Henrique J. C. de Oliveira, Relatório do Inquérito Linguístico realizado na Gafanha do Carmo, Aveiro, 1967.

O MEU INFORMADOR

Como já no prefácio afirmei, após ter contactado com as diferentes gerações, optei pela mais idosa, visto ter-me parecido oferecer maior interesse. Assim sendo, escolhi um simpático casal de velhotes, que conheci graças a uns rapazes que se ofereceram para me apresentar às diferentes pessoas da terra.

Ao primeiro contacto, devo confessar que fiquei um pouco decepcionado. Tendo explicado o que queria àquele que viria a ser o meu informador, logo ele me disse não saber nada, que era muito ignorante e nem sabia ler, e que o melhor seria falar com um vizinho dele, também da mesma idade. Assim fiz! Fui falar com o vizinho, mas não me agradou, pois a custo se conseguia perceber o que dizia. Além disso, o primeiro tinha-me parecido reunir as melhores condições para poder realizar o meu trabalho, pelo que voltei novamente a falar-lhe. Fui-o encontrar no campo, de enxada na mão, a cavar a terra. Instantes depois, passados os primeiros momentos de acanhamento e adquirido um mínimo de confiança, já nem parecia o mesmo. De reservado e pouco expansivo, tornara-se um bom falador, contando-me episódios da sua vida, falando-me dos filhos e explicando-me o que andava a fazer naquela altura. Se bem que tivesse tentado evitar interromper-lhe o trabalho, preferiu ir para casa para melhor poder conversar comigo. Escusado será dizer que me ofereceu do que tinha; e, embora a minha vontade não fosse grande, tive que aceitar qualquer coisita para não o desgostar.

Tendo-lhe perguntado o nome, a idade e os restantes dados para preencher as diferentes alíneas do texto do meu inquérito, disse chamar-se Manuel Vilarinho, mas que na terra só era conhecido por Ti Melro. Tinha 78 anos, fazendo 79 «pró dizoito do Natal». Natural da Gafanha do Carmo, onde sempre viveu, apenas saiu duas vezes da terra, quando foi a Lisboa despedir-se do filho, que ia embarcar para o Brasil, e quando de uma excursão a Braga.

Achando curiosa a alcunha de «Ti Melro», pedi-lhe a explicação para a mesma. Disse-me ele que toda a sua família era conhecida por essa alcunha, visto que o seu «bisavô azubiava a acertar com o chiar do carro» de bois, possivelmente fazendo lembrar um melro. O mais curioso é que, tendo pedido uma explicação para esta alcunha a outra pessoa da terra, foi-me confirmada a citação anterior. Além disso, essa mesma pessoa referiu-se-me a outras alcunhas, que foi sucessivamente justificando.

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Fig. 3 O Simpático casal que ajudou a fazer o presente inquérito.

Não sabendo ler, o meu informador tinha ainda um bom conhecimento das coisas do seu tempo, tendo-me enunciado o nome de todas as peças componentes do carro de bois, do arado, dos moliceiros, do engenho de tirar água e dos demais instrumentos de trabalho de que se serve, com uma facilidade que bastante me admirou, pois pensava eu que os seus 78 anos lhe tivessem varrido da memória a maior parte dos conhecimentos. Por outro lado, era duma paciência extraordinária, não se importando de repetir o que tinha dito sempre que me era preciso. Por vezes, julgando que o meu pedido para voltar a dizer qualquer palavra se devera ao facto de eu a não ter compreendido, não só ma explicava, como ainda me indicava outros termos usados noutras regiões para designar o mesmo objecto. Foi o que sucedeu, por exemplo, quando lhe perguntei qual o nome que davam à cana do milho. Respondeu-me chamar-se «carapita», mas que na Torreira era conhecida por «pandões» e, noutros lugares, por «bandeira».

Uma das vezes, andando a vê-lo trabalhar no campo com a sua mulher, ouvi certa palavra que não consegui perceber. Imediatamente perguntei ao Ti Melro − como sempre o chamei − que palavra tinha dito há pouco.

− Será «gabélas» − perguntou-me ele.

− Sim, deve ser isso mesmo. O que vem a ser uma «gabéla», Ti Melro?

− Home, uma «gabéla» é um molhe de canas de milho. Três ou quatro «gabélas» faz um feiche.

Perante todos estes tactos, penso ter escolhido um bom informador e um fiel representante da Gafanha do Carmo, tanto mais que, algumas vezes, as suas afirmações me foram confirmadas pela mulher, à qual recorri quando o marido não me sabia responder.

 

 

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