Reabastecimento ao Cuango

Imagem aqui se a houver

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Se o mundo dependesse das nossas boas intenções e promessas, giraria aos solavancos e andaríamos todos nós aos baldões. Já lá vão dois dias desde o momento em que interrompi esta carta e só agora retomo a conversa convosco. Ainda bem que dobrei, fechei e meti os aerogramas já escritos na caixa do correio. Embora incompleta a correspondência, poderão ir lendo as minhas palavras.

Vamos então ao prometido, que o prometido é devido. E eu não gosto de ter dívidas com ninguém, muito menos com os meus velhotes queridos.

Acordei a meio da noite.

Exceptuando um roncar surdo do capelão, que dorme na cama que o impedido instalou no meu quarto, do lado oposto da sala, reina um profundo silêncio, ainda mais acentuado pelo barulho que o capelão faz a dormir e pelo som estridente dos insectos nocturnos, que entra pelas frestas das persianas.

Estico os braços, para me espreguiçar, e dobro o esquerdo, posicionando o pulso e as costas da mão na frente dos olhos. Levanto a tampa de cabedal que protege o relógio. Consulto as horas. Os ponteiros brilham no escuro, com uma tonalidade fosforescente esverdeada. Verifico melhor. Já quatro da manhã?! Tenho que acordar o capelão e ir também ao quarto do médico. Daqui a pouco já estará todo o pessoal a carregar a Berliet. Espero que o impedido não se esqueça do pequeno-almoço, às cinco da manhã, tal como lhe ordenei.

Tacteio a mesinha de cabeceira, ao meu lado esquerdo. Pego na lanterna eléctrica e salto da cama. Procuro o petromax. Onde estão o álcool e os fósforos? Localizo-os em cima da mesa, junto da minha papelada e dos aerogramas, à espera de serem preenchidos. Ponho o candeeiro a funcionar. Mais duas ou três bombadas. A luz alva aumenta de intensidade. Projecta-se uma luz crua e brilhante em todo o quarto. O capelão continua a dormir, de boca aberta.

De repente, não sei por que carga de água, olho outra vez para o relógio e implico com a tampa de cabedal, que me impede de verificar as horas. Decido retirá-la. Para quê este estorvo? Desaperto a fivela. Separo a tampa preta e o resto do cabedal que protege do suor e volto a colocar o relógio no pulso. Vêem-se agora perfeitamente as horas. É só posicionar o pulso na posição correcta. Os ponteiros dourados, com a linha fosforescente no centro, destacam-se no fundo branco do mostrador. No rectângulo com cercadura dourada, vêem-se nitidamente a semana e o dia: TERÇA e 5. Só falta o nome do mês. É pena! Se mostrasse os nomes dos meses, seria melhor ainda. E já agora, porque não, as fases da lua e as estações do ano? Não querias mais nada? Volta à Terra! Olha que o tempo não pára e tens de guardar a tampa de cabedal na mala. Até parece que estás embevecido a olhar para o relógio! Como no primeiro dia em que o compraste na cantina militar, durante a recruta em Mafra. Lembras-te? Andaste todo o dia a olhar para o relógio novo e a consultar constantemente as horas!

Agrada-me o dourado da caixa metálica, há já algum tempo escondido sob a tampa preta. Parece até que cintila, à luz forte do petromax! Começo a abrir o aloquete da mala, para guardar o acessório de cabedal, quando ouço a voz do capelão:

— Que horas são, Ulisses?

— Já são quatro e um quarto, capelão. Acorda mesmo na hora exacta. Nem foi preciso acordá-lo.

— O que é que estás aí a fazer de joelhos?

— Estou a guardar a tampa de cabedal do relógio na minha mala, capelão. Impliquei com ela e decidi retirá-la.

— Incomodava-te?

— É mais prático assim. Poupa-me tempo na consulta das horas. Enquanto arrumo isto, peço-lhe um favor...

— Diz.

— Importava-se de ir acordar o médico? Começa a fazer-se tarde. Temos ainda de nos arranjarmos, antes do pequeno-almoço. Marquei-o para as cinco, como sabe. E já não temos muito tempo. A partida é daqui a pouco, às cinco e meia. Olhe, capelão, já agora, diga ao Graça Marques que tem de levar o camuflado, a G3 e as cartucheiras.

— Podes deixar. Vai-te tu arranjando, que eu vou-o acordar. E dou-lhe o recado.

— E que não se esqueça da máquina.

— Não se esquece. Disso tenho a certeza.

— Obrigado. Vou já arranjar-me e sair. A esta hora já deve andar todo o pessoal a pé, a carregar a viatura. Tenho de ir verificar se está tudo em ordem.

— Não confias nos furriéis?

— Confio. Mas sou eu o principal responsável. É sempre bom prevenir.

Arranjei-me e saí à pressa, de lanterna na mão. Quando regressei à messe, já o capelão e o médico tomavam o pequeno-almoço.

— Olá. Bom dia para todos. O pessoal já lá anda a trabalhar. A Berliet está quase pronta. Tudo carregado.

— Estavas tu com receio, Ulisses! Afinal, os furriéis dão conta do recado.

— Sei bem que sim, capelão. Sei bem que não são irresponsáveis. Mas a minha obrigação é verificar sempre se está tudo em ordem. Sou eu o principal responsável. E agora, se me dão licença, vou ter de me despachar. Olha, — disse eu, voltando-me para o impedido — aquece um pouco mais o leite, faz favor. Está morno. Tem de estar bem quente, para poder fazer as minhas papas de farinha Pensal. Despacha-te. Já não tenho muito tempo.

— Ouve lá, Ulisses, estavas a rezar às quatro da manhã?

— Eu a rezar? A que propósito? Onde queres chegar, Graça Marques?

— Aqui o nosso capelão disse-me que estavas de joelhos em frente da tua mala, quando ele acordou.

Percebi onde o médico queria chegar e comecei a rir.

— Estou a ver que já me cortaram na casaca, perdão, no camuflado, durante a minha ausência.

— É verdade, Ulisses. Quando acordei e te vi de joelhos, junto da mala, assim, de repente, à luz do candeeiro, pareceu-me que estavas de joelhos em frente a um altar. Nem a vela te faltava, do teu lado, a alumiar a cerimónia!

— Não me diga, capelão, que estava a sonhar com o seu patrão, quando acordou. Até me imaginou, se calhar, a dar-Lhe graças por mais um dia. Ou, quem sabe, a pedir-Lhe para que a viagem nos corra bem. Quem deve pedir-Lhe protecção para nós é o capelão.

— Ouçam lá, que conversa é essa agora? Estão a falar de missas? E qual foi a tua ideia, Ulisses, de dares o recado ao capelão para eu não me esquecer do camuflado e da arma? Achas-me algum maçarico?

— Não, Graça Marques. Foi só uma questão de precaução.

Interrompi a fala, quando o impedido me trouxe a cafeteira de alumínio com o leite. Tirei da embalagem umas colheres de sopa de farinha para um prato fundo, deitei-lhe o leite quase a ferver e mexi tudo muito bem. Provei e juntei-lhe duas ou três colheres de açúcar.

— São servidos das minhas papas?

— Bom proveito — disseram, quase em uníssono, o capelão e o médico.

Ainda não tinha engolido a primeira colherada, e o médico outra vez a bater na mesma tecla:

— Achas-me algum maçarico, Ulisses, para estares tão preocupado comigo? Não precisavas das recomendações que deste aqui ao nosso capelão. Estou farto de saber que é preciso levarmos o camuflado e a arma, quando andamos em colunas militares nas picadas.

— Nas picadas e fora delas, Graça Marques. Foi só por precaução. Como raramente sais de Quimbele e andas sempre todo pinoca, à civil ou de farda número...

— Não gozes comigo, Ulisses...

— Ouçam lá os dois: qual é o interesse dessa conversa? Não vejo nenhum motivo para melindres. Olhem que o tempo não pára. E tu tens de acabar a tua papada, Ulisses. Não tarda muito, temos o pessoal parado à frente da messe, à nossa espera.

— Tem toda a razão, capelão! Olhem, já ouço o barulho das viaturas. Eles aí estão.

Lá fora, ouvem-se os motores e o chiar dos travões. Enfio umas colheradas à pressa, pego num pão com manteiga e meto-o num dos muitos bolsos do camuflado.

— Este é para a viagem, se me der a fome. Ala, pessoal, vamos buscar as nossas coisas: as armas e as cartucheiras... E as máquinas fotográficas.

— É preciso levar comida nos bolsos, Ulisses?

— Não, capelão. Para o almoço, toda a gente tem uma ração de combate. Só que o capelão está a esquecer-se que eu ando de dieta. A única coisa que poderei comer da ração é a lata de frutas, o concreto de frutos, a tablete de chocolate e a bisnaga de leite condensado. No resto, nem me atrevo a tocar. Não quero estragar a viagem.

Passámos rapidamente pelos quartos e saímos, ajudados pelo impedido, que nos veio alumiar com o petromax da sala de jantar.

Junto do passeio, as silhuetas das viaturas e do pessoal começavam a distinguir-se perfeitamente. O manto da noite começava a ganhar luz e cor. Olhei para o relógio: 5:45.

— Pessoal, só estamos com quinze minutos de atraso em relação à hora marcada. Com sorte, chegaremos muito a tempo de dar um passeio pelo Cuango. Bom dia para todos e boa viagem!

— Onde é que nós vamos, Ulisses?

— É indiferente, Graça Marques. Há o unimogue e a Berliet. Olha, o capelão pode ir comigo na Berliet. Vamos à frente. Vai entre mim e o condutor. Tu vais atrás, no unimogue, sentado ao lado do condutor.

— Por onde é que vamos, Alferes? — perguntou o condutor da Berliet enquanto o capelão se sentava ao lado dele e eu ainda me encontrava com um pé no chão e o outro no estribo da viatura. — É pela picada do Alto Zaza, Alferes?

— Não. Nada disso. É uma volta muito grande. Isso era dantes. Agora temos o caminho encurtado. Vamos pela estrada nova, directos à Regedoria de Marimba. Anda lá. Arranca. Vamos nós à frente.

Pus-me de pé na cabine e voltei-me para trás. Fiz sinal ao condutor do unimogue para nos seguir.

— Há uma estrada nova, Ulisses?

— Não, capelão. É uma picada. Mas uma picada larga, com bom piso. Foi aberta pelo grupo de engenharia que foi comigo para a BTT da Quimabaca.

— Eles tiveram tempo para abrir uma picada nova?

— Não, capelão. A picada já existia. Só tiveram que a melhorar e alargar em alguns locais. Fizeram o serviço todo em menos de uma semana.

— Alferes, fazemos a viagem toda seguida? Não paramos para descansar?

— Não, rapaz. Vamos ter de parar para almoçar. Eu conheço bem todos os recantos. Vamos parar lá mais para diante. Na região da Quimabaca, vamos atravessar muitas linhas de água, com bons locais para almoçarmos. Mas vai ser a única paragem. Nem para tirar fotografias! De resto, é sempre a andar.

— Alferes, não vem mais nenhum condutor. São muitas horas seguidas.

— Estás a achar demasiada condução? Não tens problemas. Fazes agora toda a metade, até ao almoço. Depois trocamos de lugar. Levo eu a Berliet.

— Tu sabes conduzir a Berliet, Ulisses?

— Qual a dificuldade, capelão? É mais fácil que o meu carro. Com direcção assistida e um sistema de travagem excepcional, a Berliet põe o meu Taunus a um canto em muitos aspectos. Olhe, por exemplo, faço inversão de marcha com esta viatura com muito mais facilidade do que com o meu carro. Isto é um luxo! Quem dera que todas as nossas viaturas fossem como esta! É um luxo! Olhe aqui ao meio. Está a ver este dispositivo em forma de pêndulo? Até nos fornece o grau de inclinação da viatura, nos desníveis de terreno ou quando temos de ultrapassar valas abertas pelas chuvadas. Temos apenas que prestar atenção a três coisas: ao acelerador e caixa de velocidades, à direcção e a este instrumento. Este é o mais importante. Sempre de olho nele. Sempre atentos à inclinação. Não podemos chegar a este traço aqui. Está a ver? Daqui para diante, ultrapassamos o centro de gravidade da viatura e ela volta-se. Fica de patas para o ar. E toda a malta estatelada no chão. Já imaginou o que seria a viatura voltar-se e ficarmos todos debaixo dela?

— Muito me contas, Ulisses. Nunca tinha reparado nesse pormenor.

— E digo-lhe mais acerca desta maravilha, feita em Portugal. Aliás, a única viatura, que eu saiba, construída em Portugal. Isto, para andar, é uma autêntica bomba. Tem uma força espantosa. Há tempos, quando fui a Sanza para ir buscar os oficiais, conduzi-a na zona de Macocola. Nas rectas, andei muitas vezes na casa dos cem e cento e vinte. Consegui chegar com o ponteiro a esta velocidade sem problemas. A única crítica que tenho relativamente a esta viatura é não lhe terem ainda instalado um guincho na frente. É uma lacuna.

— Porquê? Já estiveste nalguma situação de dificuldade por falta do guincho?

— Já, capelão. Mais do que uma vez, na época das chuvas.

— Então porquê? Conta lá isso.

— Há bastante tempo, no período em que estava à frente do Alto Zaza. Tive uma situação difícil, em que o guincho nos teria poupado tempo e trabalho.

— Porquê? O que é que te sucedeu?

— Tinha chovido imenso. A picada estava empapada. A camada argilosa era pior que manteiga. Passado um pontão, apanhámos uma subida. A viatura patinava e não subia. Com o fumo, sofremos um ataque de vespas. Foi a debandada geral. Nem quero lembrar-me! Fiquei num estado lastimoso! Eu e todo o pessoal. No fim, sem guincho para prender a viatura a uma árvore e nos ajudar a vencer a inclinação do terreno, teve o pessoal que andar com as pás a remover a camada superior, formando um trilho seco para o rodado. Com o guincho, teríamos poupado imenso tempo e esforço. Desde essa época, nunca mais voltei a deixar crescer a barba.

Tenho de pôr termo aos diálogos entre mim e o capelão. Embora tenham sido agradáveis, por nos ajudarem a esbater a passagem do tempo e encurtarem a viagem, se não lhes meto travão, nunca mais chegamos ao Cuango. Basta dizer que alcançámos a regedoria de Marimba em pouco tempo, com o sol já alto. Tivemos por aqui uma brevíssima paragem, na picada junto à Quimabaca. Os nativos ouviram o ruído das viaturas e vieram esperar-nos. Tive mesmo de descer da viatura, para os cumprimentar. Ficámos a saber que, no dia seguinte, se realizava um mercado no povo de Buatelele e que os sobas lá estariam. Disse-lhes que, no regresso a Quimbele, pararíamos aí para estarmos uns momentos juntos e tirarmos fotografias. Almoçámos numa das muitas linhas de água que atravessámos, junto da fresca linfa e à sombra da densa vegetação. Percorremos toda a vasta planície do Suaicomba sempre em marcha acelerada. Ia eu a conduzir. Nem sequer parámos para fotografar as sepulturas na margem da picada. Foi sempre a andar. Com a ajuda de todos os santos e alguma reza do capelão, que perdeu o pio após o almoço e algumas vezes vi a cabecear de sono, entre mim e o condutor, chegámos ao Cuango a meio da tarde, muito a tempo de descarregarmos a viatura, darmos uma volta pela povoação e irmos cumprimentar os civis que aqui vivem.

Estão a ver como sem os diálogos a viagem se fez num instante? Pudemos economizar o combustível da minha esferográfica e poupar tempo, que nos vai ser mais útil para o registo da nossa curta estadia de algumas horas no Cuango.

Tenho agora duas boas companhias e duas máquinas fotográficas. Por isso, vou aproveitar para adiantar serviço. Quando calhar a minha vez de vir comandar o destacamento do Cuango, já não precisarei de descrever-vos o local. Ficarei com mais tempo para os relatos do que quer que venha a acontecer-me.

Não será necessário dizer-vos que, mal o ruído das viaturas começou a ouvir-se, toda a malta que está no destacamento do Cuango deixou o que estava a fazer e veio para a entrada esperar a nossa chegada. Não é todos os dias que têm a nossa visita; e isto é uma quebra na rotina diária. Sem falar na melhor coisa que lhes pode acontecer! É que com as nossas pessoas vêm outras que estão muito mais distantes, aí nesse recanto da Europa, a mais de oito mil quilómetros de distância! Connosco vêm também as cartas da família, aquelas folhinhas amarelas, que me têm dado tanto jeito para comunicar convosco e que nos ajudam a matar saudades.

Atravessámos a entrada por entre duas filas de pessoal, com todo o cuidado, não fosse algum atravessar-se-me na frente e criar-me alguma situação desagradável. Parei a Berliet a escassos metros do edifício do comando. Passei o volante ao condutor e saltámos da viatura.

— Depois de todo o pessoal ter saído — disse para o condutor — colocas a Berliet junto à cantina, em posição para ser descarregada. A descarga é com o pessoal de cá. Nós, agora, é descansar e dar uma volta pelo Cuango. Que vos dizia eu? — perguntei, deixando a viatura entregue ao moço e voltando-me para o médico e capelão. — Que vos dizia eu? Estão a ver como os meus cálculos bateram certos?

— Tens toda a razão, Ulisses. Tu lá sabes. Conheces a região. Vasculhaste todos os recantos durante um mês.

— Um mês, capelão? Não, não chegou a um mês! Mas quase! Que vos dizia eu? Estás a ver, Graça Marques? Foi ou não foi uma viagem rápida.

— Demais! Exageraste! Nem me deixaste tirar umas fotografias durante o percurso.

— Não deixei?

— Não. Não deixaste. Vieste sempre em alta velocidade. Até o condutor do unimogue, de vez em quando, refilava, porque o obrigavas a puxar pela viatura.

— Qual o problema, Graça Marques? Percurso sempre plano, picada seca e rectas enormes, sem obstáculos. Qual o problema?

— O problema é que passámos por sítios espantosos e não paraste, para tirarmos fotografias.

— Quem te impediu? Não vinhas a conduzir. Pegavas na máquina, enquadravas o que querias e disparavas.

— Com a viatura em andamento, a grande velocidade?

— Qual a dificuldade? Aumentavas a velocidade de obturação e tiravas as fotografias.

— Isso é para ti, que estás habituado a isto.

— A isto o quê, Graça Marques?

— Às máquinas fotográficas.

— Não têm nada que saber.

— Não têm para ti. Mas eu tenho a máquina há pouco tempo.

— Ouçam lá, querem ficar os dois a falar de máquinas fotográficas? Não era melhor mudarem de conversa?

— Tem razão, capelão. Estamos a perder tempo. Mas não acha que tenho razão, capelão? O que é que eu vos dizia, em Quimbele? Estão a ver como a viagem se fez sem problemas? E num curto espaço de tempo? Saímos às seis menos um quarto de Quimbele. São agora dezasseis horas. Dezasseis horas, estão a ver? Olhem para aqui: dezasseis horas. Façam-lhe as contas. Cerca de oito horas de viagem. Um autêntico recorde, se nos lembrarmos que, na época das chuvas, é um dia completo, quando não temos azares. Um autêntico recorde!

— Ouve lá, Ulisses, tu estás a ficar chato! Pareces um disco avariado! Já sabemos que tinhas ou tens razão. Mas olha, já que falas nisso, não me parece que estejas a fazer bem as contas...

— Não estou?! Como não estou?

— Não, não estás. Das seis às dezasseis são dez horas. Dez horas de viagem. Não oito.

— E o tempo que estivemos parados? Descontem-lhe uma hora ou mais. Não foram oito, mas nove.

— E se vos deixásseis de conversas estéreis e fôssemos refrescar-nos um pouco?

— Tem razão, capelão. Esta conversa é fútil! Não nos leva a lado nenhum. Não te parece, Graça Marques?

— Acho que sim. Estou de acordo com o capelão. Vamos refrescar-nos como, Ulisses?

— Não digo tomar já um chuveiro. Que aqui até casa de banho com banheira, chuveiro e tudo cá temos! Isto está bem para antes de jantarmos. Vamos à cantina tomar umas bebidas frescas e damos depois umas voltas pelo Cuango, antes que anoiteça.

— Concordo contigo, Ulisses. E o nosso capelão de certeza que não vai contra. Vamos lá às bebidas; e depois ao nosso passeio.

Saímos do quartel refrescados interiormente, armados com as máquinas fotográficas a tiracolo e um sol magnífico, menos quente e de tons amarelados, a começar a inclinar-se para o horizonte, produzindo sombras extensas e colorindo edifícios e plantas com tons quentes.

— Hora ideal para fotografias! — disse para os meus dois companheiros, médico e capelão. — Hora ideal! Hora para belas fotografias. Para começar, Graça Marques, pega lá a minha máquina fotográfica. Tira-me uma fotografia à entrada do destacamento. Enquadra bem, de modo a apanhares-me a mim e parte do edifício do comando. Esta tabuleta que a malta aqui colocou tem de ficar para a posteridade. Olhem bem para ela e saberão qual vai ser a ementa: «Gostas de arroz? Avança!»

— Pega lá a tua máquina, Ulisses. Põe-a a tiracolo e agarra na minha. Agora, é a minha vez. Também quero ficar.

Peguei na máquina do médico e enquadrei. Ao centro, ele a apontar para a tabuleta convidativa. Ao fundo, à esquerda, a Berliet já descarregada, encostada ao edifício. À direita, o pessoal que dorme no edifício do comando: o cantineiro e o impedido ao serviço dos graduados.

— Vamos explorar e registar fotograficamente o lugar?

— Não estamos já, Ulisses?

— Sim. Mas vamos agora afastar-nos um pouco. Quero ficar com uma colecção de diapositivos que me mostrem o destacamento do Cuango de todos os ângulos. Olhem, para começar, vou afastar-me. Vou apanhar todo o edifício. Acompanhem-me. Só temos uma hora de sol.

Vou omitir as conversas entre mim e os meus dois companheiros de exploração e sintetizar-vos os nossos passos.

Começámos por fotografar o edifício do comando. É uma construção, segundo creio, dos começos do século, recuperado e modernizado mais tarde. Com planta quadrada, apresenta, a toda a volta, uma área coberta, que protege das fortes chuvadas e fornece um local de permanência, nas horas de calor. Em pleno interior de África, a uns duzentos metros do rio Cuango, é um luxo em pleno continente, com todas as comodidades modernas. Ao lado, formando a parada central do destacamento, elevam-se os modernos edifícios pré-fabricados, que não devem ter mais do que um ou dois anos.

A cinquenta metros, descendo para o rio que nos separa da república do Zaire, encontra-se uma enorme peça de artilharia para inglês ver, com a boca que nada expele voltada para o outro lado da fronteira. Viemos até junto desta relíquia da artilharia. Saltei-lhe para cima. E o médico tirou-me uma fotografia a apontar para o rio. Voltámos-lhe depois as costas, para admirarmos o edifício do comando, com parte da área coberta meio arruinada, junto do depósito de água em lusalite, e a necessitar de obras urgentes.

Percorremos, finalmente, toda a ampla «avenida», ligeiramente inclinada, com enormes mangueiras de cada lado. Cumprimentámos os civis, não esquecendo o comerciante que tem um estabelecimento à entrada do Cuango. Fotografámos e regressámos ao destacamento.

Para fechar a reportagem, passei a máquina a um furriel, que está aqui no Cuango. Pedi-lhe que registasse para a posteridade o nosso momento de descanso, antes do jantar e do cair da noite.

Deixemos os oficiais descansar, que amanhã têm de regressar bem cedo a Quimbele. E como já não é nada cedo e amanhã, às nove horas em ponto, tenho que estar pronto para as aulas de justiça, vou pôr-me em consonância com a minha própria pessoa de há dias atrás. Vou também descansar. Retomo a escrita amanhã à noite. Acabo o relato da ida ao Cuango e ponho-me em sincronia com o momento presente. Falo-vos do meu curso e da minha já curta permanência em Carmona. Mais dois dias e devo estar de abalada, de regresso à minha Companhia.

Estes, que já estão escritos, recebê-los-ão daqui por uns dias. Vão devidamente numerados, para os poderem arquivar de acordo com a sequência. Antes do curso, dobro os aerogramas, fecho-os, faço um maço com uma cinta de papel e fita adesiva e coloco-os na caixa do correio, aproveitando o intervalo da manhã.

 

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