Recepção do correio

 

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Arrumei toda a tralha e eis-me em Sanza Pombo. Antes disso, fechei e formei um maço com todos os aerogramas. Já devem ir ao vosso encontro, a caminho da metrópole. Não vou eu, vão as minhas palavras, carregadas de saudades, para poderem ficar na minha companhia. Já que não pode ser em corpo e alma, ao menos que seja em pensamento. Disto, pelo menos disto, creio que ninguém nos pode privar. É a grande vantagem das palavras escritas, que conseguem desafiar as distâncias e o tempo e nos permitem estar em comunhão pelo pensamento.

E sabem de onde vos escrevo? Ainda se lembram onde, há cerca de meio ano, eu festejei o meu primeiro aniversário em terras angolanas, um aniversário completamente só, com um queque e um fósforo aceso espetado no meio a fazer de vela? Faz rigorosamente meio ano no próximo dia vinte e dois deste mês! Meio ano! Tanto tempo e ainda tão poucos meses passados de comissão!

Como animal de hábitos que somos, estou sentado numa mesa do bar do Clube de Sanza Pombo, precisamente no mesmo canto onde então vos escrevi e onde, há poucos dias, estive na companhia dos amigos quimbelenses, quando viemos de Carmona e aqui parámos para almoçar. Faz amanhã quinze dias que aqui estive, na agradável companhia do grupo que se deslocou a Carmona com a equipa de futebol de salão. E aqui estou à espera de regressar à cidade de Carmona. De acordo com as indicações que me foram fornecidas, saio amanhã de manhã para a sede do sector em coluna militar. Já tenho em meu poder a guia de marcha. Vou ficar na messe de oficiais e irei ter, segundo me disseram, um curso intensivo de formação sobre justiça militar, durante cinco dias, nas instalações do Batalhão de Caçadores 12, quartel que creio situar-se nos arredores da cidade de Carmona. Como não me esqueci da máquina fotográfica, que passou a ser a minha companheira em todas as deslocações, mandar-vos-ei depois fotografias ou diapositivos.

Estou aqui sentado, tendo na minha frente alguns frequentadores do clube, que não são muitos, a esta hora. E, curiosamente, a minha imaginação começa mostrar-me a minha casa e os pais. Estou a vê-los com uma clareza impressionante! Os meus aerogramas a chegarem aí! E a serem-vos entregues em mão pelo carteiro. Pudera! Com os maços volumosos que vos envio de cada vez, nunca caberiam na estreita ranhura da caixa do correio. Consigo mesmo a visualizar a cena! Como se estivesse a ver um filme! A primeira porta a que ele se dirige, quando entra aí no prédio, é a nossa. E vai todo satisfeito bater-vos à porta, com a colecção de aerogramas na mão. Há uma saudação e breve conversa com a mãe e só depois lhe entrega as minhas colecções de aerogramas. E, neste momento, vejo a mãe a descintar os aerogramas. Está agora a lê-los em voz alta, para o pai poder ouvir o que vos relato. Até nisto verifico que é a mãe o intercomunicador entre mim e o pai! Em vez de ser ele a ler as minhas palavras, é a mãe que lhas lê. Tal e qual como quando se verifica a situação contrária. Em vez de ser o pai a dar-me o prazer da sua letra, é a mãe a retransmissora das suas palavras!

Está agora o pai a interromper a leitura e a lançar uma pergunta para o ar, que venceu a distância e me chegou aos ouvidos:

— Afinal, o que é que aconteceu ao nosso rapaz? Deixou-nos os acontecimentos em suspenso, com uma série de perguntas, e continua a falar, a falar, a falar, sem nos dizer o que lhe aconteceu. O que é que os oficiais foram fazer para Quimbele? Para que é que ele os foi buscar? Terá sido por causa da participação? E o que é que lhe aconteceu, entretanto, antes de ter deixado Quimbele para ir fazer não sei o quê para Carmona? Deixa-nos com uma série de perguntas, na última correspondência, e mantém-nos em suspenso, sem nos dizer o que lhe aconteceu durante um longo espaço de tempo!

— Tem o pai toda a razão, digo-lhe eu agora daqui de longe. Como sempre, o pai tem razão. E digo-vos mais: vou procurar dar-vos a resposta a todas as perguntas, não sem antes vos deixar também uma, para me responderem: — Será que a minha visão de há pouco bate mesmo certo com a realidade? Será que a minha correspondência vos é mesmo entregue directamente, em mãos, tal como vi, com tanta nitidez, graças à minha imaginação? Ou será apenas isto: imaginação? Não terá sido apenas uma forma do meu subconsciente me ajudar a amenizar as saudades desta já tão longa separação?

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