Mensagem muito urgente |
Sanza Pombo, 9 de Junho de 1973
Há dois dias, deixei a minha correspondência precisamente a meio, porque não consegui continuá-la. Precisamente isto e nada mais do que isto: não consegui continuá-la! A ideia das minhas férias adiadas para data incerta criou-me uma estranha sensação de vazio e de revolta. Sensação de tal modo forte, que peguei na caneta e nos aerogramas e atirei tudo para cima da cama; e saí da messe, apesar da madrugada ir avançada. Desta vez não foi para verificar a segurança da vila, que já não é da minha responsabilidade, mas para andar pelas ruas, aliviando a tensão nervosa com a frescura da noite. Andei ao acaso pelas ruas desertas de Quimbele, até que me passou a neura (chamemos-lhe assim, para não dizer outra coisa!) e recuperei o sono e a vontade de me recolher ao conforto da messe e de me enfiar na cama. Mal adivinhava que, logo a seguir ao pequeno-almoço, seria chamado pelo capitão para ir depressa ao gabinete do comando decifrar uma mensagem com a indicação de «Muito Urgente». Mesmo que o capitão não me tivesse chamado, não deixaria de passar pelo edifício do comando, não para verificar os problemas e a papelada da Companhia, mas para dar dois dedos de conversa com o sargento e debruçar-me sobre os processos que estão a meu cargo. Quase a chegar ao edifício do comando, fui desviado pelo moço das transmissões, que estava à entrada do edifício. — Meu alferes, podia aqui chegar? Aproximei-me do rapaz, dei-lhe os bons-dias e perguntei-lhe o que se passava. — Meu alferes, logo pela madrugada, chegou uma mensagem com a indicação de «Muito Urgente». Já a entreguei no gabinete do nosso capitão. Mas como o meu camarada de Sanza me disse que a mensagem era muito urgente e que era para o nosso alferes, chamei-o para lhe dar o recado. — Fizeste bem, obrigado. Como é que ele soube que é para mim, se as mensagens vêm cifradas? — Certamente recebeu as ordens para isso, alferes. Eles devem saber que o alferes já não está mais à frente da companhia. E como, se calhar, é destinada ao meu alferes, foram-me dizendo para o mandar prevenir. — Talvez seja isso! Obrigado pelo teu cuidado. Vou já ver do que se trata. Mesmo que não me avisasses, já sabia da mensagem. O nosso capitão nem me deixou tomar o pequeno-almoço nas calmas. Mandou-me chamar, que lá fosse ao gabinete dele. E é para lá que me estava a dirigir, quando me chamaste. Obrigado pelo teu cuidado. — De nada, alferes. Temos de ser uns para os outros. Entrei no edifício do comando, passei muito rapidamente pela secretaria, para cumprimentar o sargento e restante pessoal, e dirigi-me ao gabinete do capitão. Dei duas pancadas breves na porta, abri-a e pedi licença para entrar: — O meu capitão dá-me licença? — Entra, Ulisses. Deixa-te de formalidades e toma lá isto. Tens aqui uma mensagem com a indicação de «Muito Urgente». Vê lá o que esta charada diz. Estás mais treinado nisto do que eu. Peguei na mensagem já aberta, numa folha de papel quadriculado e no livro das cifras e preparava-me para ir para a secretaria decifrar a mensagem... — Ouve lá? Para onde é que vais? A mensagem é para decifrar aqui mesmo. — Onde? Tenho de me sentar para fazer o trabalho. — Tens aqui a minha secretária. Puxas duma cadeira e sentas-te aqui mesmo, numa extremidade. Não tens que sair do gabinete. Lá por estar aqui eu, não significa que não possas usar a minha secretária. Puxei de uma cadeira, afastei a papelada que estava espalhada em cima da mesa, completamente fora da ordem e arrumação em que a costumava ter, pousei a folha nova de papel quadriculado e o livro das cifras e dei início ao meu «passatempo» na descoberta do conteúdo. A mensagem era relativamente breve. Com todas as letras em maiúsculas distribuídas no quadrado de X por Y de lado, procurei destacar as palavras da mensagem: «ALF ULISSES VIR HOJE MANHA COL REAB SANZA AGUARDA AQUI COL CARMONA PREPARADO ESTADIA VARIOS DIAS». Encontradas as palavras-chave, voltei a ler reflectidamente, completando o texto da mensagem com as palavras omitidas para redução do tamanho e maior rapidez, não apenas na cifração e decifração da mensagem, mas também na sua transmissão pela rádio. A fim de facilitar a leitura, transformei-a num texto completo, que registei numa folha branca e entreguei ao capitão: «Alferes Ulisses deve vir hoje de manhã numa coluna de reabastecimento para Sanza Pombo, onde aguardará uma coluna militar de Sanza Pombo para Carmona. Deve vir preparado para uma estadia de vários dias.» Entreguei-a e fui adiantando: — Já estou lixado. Agora é que não tenho dúvidas! As minhas férias já foram para o galheiro! Estão mesmo estragadas! E tenho de ir, ainda hoje de manhã, para Sanza. É preciso organizar rapidamente uma coluna de reab para Sanza, capitão. E vai cá ficar sem mim. Só com o médico, como me sucedeu por várias vezes. — O que queres que te faça? Já te tinha dito que as nossas férias estavam estragadas. Trata de ir rapidamente falar com o furriel de serviço e vejam se arrancam daqui rapidamente, para chegarem a Sanza ainda a tempo do almoço. — Vou já tratar de tudo e preparar a trouxa para abalar. Vou fazer o que o Zeca diz na cantiga. — Que Zeca? — O Zeca Afonso. Não é ele que diz, não me lembra em que cantiga, que está na hora de fazer ou de embalar a trouxa? — Olha que carago! Eu é que sei?! Às vezes sais-te com cada uma. — Então não é, capitão? Não era o que dizia o LP que saiu pouco tempo antes de termos embarcado para aqui para Angola? — Eu é que sei? Põe-te mas é a andar, que o tempo não pára. Olha, e uma boa estadia lá para onde fores. — Obrigado, capitão. Há-de ser boa, se não continuar com os problemas do estômago. Mas não há-de ser nada. Cá me hei-de safar! Eis o que se passou, resumidamente, ontem de manhã. Estão agora a perceber por que razão esta colecção de aerogramas vai com a indicação de Sanza Pombo? Parece que adivinhava, quando me enervei ao pensar nas minhas férias. Não parece que estava mesmo a adivinhar? Eu, de madrugada, a aliviar o stress nas ruas desertas da vila e, quem sabe se não ao mesmo tempo, a mensagem a ser preparada para eu a receber na manhã do mesmo dia. |