior importância, classe cujos serviços são os mais necessários e que figura em todos os acontecimentos públicos, é contudo a classe mais odiada e a mais desvalida; porque essa classe tem sido entre nós um instrumento de todos os partidos, que, depois de servidos por ela, lhe cospem na cara!

A classe militar também tem tido os seus tribunos - e esses tribunos são mil vezes mais ingratos do que os tribunos populares, porque, tendo-a explorado para os seus fins, viram-lhe com facilidade as costas, e desprezam-na. Indivíduos com quem tive relações de camaradagem, não dos postos, nem das condecorações, mas dos perigos, das privações e da fome, têm-me arguido de eu me abster de tomar a palavra em assuntos militares. Eu tenho-lhes dito que era necessário que a classe militar seguisse o caminho do seu verdadeiro interesse, que desprezasse sugestões de todos os partidos, que afastasse de si todos aqueles que nela quisessem introduzir a cizânia da política, e que se apresentasse no parlamento como classe do estado com direitos, e que nele os fizesse valer. Quando a classe militar se apresentasse assim, (a última paixão que em mim há de morrer é a paixão da glória militar!...) eu daria de mão, não a todos os meus princípios políticos, mas a todas as minhas ligações políticas, e por algum tempo havia de ser só militar, e advogar essa causa. Enquanto isto não fizer, a classe militar há de ser sempre escarnecida e ludibriada pelos seus tribunos, que são, repito, mil vezes mais ingratos que os tribunos populares.

Sr. presidente, o ministério dissolveu as guardas de segurança, porque estava obrigado a dissolvê-las; mas dissolveu-as tendo-as reunidas mais tempo do que devia, gastando durante esse tempo somas que não estavam votadas para elas. De modo que o governo, ao mesmo tempo que alardeia uma economia, acusa um desperdício; ao mesmo tempo que apresenta um testemunho do seu zelo pelo bom regimen dos serviços do estado, pratica uma infracção das leis!... Mas, Sr. presidente, as guardas de segurança foram conservadas, como toda a câmara sabe, para auxiliarem as novas  e bárbaras teorias eleitorais, proclamadas pelo Sr. ministro do reino; e depois que as guardas de segurança espancaram os cidadãos, arrombaram as urnas, tiraram os criminosos dentre as mãos da justiça, então é que o Sr. ministro do reino pôde entrar no caminho das leis e fazer uma economia!

A economia, porém, que mais ilustra, que dá um nome histórico ao Sr. ministro do reino foi uma executada na academia do Porto, onde S. Ex.a, pelo seu espírito verdadeiramente reformador, pela sua cabeça essencialmente organizadora, teve o arrojo de deixar de dar um conto de réis porque esse conto de réis era aplicado... a obras já feitas e utensílios já comprados!... Sr. presidente, por este modo podemos pôr uma legenda em cada uma das obras que se fizerem no nosso país, durante a administração dos diversos ministérios, em que se diga: «Esta obra foi feita pelo muito económico e ilustre ministro Tal, que se atreveu a não gastar mais dinheiro com ela, depois que se acabou.» (Riso.) Ao menos nesta obra especial, era necessária esta legenda para ficar gravado para a posteridade o nome S. Ex.a.

Sr. presidente, o governo reformou as contadorias. Todo o país reconhecia que o sistema das contadorias era defeituoso. A sua reforma era um voto popular. E o governo vasculhando numa pasta velha, que encontrou na secretaria da fazenda, achou lá um projecto, e publicou-o para ver se assim alcançava alguma popularidade. O voto do país sobre as contadorias era unânime: sabia-se que o país achava inconvenientes no sistema das contadorias, mas era preciso examinar em que consistiam esses inconvenientes. O ministério, porém, obrou, num assunto de tanta gravidade, da maneira mais imprevidente.

Sr. presidente, nós destruímos todas as instituições antigas e plantamos outras cujo modelo fomos buscar aos países estrangeiros.  Mas, desgraçadamente as cabeças do plantadores não tinham o menor conhecimento do estado anterior ao das suas inovações. Era já difícil achar uma cabeça de certo número de anos, que conhecesse praticamente todos os métodos e processos do regimen antigo e que tivesse aprendido todos os princípios e métodos das reformas modernas. Só desta cabeça é que sairia uma reforma útil; mas encontrai-a não era fácil. Os velhos desembargadores, uns pela sua idade, outros por aferro aos seus princípios políticos, julgam que é para eles um desaire o comunicar com os inovadores do seu país. (E, a falar a verdade, estes também não têm dado de si testemunhos e provas, que os tornem dignos de recomendação...)  Daqui resulta que todas as inovações são feitas por quem não conhece o estado antigo da nossa administração; e como estas inovações se não tem executado e cumprido, como se não tem podido normalizar um regimen pelos novos princípios implantados, apela-se outra vez para o sistema antigo. Mas essas esperanças serão, do mesmo modo, frustradas, porque quem não sabe aplicar os princípios modernos muito menos sabe aplicar os princípios antigos.

Sr. presidente, há ainda aqui um engano que a câmara deve pesar. Os elementos do regimen antigo extinguiram-se. Já não há esse elemento de ordem, a que os Srs. deputados se querem acolher; já não há esse espírito de obediência; já, na memória do povo, estão olvidados todos esses velhos processos de administração. Os Srs. deputados, com os seus princípios de retrogradação, estão simplesmente a invocar um fantasma, sem vida e sem força!

Sr. presidente, as reformas não deviam ser feitas senão à luz do passado e à luz do espírito moderno, combinadas uma com a outra. A reforma, de que o país carece, tem de ser o resultado desta combinação.

Nos outros países, sempre que se trata duma questão dalguma gravidade, apesar do grande desenvolvimento da instrução e da cultura literária, apesar da extensão da literatura a todos os assuntos de administração e de política, apesar de lá haver imprensa com ideias, nos outros países, com parlamentos cheios de especialistas, entende-se que toda esta conversão de luzes para os assuntos públicos não é ainda bastante, e por meio de inquéritos vão-se procurar as indicações da experiência e dos factos, o testemunho de homens práticos, de cabeça bem organizada, mesmo desses que nós chamamos espertalhões da aldeia. Colhem-se todos esses testemunhos, organizam-se todos esses dados - e faz-se uma lei. Alguém  há aí que se riu, e que depois de ter cursado tantas academias, depois de ter lido tantos livros, daria tudo para ter aquela razão clara, que às vezes se acha nos espertalhões da aldeia! Sr. presidente, como escritor, o Sr. deputado não teria levado a palma a um destes homens de lógica natural...

Digo, pois, Sr. presidente, que para bem regularizar as contadorias, é necessário, assim Colho noutros pontos de administração, proceder a um inquérito de boa fé, que abranja o assunto em todas as suas relações, que ouça todos os práticos e estude os métodos antigos e modernos. Mas o governo meteu-se num charco de ciência, dentro das secretárias, e deu solução a todos estes problemas com  um  velho trabalho que lá achou. Isto, Sr. presidente, com dois dos mais exímios financeiros que temos tido no nosso país!!

A reforma das contadorias, segundo os elementos colhidos e os cálculos feitos. representa, algarismo por algarismo, uma economia de 20 contos de réis. Mas, dessa economia, é preciso tirarmos as despesas de expediente, e as despesas, muito consideráveis, de grande numero de empregados. Sr. presidente, é preciso que a câmara saiba, e os Srs. administradores gerais que se acham presentes com certeza o sabem, que sempre houve junto às suas repartições uma repartição especial, que tratava de liquidar as dívidas antigas. Aqui, em Lisboa, creio que havia, nessa repartição, só dois empregados: no meu distrito julgo, porém, que havia uns cinco ou seis. Ora. Sr. presidente, passando agora este serviço para as administrações gerais, nada economiza a fazenda, nem há eliminação de qualquer lugar. Tem de fazer-se aí a recepção e escrituração de todos os impostos, e é impossível que isto se execute com três empregados.

Sr. presidente, esta reforma não tem carácter: não é um sistema desenvolvido de crédito. que é o que são as contadoras, ainda que nunca realizassem o seu verdadeiro espírito, nem é um sistema de confiança e de intervenção do governo municipal, como era o sistema antigo. Não é senão um pleonasmo do sistema directo do governo, que já estava estabelecido. Pois que é o delegado do tesouro? Que era o recebedor? Não era um empregado do tesouro? Quem o nomeava? Quem o demitia? o governo. Cria-se um delegado do tesouro agora. Como? Quais são as atribuições dele? É um instrutor de escrituração?!... Ora, Sr. presidente! Pois o governo não podia escolher contadores, que soubessem escrituração, que dispensassem esta entidade? o resultado disto, Sr. presidente, é que se aglomeram e confundem a acção de fiscalizar, a acção de arrecadar, a acção de lançar   é que tudo se confunde, e não temos ordem, e não temos finanças!

Sr. presidente, os contadores de fazenda prestavam fiança perante o tesouro público. Quer a câmara saber em quanto, segundo me consta, estão empenhadas as recebedorias gerais? Em 300 contos de réis! Mas por este sistema de recepção. em lugar de dezassete contadores teremos quatrocentos e treze, porque todos os recebedores de concelho vêm a ser nomeados pelo governo e ficam debaixo da imediata fiscalização do tesouro. E, se estes delapidarem na proporção do que delapidaram os outros, a quantos contos de réis montará isso? Salvo se houver nisto uma influencia de localidade, que faça com que um homem na cabeça do distrito roube, e na do concelho não roube...

Sr. presidente, os meios de fiscalização, segundo o decreto das contadorias, nunca foram empregados. Existia o que se chama o direito de controle, havia todos esses meios rigorosamente estabelecidos. Mas nunca se executaram, absolutamente nunca! E com o mesmo governo, e com os mesmos princípios, porque não há de haver a mesma relaxação, porque não hão de redobrar os inconvenientes da má execução da lei, que desde o seu princípio foi má?...

Sr. presidente, as economias!... Economias!... E fala o governo em economias!! Pois o que se aproveitará dessas economias todas? o que se aproveitará disto? A maior parte destes decretos dizem: «Tendo considerado, etc. (as palavras tabelioas do costume...) o governo determina que se faça a supressão de tal e tal emprego. «E depois: «Terá plena execução esta medida quando tiverem falecido os actuais funcionários, os quais ficam percebendo os mesmos ordenados». Oh! Sr. presidente, S. Ex.a parece que acredita na eternidade do seu poder, que supõe ter o privilegio de governar sempre este país! Pois julgará S. Ex.a que os seus quadros hão de ser sempre respeitados? Pode conceber-se que nunca haverá um ministério, tão infractor das leis como este, que, como ele, há de deixar de respeitar os quadros? Para que fazer leis, para que impor quadros se é o governo mesmo que infringe as próprias regras, se é ele mesmo que nomeia empregados, que não está autorizado a nomear?! Pois não havia quadro na alfândega? E o Sr. ministro da fazenda não nomeou para lá um eleitor? um eleitor, que esta é a primeira qualidade...

O SR. MINISTRO DA FAZENDA: - Para qual alfândega?

O ORADOR: - Para a de S. Martinho.

O SR. MINISTRO DA FAZENDA: - É verdade. (Riso.)

O ORADOR: - Pois há quadros, e o Sr. ministro da guerra nomeia tenente-rei para a praça de S. Julião?! Sr. presidente, a lei classificou as praças de guerra e o estado-maior que pertence a cada uma delas. Depois vieram duas portarias que elevaram à categoria de praça de primeira classe a Serra do Pilar, que segundo ouvi dizer esta. arrendada, (Riso) e a torre de S. Julião. Mas, Sr. presidente, nos decretos que elevaram essas praças àquela categoria, designou se o estado maior que deviam ter - e não está lá tenente-rei!

É que o governo há de infringir quantas leis quiser e todas as leis que tiver feito, porque a sua missão, os seus intentos, os seus interesses consistem em não respeitar regra nenhuma, nem escrita, nem tradicional.

Sr. presidente, o governo fala em economias! Economias!! Que economias, pobre e lamentável governo?! Onde se acham os oráculos do crédito público, que depois de por tanto tempo terem anunciado a este país uma aurora de prosperidade, viram-se, pela série dos acontecimentos, condenados a assistir ao ocaso das nossas finanças?... Crédito público, economias - onde está isso?! Em andar o governo batendo a todas as portas, abaixando-se à mais ínfima classe de negociadores, arrombando as caixas das repartições públicas, pondo outra vez em circulação papéis que estavam em monte para queimar, tirando, com grande usura, dinheiro em pequenas quantias, em grandes quantias - e isto para quê, Sr. presidente? para sustentar a maravilhosa e nunca vista operação dos exchequer-bills, que tem dado ao governo um crédito de dias, porque ninguém tem um papelinho daqueles em seu poder, nem uma hora, nem um minuto! (Riso). E diz-se que esta operação é excelente, é incomparável, mas que a oposição a não deixa vingar porque a desacredita!

O crédito, Sr. presidente, é um facto, e não se restabelece com artigos de jornais nem com declamações. O crédito é a confiança. Mas a desconfiança é o descrédito: e a desconfiança tanto examina o estado dos particulares como a situação do governo. E ninguém será tolo que confie em situações incertas, porque todos prezam o bem dos seus interesses.

Sr. presidente, que crédito maravilhoso, que maravilhosa troca de bilhetes se está realizando nas repartições! Na junção é possível deixar de reconhecer a insuficiência dos actos do ministério neste assunto, como quer que ele seja encarado.

Não é possível deixar de reconhecer a insuficiência dos actos do ministério neste assunto, como quer que ele seja encarado.

O governo denunciou as suas circunstâncias económicas em documentos oficiais. Fizeram-se dois orçamentos depois que este ministério está no poder: num achamos um déficit de 1.500 contos, e no outro, que há poucos dias nos apresentou o Sr. ministro da fazenda, aparece um déficit muito maior. Donde vem isto? Aumentaram-se as despesas? Não pôde ser, visto que os ministros fizeram economias. Diminuiu a receita? Quais foram então as causas dessa diminuição? É preciso que o país saiba o estado das suas forças receptivas é preciso que o país saiba o resultado das leis que se votaram no parlamento, com esperança de acrescentar as suas rendas. É indispensável. Os orçamentos dão um déficit: ora esse déficit provém ou de maior despesa, o que não é compatível com as protestações de economias, que os ministros têm feito, e com os trabalhos que, neste sentido, devem ter realizado, ou da diminuição da receita, e a diminuição da receita em um país é um caso económico de tal importância, que demanda uma explicação séria e categórica da parte do governo.

A questão da fazenda, Sr. presidente, é hoje muito clara. Já não há mistérios neste assunto: os factos são conhecidos, as contas têm-se publicado. Acabou-se o seu breve de interdição! A questão de fazenda reduz-se a termos muito simples. Eram precisos mil e tantos contos de impostos ou de economias. Mil e tantos contos de impostos é um impossível para todos os partidos. (Apoiados). Mil e tantos contos de economias é um impossível para este governo. (Riso). A questão da fazenda é isto; não há operações mistas nem simples, não há contracto com companhias, não há empréstimos em Londres. A este respeito, posso talvez comparar os nossos financeiros com os militares teóricos a quem se confiam forças em campanha, que, deixando relaxar a disciplina, se ocupam a fazer grandes planos e desenvolver sabias teorias, e, quando chega o momento do combate, ou fogem eles, ou deixam fugir os soldados, ou fogem todos! Eis aqui os nossos financeiros! Em finanças, o crédito estriba-se na emissão dos valores: eles destruíram os valores: e agora começam a dar-nos lições de táctica. Sr. presidente, hão de ser batidos! Fugir, não fogem, porque o quartel general sempre tem uma boa bagagem...

O ministério quer regularizar as finanças.  Não pôde! Se o chegasse a conseguir, ver-se-ia num país que não conhecia; ficaria admirado da sua própria obra; renegaria os seus próprios esforços; e retomava o caminho da perdição! Para um governo realmente ordeiro, para um governo que sinceramente quer ordem, nem há na verdade maior desejo do que estabelecer a regularidade nas finanças. Sem ela não é possível governar-se. Mas para um governo que se quer sustentar à custa de todos os princípios, é preciso não haver regra nem lei que o impeçam de satisfazer as necessidades da sua política. Se o governo organizasse as finanças, era um governo morto. Porque este ministério fora da desordem - é o peixe fora da água.

Sr. presidente, entretanto o ministério tem estado a fazer leis, e quem sabe o código de leis que ele terá feito?... Tem-nas feito de todos os feitios, magras e gordas, gazetães e não gazetães, (porque algumas há que ainda estão nas secretarias e não foram publicadas); enfim, uma imensa variedade de leis. E as dimensões colossais desta obra concordam com a sua solidez. Isto é uma ditadura, grande, enorme pelas suas próprias obras, mas pigmeia nos seus resultados. Se esta ditadura fosse para alguma coisa, se ela mudasse as condições do país, resultando dessa mudança o livrá-lo dos embaraços que lhe estão iminentes - ainda teria desculpa. Mas este ministério, sempre forte, está a cada momento a dar provas da sua fraqueza, a sair para fora da lei, a saltar por cima de todos os princípios. Para algum grande fim de utilidade pública, ainda mesmo que fosse para algum grande crime, tinha desculpa. Mas nem isso!

O que deixo dito, Sr. presidente, exprime a situação do ministério com referencia às suas próprias leis. Mas estas considerações não serão bastantes para decidir a consciência do país a reconhecer se se obra com justiça ou injustiça, quando se nega ou se concede o bill que o ministério pede. Por isso carece-se de examinar o assunto debaixo doutros pontos de vista.

O ministério, com relação à sua origem, é essencialmente anti-parlamentar; como elemento de ordem, é contraproducente; como zelador dos nossos interesses económicos, é inteiramente injusto; como instrumento de gestão administrativa, é completamente nulo como promotor dos interesses duma classe ou dum partido, é acanhado; e, finalmente, como representante duma revolução, representa todos os seus males, sem representar o seu princípio, que é o que o país deseja, - e que é a Carta Constitucional.

Sr. presidente, não é numa questão democrática, não é numa questão de partido, que está a origem do ministério o ministério tem partido, por ser sustentado pela sua maioria. Mas não tem partido para ser ministério da direita, da esquerda, da soberana, do país. Qual foi a origem deste ministério? A origem deste ministério foi um acto sub-reptício. Aberto o parlamento, deu-se uma crise ministerial. Nas crises ministeriais fecha-se o parlamento, não para o ministério deixar de ouvir os conselhos da sua maioria, mas para se livrar das impertinências da oposição. Mas o ministério actual fechou o parlamento para se livrar tanto das importunações da oposição como das da sua maioria. Essa maioria, depois de tantos serviços a este ministério, depois de tantas provas de confiança, não mereceu ser ouvida numa recomposição ministerial!

Pode a maioria duma câmara ter renegado dos princípios de moralidade política, que lhe são necessários. Mas, boa ou má, com esses princípios ou sem eles, é um facto que a maioria é um instrumento deste sistema e que não pôde deixar de considerar-se a sua acção nestas questões do regimen constitucional. Temos, portanto, que este governo é um governo anti-parlamentar.

O governo, como promotor dos interesses duma classe é injusto; como instrumento administrativo, nem se pôde conceber, porque quem legisla não administra: como zelador dos interesses económicos, pode ter feito muitos serviços ao país, pôde ser credor da gratidão pública, mas é de lamentar que não tenha publicado os actos por que julga merecer esse reconhecimento, quando tem publicado os que lhe tem merecido a animadversão geral.

É sabido que o ministério negociou, ou está negociando, um tratado comercial com a Inglaterra. Este facto é conhecido tanto pela imprensa do país, como pela de fora. Diz-se que o governo tem sido apertado pelas exigências inglesas para fazer um tratado segundo as suas vistas especiais, e que a elas tem sido oposta por parte do governo, e especialmente do negociador, uma certa resistência. Se essa resistência fosse sincera, como se devia supor, qual era o primeiro dever dum governo que tivesse tenção firme de resistir a essas exigências, pugnando assim pelos interesses do país? Era fortificar-se dentro do mesmo país, era cercar-se do apoio desses mesmos interesses contra os interesses estrangeiros. Devia expedir as suas ordens para este caso, como as expediu para o das contadorias, mas debaixo doutro ponto de vista. Devia promover um inquérito geral a todas as indústrias que tivessem relação com essas negociações, esforçar-se por fazer uma estatística exacta dos valores que eram sacrificados; mostrar, enfim, a importância do holocausto que uma potência estrangeira exige de nós, para ver se assim lhe desarmava o braço, para ver se ela se detinha ao descarregar-nos um golpe tão profundo. Mas o governo não fez isto. Diz que quer resistir; e apresenta-se para opor essa resistência apenas armado da sua força e da sua vontade. Ainda não houve governo em parte alguma e em quadra alguma da civilização, ainda não houve partido assaz forte, que, só com a sua vontade, com a sua influencia própria, pudesse, em assuntos desta gravidade, resistir seriamente. Mas o nosso governo apresenta-se só, como um grande atleta, para resistir e, depois de vencido, há de fazer grande alarde, dizendo que quis resistir! E o país sem tomar, neste assunto, a posição que devia!...

Sr. presidente, isto não tem nada com a Carta Constitucional, com a democracia, com a aristocracia, com o trono, com o 27 de janeiro, com o 9 de Setembro nem com coisa alguma! Em toda a parte onde há homens inteligentes e independentes a governar, e homens inteligentes e independentes a serem governados, se reconhece isto.

Eu não sei como o governo entende a nossa questão económica. Não é ocasião oportuna para a tratar como ela deve ser tratada. Mas sei que, se o governo ceder de barato os interesses de toda a nossa indústria, as esperanças presumidas do maior consumo dum produto que abunda no nosso país hão de ser frustradas completamente; o consumo há de ser o mesmo, e as indústrias nascentes hão de ser sacrificadas. Eu emprazo, não o ministro, mas o homem de ciência, a que negue esta profecia!

Sr. presidente, eu sei que uma grande nação faz guerra exterminadora às outras, naquilo que é o património mais respeitável do homem o trabalho; e sei que nós, nesse campo de batalha, não podemos oferecer-lhe grande resistência. Mas podemos, sim, sustentar e defender alguns dos nossos interesses, ressalvar mesmo a maioria deles. Não é possível, porém, Sr. Presidente, obrigar uma potência orgulhosa e poderosa a fazer concessões desta ordem, sem que o governo se lhe apresente com mais alguma coisa do que a sua pessoa, a sua ciência e a sua importância.

Se querem governar, é preciso conhecerem o país, tomá-lo como ele é. o país, em assuntos desta natureza, não está devidamente instruído. Se ele fosse previdente, devia ter organizado associações, devia ter enchido de clamores os gabinetes dos ministros, devia ter gasto dinheiro em sua defesa e fazer sentir, por todas as formas, a força dos seus interesses. Mas não acontece assim. Uns escondem-se porque temem o governo; outros escondem-se porque não querem desgostai-o; outros escondem-se porque se escondem de tudo o que cheira a política; outros escondem-se porque são desleixados. E todos se sacrificam a si próprios!

Sr. presidente, o governo entende que, sacrificando o património de todas as províncias, salva o património duma, que é o Douro. O Douro está desgraçado, e não muda de situação. Convençam-se disto os seus deputados. Não muda, porque não pôde mudar. A sua situação é filha duma revolução comercial, que se não destrói com leis, porque leis não fazem que um país gaste dum género mais do que pôde, e com leis não se faz que a produção diminua, isto é exacto, o que sucede no Douro não é privativo dele; em toda a parte onde há produtos daquela espécie, acontece o mesmo. Em França, o ano passado, foram cobrar a uma província vinhateira os competentes tributos, e um respeitável proprietário mandou umas poucas de pipas de vinho para pagar a sua contribuição. Suscitou-se uma questão de direito administrativo tratada pelos jornais, a fim de saber-se se um produtor, que não podia vender os seus géneros, podia pagar o imposto com os mesmos géneros. Eis o que acontece em França. E por que privilegio há de ser o Douro isento desta mesma crise, se é uma condição essencial de todas as crises comerciais propagarem-se a todos os países de produção homogénea? De mais, o país seria muito pobre, ajuda que o Douro fosse muito rico. o lavrador do Douro tem uma boa colheita e faz uma boa venda: vai para o Porto, veste-se muito bem, aumenta a sua baixela com mais peças de prata, compra um cavalo que lá mesmo estraga... Daí a três anos, vende pior o vinho - e desfaz-se de tudo aquilo. E eis aqui a circulação produtiva de toda a riqueza do Douro.  Com isto não quero ofender essa província; mas o Douro, não mudando de hábitos, podia ser um Potosi, e o resto do país muito pobre.

A sessão passada, Sr. presidente, fechou-se por um discurso histórico, histórico pela contradição de doutrinas que nele se sustentaram e pela desenvoltura com que foram apresentadas. Na sessão passada sustentou-se que sua majestade, aceitando a Carta Constitucional, não tinha direito de promulgar o decreto que convertia as cortes em constituintes e que lhes dava poderes para fazer essas reformas. Sustentou-se que esse decreto era absurdo, contrario à Carta Constitucional, porque sua majestade não podia legislar.

Sr. presidente, mas qual Carta?  A Carta do quartel-general de Coimbra, a Carta do Sr. ministro do reino, Carta tão problemática que desapareceria com mais dois dias de resistência, a Carta do Palácio das Necessidades, a Carta de 11 de Fevereiro, a Carta dada espontaneamente por sua majestade? Ou a Carta que vigorava por um princípio de outorga e dava todo o direito para estabelecer as condições dessa outorga?... Pois tantos escrúpulos de soberania para o doador da Carta, e tão pouca consideração para a soberana?!

Sr. presidente, aquele lado da câmara sustentou esta teoria: «Temos a escolher: ou plebiscito, sem exame, das turbas revolucionadas ou a outorga racional no palácio dos nossos reis. «Qual de nós hesitará na escolha? Eu não quero tal democracia, eu sou realista nestas condições: não hesito!

Esta opinião, que aqui se sustentou, Sr. presidente, ainda que fosse constitucional, era eminentemente ingrata: porque os Srs. deputados sabem que a Carta não seria lei do país, se esse decreto que a outorgou com condições não fosse promulgado pela soberana. Os Srs. deputados podem dizer o que quiserem; podem dizer que tinham força para subjugar o mundo inteiro! Eu acreditei que os Srs. deputados seriam os primeiros a rectificar a sua doutrina, a metê-la em princípios mais ortodoxos. Mas como eles persistem na sua democracia - basta! Aceito a revalidação que fazem. O que eu não admito, porém, é uma alforria dada por um governo irracional: e é governo irracional aquele que se estabelece entre leis misteriosas, sem se declarar que ministério foi que as fez.

Sr. presidente, a soberana escreveu num decreto, como um acto seu, um código de liberdade e de razão. As mãos dum bárbaro apagaram essas palavras e escreveram sobre elas outras de escravidão e aviltamento! Entretanto, Sr. presidente, em tempo conveniente se fará a reforma legal, justa e regular da Carta. (Apoiados). Os reagentes para fazer aparecer as letras verdadeiras desse código são as necessidades do século, é a acção do espírito público, é o gemo e a vontade do país, que perdoa muitas vezes aos seus adversários, mas não esquece as suas injúrias! E posso eu votar um bill de indemnidade a um governo que adopta tais doutrinas, que as comunga na imprensa e na tribuna? Nunca, absolutamente nunca!

Uma revolução pode ser um desastre; mas depois de consolidada, de reconhecida - é um facto. Continuar, porém, uma revolução sem necessidade, isso é que não merece desculpa alguma. Ora o que o governo fez foi continuar a revolução até onde pôde, sustentando no país, em vez dos delegados da autoridade, verdadeiros Verres usurpando todos os poderes do estado. E não se cuide que o governo, por sua vontade, deixou de vingar-se atrozmente dos seus inimigos. Foi porque não pode; foi porque a revolução tinha poucas raízes; foi porque ela não penetrara nas massas. Apagou-se essa pequena faísca das paixões revolucionarias, e o governo achou-se sem esse auxílio para satisfazer as suas vinganças.

No tempo da usurpação, Sr. presidente, havia um governo ilegítimo e um sistema revolucionário. Mas eram duas coisas distintas. As revoluções desse tempo não empregavam os comissários da autoridade... Hoje estas duas coisas estão unidas: há um sistema revolucionário e não há um governo legítimo.

Pois, Sr. presidente, tendo-se cometido crimes tão atrozes, tantas tiranias, tantas violências, ainda se nos não dá notícia do estado em que se encontram os processos dos contrabandistas de votos, dos roubadores de urnas, dos espancadores políticos?! Pois actos tão públicos, é possível que não tivessem testemunhas?! No tempo da revolução francesa, cujas maravilhas os nossos estadistas olham com saudade, sem, felizmente, as poderem imitar, quando as suas autoridades oprimiam cruelmente uma província, as queixas públicas chegavam até esse poder sanguinário - e eram ouvidas. Tomavam-se providências e muitas vezes esses delegados do governo revolucionário eram retirados dos seus postos. Agradecia-se aos distintos patriotas os bons serviços que tinham prestado, matando e roubando: mas ao mesmo tempo demitiam-se. Entretanto o governo aqui, vê praticar toda a dualidade de excessos, e ainda não houve um castigo, nem um processo!

Nós temos feito muitas revoluções, e não queremos que se façam mais! Pela minha parte, declaro que não farei mais nenhuma. Eu sou o mais cartista dos homens; aderi completamente à Carta; sou incapaz de conspirar contra ela. Sr. presidente, temos andado numa porfia de revoluções. Os Srs. deputados fizeram a última. Satisfizeram assim a sua maior ambição. A memória de D. Pedro está vingada: a Carta rege o país - e, por minha vontade, há de regê-lo eternamente. Alguém havia de quebrar este círculo vicioso: quebramo-lo nos, e parece-me que não ficamos desonrados por isso. Nós temos feito muitas revoluções, mas todas pequenas. Bom era que não tivéssemos feito nenhuma, porque o resultado tem sido desmoralizador. Ninguém tem aprendido a governar. porque não tem havido ensejo para isso. Todos têm feito as suas revoluções, e todos têm ficado, depois delas, tão pequenos como eram.

Este ministério tem usado de todos os poderes do governo, e, entretanto, o país está no mesmo estado. A consequência é que ou o país é bárbaro ou o governo herético. O governo não há de prezar tanto o seu crédito que queira lançar esta desonra sobre o país...

Sr. presidente, eu desconfio do ministério porque entendo que não dá garantias à Carta. Eu vejo aí representado um princípio de ultra-transacção com o partido absolutista e vejo representado o princípio revolucionário  ambos ligados, unidos, concatenados. E não é desarrazoado temer que desta ligação resultem graves males.

Eu, Sr. presidente, sempre professei princípios duma grande tolerância política; mas entendo que, num sistema dinástico, devem estes princípios sofrer uma única excepção. Uma dinastia nova não chama ao seu conselho homens que seguem o partido doutra dinastia. Todos os homens importantes de França podem hoje ser ministros; mas certamente Mr. de Chateaubriand e Mr. de Neuville nunca serão ministros de Luís Filipe.

O princípio revolucionário, representado pelo Sr. ministro do reino, é o mais próprio para desconfiarmos do ministério. S. Ex.a tem dito muitas vezes que se risquem da sua história todas as páginas do seu passado - e o seu passado, todavia, vem até à hora em que formula tal exigência!... Sr. presidente, em face de tais princípios, a coerência é uma ficção, a lógica é um contraceno, a confiança seria uma estultícia! o Sr. ministro tem declarado mil vezes: «Vós examinais os meus precedentes. Então as minhas teorias eram outras: eu sou um homem essencialmente previdente, que mudo de conselho de hora a hora. Vós increpais-me pelo que eu fiz ontem. Ontem era passado: tomem conta dos meus actos de hoje em diante». Estabelecido este princípio, que é da responsabilidade?

Sr. presidente, há ainda um elemento de confiança no ministério. Eu ainda a tenho nele - e há muita gente que igualmente a tem... Esse elemento de confiança é o Sr. ministro da guerra. (Dos outros Srs. ministros não me ocupo, não pelos seus talentos, mas pela sua situação governativa). Seria uma grande nódoa na nossa história que o capitão da Carta, que uma individualidade favorecida com uma consideração talvez ultra-condescendente da parte do país e cercado de honras pela soberana, seria uma grande nódoa, digo, que depois do sacrifício das suas antigas amizades, sacrifício de camaradagem e de glória, e sacrifício tanto maior quanto essa camaradagem e essa glória estão de tal maneira ligadas que se não podem dividir; seria lamentável, na verdade, que dito o Sr. ministro da guerra, não digo conspirasse, mas deixasse conspirar contra a Carta!... Mas, Sr. presidente, o ministério da guerra, (permita-se-me que o diga, porque é um facto) apesar da sua importância, tem sido sempre subordinado a um quidam superior aos homens e às coisas, a um quidam que tem operado a organização e dissolução dos ministérios.

Sr. presidente, todos sabemos que, por ocasião da crise de que saiu o ministério de 9 de junho, a acusação principal contra o governo anterior tinha por alvo o ministro da guerra: e disse-se que o ministro fora expulso do poder como delapidador da fazenda pública. Mas a verdadeira cansa de tal facto foi o triunfo desse quidam, cujas pretensões encontraram resistência no ministro da guerra. Não digo que alguns dos membros desse gabinete, que actualmente se acham neste lado da câmara, fossem cúmplices nesse plano; mas, Sr. presidente, a despeito deles, o facto realizou-se. O ministério da guerra, apesar da sua força e importância, está subordinado a esse quidam oculto que nos rege!...

O SR. RODRIGO DA FONSECA MAGALHÃES: - Eu peço a palavra para uma explicação sobre uma expressão do nobre deputado.

O ORADOR: - Eu dou a explicação, e agradeço ao ilustre deputado o facultar-me ocasião de a dar. Eu disse que a sabida do Sr. conde do Bonfim do ministério, pelos resultados que depois tivera, pareceu que tinha um caracter essencialmente político e que, todavia, se imputou esse facto a motivos administrativos. Mas eu estou persuadido que os motivos da sua sabida não foram administrativos, mas, sim políticos.

Sr. presidente, todos os governos têm um princípio no qual se baseia a sua influência sobre o país. Nós nunca tivemos senão ou governos essencialmente populares, ou governos que tiveram alguma coisa de popular. Mas qual é a popularidade deste governo? Funda ele a sua base sobre a conservação da independência do país? Funda-a sobre os interesses da classe média? Robustece-se apoiando-se na aristocracia? Qual é o princípio vital deste governo? Sr. presidente, as consequências deste sistema serão forçosamente o absolutismo. Eu não faço esta profecia, nem com o desejo de suscitar temores à câmara, porque a sua força é superior a temores levantados por mim, nem com o desejo de agravar a situação dos ministros. Faço-a por descargo de minha consciência, como a última conversa dum membro duma família, que comunga certos princípios, e que dela se despede!

Um princípio desarmado não pode triunfar. Ora como está armado o princípio liberal no nosso país? O princípio liberal não se sustenta senão pela força das convicções e pela energia da nação: essa força de convicções não existe, e a energia da nação não é tão grande que o possa sustentar. A vontade e os desígnios do poder são claros e manifestos. o princípio liberal, portanto, há de morrer neste país - porque está desarmado. Eu sei que se me vai responder, com rasgos de eloquência mal cabidos, que eu não faço justiça ao país, que eu insulto o país. Mas eu, Sr. presidente, afirmo isto como uma convicção de que estou absolutamente possuído. Esta parte do meu discurso não é mais do que uma expansão de franqueza!

A passagem da liberdade para o despotismo é sempre paulatina. Não pode deixar de o ser. Os governos conspiradores ora adoptam um princípio, ora outro, e em cada um deles fazem uma paragem. Mas os resultados dessa conspiração aparecem finalmente, quando menos se esperam. As formas e os costumes dos governos livres são tão tenazes, que aparecem ainda restos deles em regimens completamente opostos. Tácito ainda achava vestígios da república no domínio dos imperadores. Nós, depois do absolutismo estabelecido, ainda havemos de achar, nele, vestígios desta curta e acanhada liberdade.

Sr. presidente, que marchamos para o absolutismo é um facto! É a conclusão filosófica que se tira de todos os acontecimentos recentes. É uma verdade que ressalta da observação dum largo período da nossa história contemporânea, e dos actos de muitos caracteres públicos! Desde a revolução de 9 de Setembro, nós observamos em todos os acontecimentos políticos, uma certa ordem, uma progressão de factos, que nos encaminha para o sistema absoluto. É preciso examiná-los todos, e não um ou outro isoladamente, porque é da sua confrontação que resulta esta verdade. Comparando-os, o que se observa é que se tem jogado sempre com as fracções de todos os partidos o que se observa é que todos os ministérios, uns depois dos outros, têm sucessivamente cortado as prerrogativas populares, e que o último há de acabar esta obra quando menos se pensar!

O carro contra-revolucionário tem corrido com vertiginosa velocidade, sempre no mesmo sentido. Em diversas paragens dessa terrível jornada. muitos dos passageiros têm-se lançado a terra. Falta um resto. Ele lá vai! Mas quando o carro os levar ao termo fatal, esses mesmos há de ficar despedaçados debaixo das suas rodas!... (Apoiados). Quanto pode a vaidade! Homens novos, homens que não tendes história senão dentro do sistema liberal, caminhais para o absolutismo, julgando que sereis os seus chefes e os seus heróis? Para esse sistema requerem-se outra história, outros pulsos, outras faculdades!

Sr. presidente. este país é o país dos heróis - e nos do que precisamos é de ministros que governem. De heróis, estamos fartos!

Quem não quer ver os acontecimentos assim, não os vê como eles são. Todos os partidos, todas as fracções de partidos, todos os ministérios de opiniões moderadas - tudo tem sido esmagado. E porque é isto? É porque o carro contra-revolucionário e mais forte que todas estas entidades, porque esse impulso vem do homem que dentro do seu coração está persuadido, que o não dirige, que se tem deixado ir nesta corrente das revoluções, para ser a última vítima delas! Isto não mostra senão muita ambição e pouca coragem.

E como se explicam todos estes acontecimentos? Será porque este é o caminho da revolução? Mas quantas revoluções se tem feito, e o espírito contra-revolucionário predomina a despeito de todas elas! Isto não é o resultado directo dum facto: é o resultado directo de muitos factos, que, contrariando-se, conspiram todos para este fim.

Não cuide a câmara que eu quero lançar suspeitas sobre entidades a quem a Carta, caindo, podia talvez deixar sob o peso duma suspeição. Não, não suspeito realmente delas, e estou mesmo persuadido que, entre tantas vítimas, por tantos títulos respeitáveis, essas entidades não serão menos vítimas na catástrofe final.

Sr. presidente, o partido cartista não vê isto em parte, não o quer ver. Vê a meio, não ousa reconhecer esta situação; mas não pôde deixar de suspeitá-la. Vive numa alegria inocente por ver tremular uma bandeira, que ele julga a sua própria bandeira. E, enquanto tem os olhos fitos na haste que a sustenta, minam-lhe o terreno em que ela se firma - e um dia em que a procure com a vista, há de vê-la no chão n um momento, num instante...

Um governo conspirador nunca dá parte do resultado final dos seus planos. Vai até à última. No momento fatal, sai pela porta travessa, e quando o esperam na sala grande, talvez para uma reunião política, tem ele aclamado outra forma de governo. Deixai-o! serão os primeiros proscritos aqueles que o tiveram ajudado...

Sr. presidente, o partido cartista tem perdido na sua posição. O partido cartista, nesta série de acontecimentos, não logrou senão transformar-se; e os partidos que se transformam, morrem, acabam. O partido cartista está transformado. O partido cartista, depois de tantos protestos de ordem, começou a disputar-nos as nossas práticas, os nossos fastos, até o nosso martirológio... Quis ter a nossa praça de armas, o nosso Cais das Colunas, os nossos homens da revolução! E depois disto, Sr. presidente, esse partido que após tantos anos de combates, discordando constantemente dos nossos homens, das nossas práticas e das nossas leis, os vem imitar e adoptar por fim, levanta-se contra nós, perseguindo-nos com o maior encarniçamento e intolerância!

Mas o partido cartista perde a sua existência política, se não procurar cabeças que o dirijam. Não cuidem que qualquer frase que eu haja pronunciado tenha sido inspirada por interesses mesquinhos ligados a uma organização de governo ou a uma composição de maioria. Eu vejo as coisas do país como dias são e como todos as vêem; sei o caminho que elas nos têm aberto e por onde nós havemos de passar; e conheço-me bastante para me vir à cabeça o ser ministro. Mas digo, Sr. presidente, que o partido cartista carece de chefes políticos, porque só tem à sua testa chefes militares. E os meios de influência duns não são os meios de influência dos outros.

Sim, o partido cartista está sem cabeça é um partido decapitado. Mas há de infalivelmente buscar os elementos de direcção que lhe faltam. Tanto se há de mexer, tanto se há de torcer, tanto se há de voltar, neste resto da sua pouca vida, que há de, em hora de aflição extrema, incorporar em si as cabeças dos seus antigos chefes, aos quais não faltará, nesse momento, a generosidade precisa para perdoar tanta ingratidão!

A sorte do partido cartista veio protrair a hora da nossa elevação ao poder. Nós estamos longe de ser chamados a dirigir a política do país. Mas, como partido político, somos indispensáveis para a auxiliar. E quanto mais se retardar esta conciliação, mais indispensável será o nosso auxilio.

Tal é, Sr. presidente, o futuro do país. Não há que fugir a isto. Ou o partido cartista se organiza de novo, ligando-se outra vez às suas cabeças, se purifica das suas culpas e pecados, lança fora de si esses filhos espúrios que vieram enjeitados de todos os outros partidos, e alguns mesmo de não-partidos, (riso) meter-se no seu grémio para especular em política; ou ele faz isto, e se constitui como verdadeiro partido, com aquelas condições de respeitabilidade, que lhe podem dar os grandes serviços, uma longa administração do país e as reminiscências dos primeiros governos liberais do tempo da Carta... (Rumor). Os primeiros governos da Carta foram liberais! Não sei se ofendo ou não ofendo a oposição. Entendo que os primeiros governos da Carta foram realmente liberais: administraram mal, mas foram liberais.

Repito, Sr. presidente, a situação do país está definida: ou o partido cartista incorpora em si as suas cabeças, e pôde apresentar-se na cena política na mesma situação em que estava antigamente, ou a sua final transição para o princípio absolutista se faz e se executa.

Sr. presidente, talvez tenhamos de passar (e eu acredito que sim; em minha consciência, acredito que sim!), talvez tenhamos de passar por mais esta fase política! Mas eu não creio que ela seja a morte da liberdade! Não, eu creio que a liberdade há de renascer dela mais sublime e forte; e fecho os olhos para não ver a série de acontecimentos negros, que hão de preceder e acompanhar essa transformação!

Isto a que chamamos progresso, Sr. presidente, é um facto, é uma lei social incontrastável. Não há que resistir-lhe. Propaga-se de contínuo. Quando menos o esperamos, batemos à porta. Não acreditar no progresso, Sr. presidente, e um pirronismo miserável, é não acreditar um axioma.

Sr. presidente, pois que é a história contemporânea do nosso país senão uma aspiração de progresso? Antes da revolução de 1820, essa aspiração era um brado geral composto de vozes de tons diversos, cada uma das quais exprimia uma coisa, que todos cuidavam significar liberdade. Uns queriam a comunidade com o governo do Rio de Janeiro; outros a constituição inglesa; outros umas novas cortes de Lamego. Este grito, porém, tornou-se num só grito - o grito da liberdade!

O princípio liberal, pois, Sr. presidente, assim confirmado, assim estabelecido, assim formulado, teve de pôr-se em campo para resistir à reacção, para impor prudência ao governo de D. João VI. E apesar da força dessa reacção. e embora não tão rigoroso como em 1820, ele mostrou-se tal que o libertador reconheceu que tinha nesse princípio uma nova base para nela firmar a dinastia.

E, Sr. presidente, não se enganou! Porque esse princípio foi tão forte que teve soldados, que teve generais, que teve campos de batalha, que teve mártires que expiraram no patíbulo ou sofreram nas cadeias, que teve conselheiros, que teve representação, que teve publicistas, que teve tudo quanto é indispensável à constituição dum partido assaz forte para destruir as instituições antigas e abalar um sistema velho. Sim, Sr. presidente, este partido, formulado por um princípio, foi engrossando e robustecendo-se até que o respeitaram e transigiram com ele, e, depois de conquistada toda esta importância, pôde destruir o passado e constituir-se seguro com o governo da Carta.

Sr. presidente, parou aqui o progresso das ideias liberais?... Deixemos erros dos homens, erros das coisas! o desenvolvimento do princípio liberal foi tão forte, que se entendeu que a sua expansão ia demasiado longe. Quiseram opor-se-lhe e subvertê-lo. Ele, porém, tem resistido até hoje, Sr. presidente; e é esta a consequência inevitável do progresso - do progresso que esses estadistas pigmeus desconhecem, do progresso que lhes está batendo à porta, que lhes está abalando as cadeiras em que eles estão assentados!

Sr. presidente, tenho terminado o meu discurso. Os sucessos estão marcados - e hão de cumprir-se. Não me resta senão pedir à Providência, e a quantos homens amigos do país aqui se encontram, que consinta ela e que empreguem eles todos os seus esforços para que a catástrofe seja o menos desastrosa possível. Mas que ela vem, é uma verdade incontestável!

 

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Dez.2000