Capelão ao Almoço

 

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Pegando agora nas perguntas do pai, posso desde já dizer-vos que os dois oficiais estiveram comigo apenas três dias. Levei-os para Quimbele no dia trinta de Maio. Três dias depois, dia três de Junho, uma secção trouxe-os de volta a Sanza. Era domingo. Vieram, por isso, muito cedo, a seguir ao pequeno-almoço, aqui para a sede do Batalhão. E a secção que os trouxe regressou, levando para a minha Companhia o capelão. Tive o prazer de o rever e de o ter na minha companhia e na do médico precisamente à hora do almoço.

Estávamos, eu e o médico, o doutor Graça Marques, na sala de jantar, quando ouvimos o ruído das viaturas, que pararam em frente à messe de oficiais.

— Olha, o pessoal já chegou. — disse eu para o médico. — Nem aproveitaram para dar uma volta por Sanza.

— Deviam estar com receio de perder o almoço.

— Talvez! Ou talvez não, Graça Marques. Hoje é domingo. Com tudo fechado em Sanza, não tinham onde gastar o dinheiro. Preferiram regressar a tempo da papa...

Não tive tempo de acabar a conversa com o médico. A «paparoca» foi cortada ao meio pela entrada súbita, na sala de jantar, do capelão. Com o rosto vermelhusco a contrastar com o verde do camuflado, o capelão vinha carregado com armas e bagagens. Com armas, não! Desculpem-me aí o engano. A expressão «armas e bagagens» não se pode aplicar ao nosso capelão. As bagagens, sim! Mas nunca as armas, porque ele nem sequer anda armado. Anda com a espingarda G3, porque a isso é obrigado pelas normas. Mas deixa-a sempre na cabine da viatura. É o sacrista que a traz para a messe e a põe em lugar seguro, porque as armas dele são outras. É também o sacrista, que o acompanha ultimamente, quem anda com elas. E considerar a caldeira da água benta, ou lá como se chama o recipiente com que faz as benzeduras, e os restantes objectos religiosos como armas não me parece nada adequado. E daí... Porque não armas? Não são armas para matar, mas armas para desarmar e ajudar a combater o pecado e as más ideias do pessoal.

— O capelão por aqui? — perguntei, agradavelmente surpreendido. — Bons olhos o vejam. Já cá estávamos com saudades da sua companhia.

Sorridente, o capelão largou a tralha toda e veio cumprimentar-nos.

— Chego ainda a tempo para o almoço?

— Muito a tempo! — disse o médico.

— Estamos agora mesmo no começo. Aliás, ainda nem tínhamos começado. — acrescentei eu. — Vá o capelão instalar-se. Ponha as suas coisas no meu quarto, capelão. Vai ficar comigo. É para recordarmos os nossos encontros no Alto Zaza e na Quimabaca.

— Não quero incomodar-vos. Fico onde achares melhor.

— Precisamente por isso! Fica comigo. Largue os seus pertences no meu quarto. O impedido vai ajudá-lo e indicar-lhe qual é. Depois do almoço, peço para instalarem uma cama para si. O meu quarto é espaçoso. E eu necessito de companhia, capelão. Aqui o nosso doutor está noutro quarto e eu preciso de ter alguém com quem conversar.

— Como queiras, Ulisses. Tu é que és o comandante.

— É assim mesmo, capelão.

— Se me permitem, vou então colocar as minhas coisas no quarto e lavar-me. Venho já fazer-vos companhia.

— Não tenha pressa, capelão. Temos o tempo todo por nossa conta. Hoje até é domingo. Não há nada de importante para fazer. Enquanto se refresca e muda de roupa, o impedido aproveita para arranjar o seu lugar à mesa. Nós esperamos. Não temos pressa. Passamos de quatro para três.

— Passamos de quatro para três? Como, Ulisses?

— Está bem de ver, Graça Marques. Com os oficiais que hoje foram embora, éramos quatro. Foram dois e regressou um. Logo, passamos a ser três. Três à mesa, ou não será? Três à mesa, que foi a conta que Deus fez! E este oficial é um gaio de grande categoria. Um representante de Deus. Até ficamos a ganhar!

— Estou a entender-te. Estás hoje com tendência para a brincadeira.

— Estou, Graça Marques. A presença do capelão é para mim um prazer. E hoje é domingo. É domingo e dia de cinema em Quimbele. Não podia ser melhor. Temos uma companhia agradável para o resto do dia e, logo à noite, vamos ver «O Fidalgo Mendigo». Segundo ouvi há bocado, no Briosa Bar, parece que é um filme de categoria. Por isso, parece-me que o domingo não podia correr melhor. E daqui a pouco, depois do almoço, temos um novo parceiro para discutirmos as bicas.

— Achas que o nosso capelão alinha em jogos, Ulisses?

— Porque não? Claro que alinha! Estamos em boa companhia. É um tipo impecável. Até parece que ainda não o conheces...

Não vou continuar a relatar-vos o que fiz no resto do dia. Com o capelão de visita à nossa Companhia, não podia deixar de nos correr bem. E digo «nós», porque estou também a englobar o médico. Foi um dia que culminou com um bom filme. E o seguinte, tirando a manhã, foi quase sempre passado com o capelão. Além dos problemas rotineiros, tive de dar ordens para satisfazer o pedido urgente do Cuango. De acordo com a mensagem, estão sem géneros e a pedir o reabastecimento urgente.

À hora do almoço, o Cuango foi o tema principal da conversa.

— Quem é que vai levar o reabastecimento ao Cuango?

— Vou ser eu mesmo, capelão. Vou eu, um furriel e duas secções.

— Será que eu podia ir convosco? Não conheço o Cuango e o pessoal irá certamente gostar de me ver.

— Como? O capelão ainda não foi ao Cuango? Não foi lá quando me visitou na Quimabaca?

— Não, Ulisses. Não cheguei tão longe. Sabes bem que te acompanhei em alguns recenseamentos. Estive lá perto, contigo, mas não chegámos lá.

— É isso mesmo! Tem toda a razão, capelão. Quando lá fui, fui sozinho com uma secção. E fui por causa de uma avaria. E até acabei por lá ficar mais tempo do que previra, porque uma peça do unimogue tinha de ser substituída. Estive lá encalhado cinco ou seis dias à espera que os mecânicos levassem a peça daqui de Quimbele.

— Ouve lá, Ulisses, se vocês vão os dois ao Cuango, fico cá sozinho.

— Exacto. E qual o problema, Graça Marques? Não é a primeira vez.

— Não é problema nenhum. Eu também não conheço o Cuango. Estava cá a pensar se não poderia ir convosco. Vais e vens no mesmo dia?

— Não! Isso é totalmente impossível. Se tivermos sorte, se não tivermos avarias, arrancamos daqui de madrugada e só lá estaremos à noite.

— A que horas arrancamos daqui, Ulisses? — perguntou o capelão.

— Disse ao furriel para ter todo o pessoal preparado às cinco da manhã.

— Tão cedo?

— Acha cedo, capelão? Se tudo estiver em ordem, com o pessoal pronto às cinco da manhã, nunca daqui sairemos antes da cinco e meia. É preciso carregar a Berliet com os géneros frescos. A Berliet fica carregada de véspera, mas só com os géneros não perecíveis, capelão. Antes da partida, é preciso carregar os produtos que estão nas arcas frigoríficas.

— Ouve lá, Ulisses, não me respondeste à pergunta.

— Qual pergunta, Graça Marques?

— Se posso ir ou não convosco.

— Evidentemente que sim. Não vejo qualquer inconveniente, se achas que os doentes podem passar sem ti durante dois dias. Sim, porque para ir e vir são necessários, pelo menos, dois dias.

— Dois dias completos, Ulisses.

— Sim, capelão. Dois dias completos. Ou talvez não!

— Talvez não?! Afinal são dois dias ou não?

— Se tivermos sorte, Graça Marques, talvez consigamos fazer a viagem em menos tempo.

— Não te estamos a perceber, Ulisses. — acrescentou o capelão, tão intrigado quanto o médico. — Afinal, são ou não são dois dias?

— Explica lá isso melhor, Ulisses. Estás a deixar-nos baralhados. — rematou o médico.

— Não tem nada que baralhar. Acompanhem o meu raciocínio. Na época das chuvas, uma ida ao Cuango faz-se com enormes dificuldades. Com as cargas de água que desabam, a maior parte das vezes não temos picadas.

— Não? Os turras levam-nas? — gracejou o médico.

— Não são os turras, Graça Marques. São as enxurradas. Muitas vezes temos de abrir novos caminhos, cortando as árvores da mata ao lado da picada, para criarmos novas passagens. E mesmo quando as picadas continuam no lugar, com o terreno argiloso, empapado pelas chuvas, é preciso o trabalho dos homens e dos guinchos, especialmente nas subidas mais íngremes. Mas agora a situação é outra. Agora, nesta época, penso que não vamos ter problemas destes. Penso que não. Com as picadas secas há tanto tempo, julgo que a viagem se deve fazer com maior rapidez e sem grandes trabalhos. Espero bem que sim. Se tudo correr bem, na quarta-feira estamos cá. Ainda cá chegamos a tempo do cinema.

— Então contem comigo. — rematou o médico. — Hoje deixo tudo em ordem. Por dois dias não devem surgir problemas. O enfermeiro pode bem dar conta do recado. Vou levar também a minha máquina fotográfica. Faço-te concorrência, Ulisses.

— Encantado, Graça Marques. Vai ser uma viagem com dois repórteres fotográficos: tu e eu. É pena o capelão não ter também uma máquina.

— Não é preciso, Ulisses. Vocês tiram todas as fotografias por mim.

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