Como já no prefácio afirmei, após ter contactado com as diferentes
gerações, optei pela mais idosa, visto ter-me parecido oferecer maior
interesse. Assim sendo, escolhi um simpático casal de velhotes, que
conheci graças a uns rapazes que se ofereceram para me apresentar às
diferentes pessoas da terra.
Ao primeiro contacto, devo confessar que fiquei um pouco decepcionado.
Tendo explicado o que queria àquele que viria a ser o meu informador,
logo ele me disse não saber nada, que era muito ignorante e nem sabia
ler, e que o melhor seria falar com um vizinho dele, também da mesma
idade. Assim fiz! Fui falar com o vizinho, mas não me agradou, pois a
custo se conseguia perceber o que dizia. Além disso, o primeiro tinha-me
parecido reunir as melhores condições para poder realizar o meu
trabalho, pelo que voltei novamente a falar-lhe. Fui-o encontrar no
campo, de enxada na mão, a cavar a terra. Instantes depois, passados os
primeiros momentos de acanhamento e adquirido um mínimo de confiança, já
nem parecia o mesmo. De reservado e pouco expansivo, tornara-se um bom
falador, contando-me episódios da sua vida, falando-me dos filhos e
explicando-me o que andava a fazer naquela altura. Se bem que tivesse
tentado evitar interromper-lhe o trabalho, preferiu ir para casa para
melhor poder conversar comigo. Escusado será dizer que me ofereceu do
que tinha; e, embora a minha vontade não fosse grande, tive que aceitar
qualquer coisita para não o desgostar.
Tendo-lhe perguntado o nome, a idade e os restantes dados para preencher
as diferentes alíneas do texto do meu inquérito, disse chamar-se Manuel
Vilarinho, mas que na terra só era conhecido por Ti Melro. Tinha 78
anos, fazendo 79 «pró dizoito do Natal». Natural da Gafanha do Carmo,
onde sempre viveu, apenas saiu duas vezes da terra, quando foi a Lisboa
despedir-se do filho, que ia embarcar para o Brasil, e quando de uma
excursão a Braga.
Achando curiosa a alcunha de «Ti Melro», pedi-lhe a explicação para a
mesma. Disse-me ele que toda a sua família era conhecida por essa
alcunha, visto que o seu «bisavô azubiava a acertar com o chiar do
carro» de bois, possivelmente fazendo lembrar um melro. O mais curioso é
que, tendo pedido uma explicação para esta alcunha a outra pessoa da
terra, foi-me confirmada a citação anterior. Além disso, essa mesma
pessoa referiu-se-me a outras alcunhas, que foi sucessivamente
justificando.
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Fig. 3
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O Simpático casal que ajudou a fazer o presente inquérito. |
Não
sabendo ler, o meu informador tinha ainda um bom conhecimento das coisas
do seu tempo, tendo-me enunciado o nome de todas as peças componentes do
carro de bois, do arado, dos moliceiros, do engenho de tirar água e dos
demais instrumentos de trabalho de que se serve, com uma facilidade que
bastante me admirou, pois pensava eu que os seus 78 anos lhe tivessem
varrido da memória a maior parte dos conhecimentos. Por outro lado, era
duma paciência extraordinária, não se importando de repetir o que tinha
dito sempre que me era preciso. Por vezes, julgando que o meu pedido
para voltar a dizer qualquer palavra se devera ao facto de eu a não ter
compreendido, não só ma explicava, como ainda me indicava outros termos
usados noutras regiões para designar o mesmo objecto. Foi o que sucedeu,
por exemplo, quando lhe perguntei qual o nome que davam à cana do milho.
Respondeu-me chamar-se «carapita», mas que na Torreira era conhecida por
«pandões» e, noutros lugares, por «bandeira».
Uma das vezes, andando a vê-lo trabalhar no campo com a sua mulher, ouvi
certa palavra que não consegui perceber. Imediatamente perguntei ao Ti
Melro − como sempre o chamei − que palavra tinha dito há pouco.
− Será «gabélas» − perguntou-me ele.
− Sim,
deve ser isso mesmo. O que vem a ser uma «gabéla», Ti Melro?
− Home,
uma «gabéla» é um molhe de canas de milho. Três ou quatro «gabélas» faz
um feiche.
Perante todos estes tactos, penso ter escolhido um bom informador e um
fiel representante da Gafanha do Carmo, tanto mais que, algumas vezes,
as suas afirmações me foram confirmadas pela mulher, à qual recorri
quando o marido não me sabia responder. |