Um laboratório fotográfico

 

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Este diálogo com o capelão fez-me lembrar a conversa que tive, há tempos, com o comerciante que me vendeu a máquina fotográfica e me ofereceu o rolo a preto e branco para efectuar o teste. A explicação que então lhe dei foi precisamente a mesma para o capelão. E, graças a ela, seguiram-se outras perguntas. O capelão mostrou-se surpreendido com os meus conhecimentos de fotografia e foi-me tirando, como se costuma dizer, nabos da púcara. Graças a ele, em breve tinha recuado até aos meus tempos de miúdo. Foi uma conversa interessante, agradável, não sei para quem mais: se para mim, que me vi a recordar momentos que verifiquei estarem ainda profundamente gravados na minha memória; se para ele, cuja curiosidade deve ter ficado satisfeita, porque lhe falei de uma boa fatia do meu passado. Seguramente, até o pai gostaria de ter estado aqui comigo, durante esta conversa, pois falei-lhe de coisas que também a si dizem respeito.

Falei-lhe do laboratório fotográfico, que o pai montou na cave da escola, em Espinho. Será que o pai ainda se recorda desse tempo? Pois fique sabendo que ainda me lembro perfeitamente de tudo, tal como se tivesse sido ontem. Durante largos minutos, o capelão pareceu-me deliciado, é esta a palavra exacta, a ouvir-me evocar os meus tempos de infância, deveria eu ter uns sete ou oito anos. Foi uma pequena viagem no tempo. Tudo relatado com todos os pormenores, começando pelo nascer da ideia, quando o pai, durante o jantar na cozinha, conversou com a mãe acerca do seu projecto de montar um laboratório na cave da escola, para aumentar o reduzido ordenado de um professor primário e amealhar uns cobres para a compra de um carrito. Ainda se lembra disto?

No dia seguinte à conversa — e estou outra vez a rever as imagens a passarem na minha memória —, andou o pai, após as aulas, nas medições rigorosas para a projecção do laboratório: zona escura, para revelação dos rolos e ampliação das fotografias, zona iluminada a luz fluorescente, com água corrente, para lavagem e esmaltagem das provas. E depois, a ida consigo a uma serração, para aquisição das tábuas que constituíram a parede e a porta de acesso ao laboratório, no canto da cave, e também para formar o soalho e não termos de andar sobre um chão de terra batida cheio de humidade. E, depois, a construção das bancadas, para colocação do ampliador e da prensa para provas de contacto idealizada por si, e das diferentes tinas esmaltadas, que o pai foi escolher e comprar a uma fábrica de esmaltagem de recipientes de metal, existente nos arredores de Espinho, junto à linha de caminho de ferro do Vale do Vouga. Três tinas rectangulares de grandes dimensões, todas em esmalte branco. Tudo montado pelo pai, sem precisar da ajuda de ninguém, excepto do catraio que o acompanhava sempre em todos os trabalhos e lhe ia passando para as mãos os diferentes utensílios de trabalho: o serrote, a fita métrica, o martelo, os pregos, os parafusos, o fio eléctrico para montagem da instalação eléctrica, as anilhas de metal para fixação do fio às traves do tecto, etc. O único trabalho que não foi feito exclusivamente por si foi o da montagem da canalização e colocação da enorme banca de ardósia preta para a água, mandada fazer à medida do espaço pelo pai, porque, tirando isto, até a enorme mesa de madeira, onde tínhamos a esmaltadeira e as guilhotinas, foi inteiramente construída por si. Sempre com o catraio ao lado, a dar uma ajuda e a acompanhar curiosamente todas as tarefas que ia fazendo.

Creio que o meu gosto pelo «bricolage» terá começado por esta altura. E também o meu gosto pela fotografia vem seguramente desta época. Pudera! Como não haveria de vir? Com tão bom e paciente mestre, outra coisa não seria de esperar!

Agora, que já lá vão uns vinte anos bem puxados, tenho a agradecer-lhe toda a sua paciência em aturar-me e em explicar-me tudo quanto ia fazendo. E a quantidade de papel fotográfico que lhe gastei? Nunca deixou de me fornecer as folhas de que necessitava! Nunca lamentou o prejuízo que lhe dava com as minhas experiências fotográficas! Pelo contrário, incentivava-as e dava-me sempre todo o apoio necessário.

A minha evocação com o capelão não ficou por aqui. Estive longo tempo a reviver tudo isto. E ele a ouvir-me pacientemente, sempre interessado e parecendo-me, até, entusiasmado com os meus relatos. Donde posso concluir, para abreviar e não vos maçar mais com as minhas memórias, que a tarde com o capelão não poderia ter sido mais agradável. Tão agradável que nem sequer demos pela passagem do tempo!

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