Punido com sonhos adiados

 

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No regresso do passeio pelas sanzalas, a conversa mudou de tema. Deixámos o passado e voltámos ao presente. O assunto foi a presença dos oficiais da CCS na Terceira Companhia.

— Concretamente, o que é que eles vieram fazer para Quimbele, Ulisses?

— Foi por causa da bronca criada pelo furriel vagomestre, capelão. E também pelo capitão Alberto.

— Pelo capitão Alberto?

— Sim, capelão. Pelo capitão Alberto. Ele é, a meu ver, o principal responsável, o responsável máximo. E o pior é que me tramou, metendo o meu nome ao barulho.

— Meteu-te a ti ao barulho, Ulisses?

— Sim, capelão. Sem me dar conhecimento de nada, a mim, que andei sempre afastado da sede da Companhia, meteu-me ao barulho.

— Mas meteu-te ao barulho como?

— Sim, capelão, meteu-me ao barulho. Sem me dar conhecimento de nada, meteu-me ao barulho. Manteve-me sempre longe daqui: no Alto Zaza, na Quimabaca, onde lhe apeteceu. Meteu-me a mim, em vez dos alferes que estavam aqui na sede e poderiam controlar as contas.

— Não estou a entender-te. Como é que, estando tu sempre ausente, te podia meter ao barulho?

— Nomeou-me vogal da gerência administrativa, sem me ter dado o menor conhecimento, e obrigou-me, meio ano depois, a assinar os documentos.

— Como é que te podia obrigar, Ulisses? Ninguém é obrigado a assinar aquilo que não conhece.

— Pois não, capelão. Isso foi o que eu disse, na altura, que ninguém me podia obrigar a assinar o que não queria. Mas acabei por ter de assinar, para evitar problemas imediatos.

— E o que é que isto tem a ver com os oficiais?

— Vieram para eu ser ouvido no processo que está a decorrer.

— E o que é que tu disseste?

— Estava para dizer tudo tal e qual como se passou. Inclusive as ameaças, caso eu não assinasse os documentos.

— E disseste?

— Dizer disse, expliquei tudo pormenorizadamente, tal como também já tinha desabafado com o nosso capitão Glória Dias, mas nada disto ficou registado. O tenente que me ouviu, depois de lhe ter relatado tudo com toda a minúcia, tudo tal e qual como se passou, e o que eu descobri depois, quando me pus a investigar a situação, aconselhou-me aquilo que eu também já tinha pensado, ou seja, ser sintético e não contar tudo.

— Então porquê? Faltaste à verdade?

— Não faltei nada, capelão. Não podia dizer tudo, porque as minhas revelações eram demasiado graves. E poderiam trazer pesadas sanções.

— Sanções para quem? Para ti?

— Para mim não, capelão. Nunca para mim, capelão. Fui metido nisto compulsivamente e sem me ter sido dado conhecimento.

— Então para quem?

— Para o capitão Alberto. E eu concordei inteiramente com a opinião do tenente. Não quero mal a ninguém. Basta-nos o castigo de andarmos longe da família, contra nossa vontade. O capitão é miliciano como eu. Não está aqui por vontade dele. E eu até simpatizo com ele, apesar de, às vezes, ter algumas atitudes que me desagradam. Mas, mesmo assim, nunca iria tramar um camarada, capelão. Já estamos tramados por força das circunstâncias. Já nos basta andarmos por aqui, longe da família e dos amigos, longe da nossa vida normal. Não acha que isto nos basta?

— Então, disseste o quê?

— Limitei-me a dizer que desconhecia completamente o cargo que me tinham atribuído e que, durante o meio ano já decorrido, estive sempre longe da sede da Companhia. E indiquei, rigorosamente, todos os sítios por onde andei, com datas e tudo, graças aos registos da minha agenda. E frisei que só tive conhecimento dos factos quando calhou a minha vez de vir para a sede da Companhia. E que assinei apenas por confiar na palavra do capitão, garantindo-me estar tudo em ordem.

— Acho que fizeste bem, Ulisses. Seguramente que nada te acontecerá. Não tens culpa de nada.

— Ter culpa não tenho, capelão. Mas que já estou a sofrer as consequências, disso ninguém me livra.

— Como? Não estou a ver como, Ulisses. Que consequências?

— Enquanto estiver a decorrer o processo, não vou poder gozar as minhas férias. Tenho andado todo este tempo a sonhar com as férias, a precisar de ver os meus pais, de rever as minhas coisas e os meus amigos... e... e...

— E o quê?

— O quê? Não está a ver? Já estou a ser punido. Todos os meus sonhos adiados!

— Queres um conselho?

— Diga. Sabe bem que sim.

— Como é que tens ocupado os teus dias aqui na região?

— Como tenho ocupado os meus dias?

— Sim, como é que tens ocupado o teu tempo de permanência aqui?

— Então como há-de ser? O capelão sabe tão bem como eu. Tem estado frequentemente na minha companhia. Cumprindo as minhas obrigações. Convivendo e conhecendo as pessoas que me rodeiam. Escrevendo as minhas cartas para a família. Conversando com os camaradas e os civis. Conversando consigo, quando o tenho junto de mim. Descobrindo as maravilhas desta terra, que os nativos me vão mostrando, capelão. Como acha que havia de ser?

— Pois aí tens a tua resposta, Ulisses. Reside precisamente nisso o conselho que te dou. Continua a preencher o teu tempo dessa maneira. Vais ver que ele passa muito mais depressa do que pensas. E digo-te mais: ainda hás de vir a ter muitas saudades deste tempo aqui passado e de todos os amigos que vais conhecendo.

Gostaria de continuar na vossa companhia, a dar-vos conta de todos os acontecimentos. Poderia até passar ao relato, ainda que resumidamente, da minha deslocação ao Cuango, e pôr-me em dia. Mas tenho de interromper a correspondência. Já me encontro há demasiado tempo neste canto do Clube de Sanza. O ambiente começa a ficar demasiado ruidoso para o meu gosto. Quando cheguei, havia meia dúzia de pessoas, se tanto! Agora, a meio da noite, o clube está repleto. De vez em quando, sinto os olhares a voltarem-se para o meu lado. Devem estar espantados com a minha presença aqui, de caneta na mão, com uma pilha de aerogramas amarelos escritos em cima da mesa. Às tantas, devem pensar que eu já estou cacimbado. Não é que me importe com isso. O que quer que pensem a meu respeito não me afecta absolutamente nada. A única coisa que me está neste momento a perturbar é o demasiado ruído da conversa à minha volta, que interfere com os meus pensamentos. E também as horas. Já vão adiantadas. Tenho de sair amanhã de manhã, bem cedo, numa coluna militar para Carmona. E vai sendo altura de sair daqui e ir até ao quartel, na outra extremidade da vila.

Vou finalizar com a promessa de voltar a estar convosco... Talvez amanhã ou depois. Retomarei os relatos a partir de Carmona, precisamente no ponto onde hoje fiquei.

Resta-me aqui deixar a minha despedida carregada de saudades.

Vosso filho,

 

Ulisses de Almeida Ribeiro

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