Manhã em Carmona

 
 


 
 

Faz hoje oito dias, acordei muito cedo com a barulheira vinda da rua. Fiquei num quarto voltado para a avenida principal, com uma ampla janela que deixa entrar a luz e o ruído. Por curiosidade, para saber qual a causa, abri-a. Deparei com uma visão de cima de toda a rua onde ontem estacionámos. Agora, à luz do sol, o grande colorista, no dizer de Cesário Verde num dos seus poemas, as impressões são outras. A avenida é enorme, com edifícios modernos ligeiramente mais baixos do que o andar em que me encontro. Para um lado, nota-se uma curvatura ligeira, entre este local e a praceta circular que ontem contornei e que irei ver melhor, dentro de alguns minutos, depois de me arranjar e tomar o pequeno-almoço; para o outro, a vista perde-se na distância. Do lado oposto da rua, à minha direita, não há um único lugar livre para estacionar. Além de viaturas ligeiras, encontram-se alguns camiões, longos como comboios, devido aos atrelados, quase tão compridos como os camiões que os puxam. E dentro, nas caixas abertas, cargas de natureza vária. No que se encontra quase por baixo de mim, vêem-se enormes fardos empilhados. Os camionistas deverão ter feito o mesmo que nós. Talvez tenham aqui ficado a passar a noite para irem para outros locais; ou, então, mais provavelmente, estarão à espera da hora para desembarcarem as mercadorias aqui mesmo, em Carmona.

A fim de não esquecer o espectáculo de uma rua movimentada como esta da cidade onde me encontro, tirei a máquina fotográfica da maleta e procurei registar algumas imagens. Não directamente da janela, mas de outro local. Só depois desbastei a barba, que já ia longa de dois dias. Enfiei-me debaixo do chuveiro, arranjei-me e saí para o pequeno-almoço, com ar veraneante, de máquina a tiracolo e com uma imensa vontade de partir à descoberta da cidade.

— Afinal o nosso alferes não se esqueceu da máquina! — foi a exclamação que se ouviu quando entrei na sala de jantar, dita em voz clara e sonora para todos os que se encontravam ali.

Cumprimentei toda a gente, que ainda não era muita, e aproveitei para dar a resposta:

— O alferes Ulisses nunca se esquece daquilo que é importante. Não ia perder a oportunidade da vinda a Carmona para ficar com uma boa recordação desta terra. E espero que vocês me ajudem a melhorar ainda mais este dia.

— E como é que devemos fazer para o ajudar, alferes? — perguntou o furriel que integra a equipa de futebol.

— É muito fácil! — acrescentei. — Logo à noite, concentrem-se no jogo. Mostrem o vosso valor. Mostrem que os Tigres de Quimbele sabem rosnar alto, para levarmos connosco o troféu.

— Ó alferes, isso já está no papo! Acha que viemos para perder?

— Não cante vitória antes do tempo, Galvão. Logo é que vos quero ver. Se chegámos à final, também os nossos oponentes conseguiram chegar. E se chegaram é porque também são bons.

— Mas nós somos melhores do que eles, alferes. — acrescentou outro elemento, reforçando a opinião do furriel.

— Pois sim! Fiem-se na Virgem, não se acautelem, e depois verão a cara com que ficam.

— De vitória, certamente, alferes. Não seja pessimista. Não o vamos desiludir. Esteja descansado!

— Espero bem que não! De qualquer modo, já estou a dever-vos um grande favor.

— A nós, alferes? Como assim? Não o estamos a perceber.

— Não percebem, mas eu explico. Graças a vocês, já estou a ganhar um fim-de-semana diferente. Só por isto, já estou satisfeito convosco. Mas, se ganharmos, mais contente ficarei.

— Pois pode ter a certeza que vai ficar! — rematou o Galvão, muito confiante na vitória.

Tomei uma chávena de leite com uma torrada e levantei-me da mesa.

— O alferes já vai embora? Ainda é cedo. Nem oito e meia são!

— Vou. O sol já vai alto e o dia passa muito depressa. Posso não ter tempo para ver toda a cidade. Vou aproveitar bem a manhã, que o dia está famoso. Alguém quer fazer-me companhia?

Saí sozinho do hotel. Os poucos elementos da equipa já a pé estavam mais interessados em aproveitar para tomar um pequeno-almoço reforçado e conversar um pouco. Saí sozinho, de máquina a tiracolo, e enfiei no sentido da praceta.

Fora do hotel e ao nível da rua, o panorama é diferente! Deixam de se ver os telhados, mas passa a perceber-se melhor a altura dos edifícios. Antes de me pôr a caminho da praceta, peguei na máquina. Fotografei a avenida e segui na direcção pretendida, em passo lento, para saborear melhor o trajecto e ver as montras. Em breve, estava na praceta circular, mesmo à entrada da comprida avenida onde se encontra o hotel.

Admirei pormenorizadamente o busto de Ricardo de Matos Gaspar, uma figura importante que terá contribuído, segundo a legenda, para o progresso de Carmona. De repente, ouviu-se um clique no meu cérebro. Lembrei-me da marca de café que vem nos pacotes que costumo comprar: RIMAGA. Exacto! Não é mais do que o acrónimo formado pelas sílabas iniciais da figura representada na minha frente.

 
 
 
 
 

Mudei para o passeio do outro lado da praceta, para aumentar a distância. Procurei um bom enquadramento, permitindo-me obter todo o conjunto formado pelo monumento e praceta circular. Foquei, regulei a luz e carreguei no disparador. Em seguida, afastei-me ainda mais, continuando pela ampla avenida que se prolonga depois da praceta e obtive uma panorâmica do local, mostrando os modernos edifícios que se erguem na área por onde entrámos na cidade. E como não devia estar longe da escola que ontem vira, procurei orientar-me e dirigir-me para lá. Consultei as horas e fiquei surpreendido! Já dez da manhã? Como pode ser? Ainda há pouco eram oito e meia! Certamente, já não seriam! Levantei-me cedo, é certo. Perdi depois uns longos minutos à janela, a admirar a rua. É verdade! Depois, quando fui buscar a máquina, não gostei do enquadramento. Saí do quarto em pijama e pedi para ir ao terraço do hotel, de onde obtive toda a panorâmica da rua. Só depois disto é que me arranjei para ir tomar o pequeno-almoço. E depois ainda a conversa na sala de jantar. Tomar e não tomar o pequeno-almoço mais os dois dedos de conversa, quando falei com o pessoal, tudo isto leva o seu tempo! Por isso, quando saí do hotel já devia ser muito mais tarde. Somando os largos minutos que estive a apreciar o busto de Ricardo de Matos Gaspar e a ler a longa inscrição no pedestal, os ponteiros não se esqueceram de avançar. E avançaram muito mais depressa, com muito maior velocidade, sem eu dar por isso. Quando estamos distraídos e entusiasmados com qualquer coisa, a admirar as novidades e o que nos dá prazer, o tempo ganha asas, como que acelera e nem damos por ele. Não é, pois, de admirar que já seja tão tarde! Com esta reflexão, acabo de desperdiçar uma série de minutos. Por este andar, não vou ter tempo de ficar a conhecer Carmona. É melhor apressar o passo e meter-me a caminho.

Estava imerso nas reflexões acerca da passagem brusca do tempo, a decidir o que melhor fazer para o recuperar, quando ouvi um ruído forte de travões mesmo ao meu lado. Dei um salto contra vontade e saí do estado de reflexão em que me encontrava. Olhei para ver o que era.

A meu lado, junto ao passeio, parara bruscamente uma moderna viatura, um Mercedes novo.

— O alferes anda por aqui sozinho a passear?

Olhei melhor, para ver a janela que se abria do meu lado. Esticado, quase deitado sobre o banco ao lado do condutor, o senhor Sílvio olhava-me sorridente pela janela que acabara de abrir.

— Bom dia, senhor Sílvio. Que agradável surpresa vê-lo aqui.

— Venho de casa de uns amigos. O alferes anda a passear? Parece que apanhou um valente susto, a avaliar pelo salto que deu quando travei junto de si.

— Exactamente, senhor Sílvio. Estava agora mesmo absorvido nos meus pensamentos por causa do raio do tempo. Parece-me que as horas me estão a fugir com demasiada rapidez. Se assim continuam, não vou ter tempo de ficar a conhecer Carmona.

— Não vai ter falta de tempo, alferes. Comigo aqui não vai ter esse problema. Vai passar o resto do tempo na minha companhia. Conheço bem Carmona. Como os meus dedos! Venho cá muitas vezes para tratar de negócios. Entre. Sente-se aqui, ao meu lado. Vamos parar no centro. Depois, no resto da manhã, damos uma volta a pé. Mostro-lhe a cidade num instante. Fica a conhecer tudo o que há de mais importante no centro da cidade. E depois vai almoçar comigo. Vou-o levar ao restaurante do aeroporto.

— Importa-se, antes de pararmos no centro, de seguir pela rua da escola onde ontem à noite passámos? Gostava de lhe tirar uma fotografia.

— De modo nenhum, alferes. Entre, entre.

Abri a porta e sentei-me ao lado do condutor. Segundos depois:

— Aqui tem a escola que queria fotografar. É a Escola Industrial e Comercial de Carmona. É uma escola moderna e bem apetrechada.

Saí do carro. No recreio, ao lado do edifício, miúdas de bata branca divertiam-se, gozando os breves minutos do intervalo. Tirei a fotografia e voltei a entrar no carro.

— Antes de pararmos no centro, alferes, vou aproveitar agora para dar uma volta pelos bairros periféricos e lhos mostrar. São todos bairros modernos e bem arranjados. Depois, seguimos para o centro e, depois do meio-dia, seguimos para o aeroporto.

— O senhor Sílvio é quem sabe. Eu vou para onde me quiser levar.

Em breve, graças ao meu simpático cicerone, tinha um rolo de diapositivos a mais de meio. Depois dos bairros modernos, com belíssimas vivendas com jardins na frente e ruas com duas vias também ajardinadas, foram os principais edifícios de Carmona: o Palácio da Justiça, com dois citroënes dois cavalos parados na frente, a estragarem-me o enquadramento; o Comando da Zona Militar Norte, com a respectiva sentinela à entrada; o Banco de Angola, um belíssimo edifício cor-de-rosa, ocupando todo um quarteirão, numa rua ampla com belas palmeiras e passeios de cimento; o edifício térreo do Comando da PSP no meio de antenas de rádio; o Posto da Administração Civil de Carmona, na extremidade de uma praceta circular devidamente ajardinada; a Hospedaria Trasmontana, onde ontem estive com camaradas antes do tocar a recolher; a Avenida de Portugal, ainda com alguns espaços à espera de novos edifícios; em suma, tudo quanto era importante e se me afigurou digno de registo fotográfico.

— Que lhe dizia eu, alferes? Daqui a pouco tem o rolo gasto.

— De facto, senhor Sílvio, o seu aparecimento foi providencial. Tenho todos os deuses a meu favor. Foram eles que me levaram para o local onde o senhor haveria de passar. O senhor Sílvio vinha de algum dos modernos bairros que me mostrou?

— Fiquei em casa de uns amigos.

— De uns amigos? Não ficou no hotel?

— Não. Tenho cá amigos.

— Estava convencido que tinha ficado no mesmo hotel que nós. Quando ontem nos disse que tínhamos que nos instalar no hotel, pensei que também lá tivesse ficado.

— Não. Enquanto vocês se instalaram, fui eu a casa de uns amigos. Não me deixaram ficar no hotel. Passei o serão com eles e dormi lá em casa. Moram num dos bairros modernos que lhe mostrei.

— É o que eu digo: foi a divina Providência que me afastou e fez parar uns minutos, absorto, a cogitar sobre o tempo, no preciso local onde o senhor ia ter de passar. De outro modo, nunca poderíamos ter-nos encontrado. E lá se ia o prazer da sua companhia!

— O alferes acha mesmo?

— Claro! Que outra coisa podia ser? Coincidências destas não acontecem muitas vezes. Devo ter todos os santos lá de cima a darem-me cobertura. Se isto assim continua, acabo por ter de dar razão ao furriel.

— Ao furriel?!

— Sim, ao furriel Galvão.

— Ora explique lá isso melhor, que não o estou a entender.

— Ao pequeno-almoço, quando falei com o pessoal, verifiquei que ele está convencido da vitória logo à noite.

— Isso é bom sinal, alferes.

— Não sei se será! Às vezes, os excessos de confiança dão para o torto, senhor Sílvio.

— Espero bem que não, alferes. Perder por perder, que percam os outros. Seria uma grande decepção para todos os quimbelenses.

— Para todos?

— Sim, alferes, para todos. Mesmo os que não vieram connosco, os que não puderam vir e ficaram em Quimbele, até esses estão com fé na vitória. Por isso é que eu lhe digo que seria uma grande decepção para todos.

— Queira Deus que esteja tudo do nosso lado!

— Há de estar, alferes. E agora, acho bem sairmos daqui de Carmona.

— Sair daqui? Para onde, senhor Sílvio?

— Não quer ir almoçar?

— Claro que sim.

— Então está na hora de voltarmos para o carro e parar com as fotografias. Vamos almoçar no restaurante do aeroporto, como lhe disse. Daqui até lá são cerca de cinco quilómetros. Não é que seja longe, alferes, mas não quer ficar a conhecer o aeroporto e tirar também umas fotografias?

— Isso nem se pergunta.

— Então temos de nos despachar. Temos de ir buscar o carro.

— Não está longe daqui. São só uns minutos.

Durante o percurso até ao carro, demos de caras com o senhor Amândio.

— Vocês aqui? — perguntou o senhor Amândio, surpreendido por nos encontrar.

— Tenho andado toda a manhã a mostrar Carmona ao nosso alferes Ulisses. Vamos agora para o carro. Vamos almoçar ao aeroporto.

— Ao aeroporto? A esta hora?

— Ainda não é tarde, Amândio.

— Isso é um disparate.

— Um disparate?

— Sim! Há sítios muito melhores aqui mesmo em Carmona. Não precisam de andar cinco quilómetros para almoçarem.

— Não é só por isso. É também para mostrar o aeroporto ao nosso alferes.

— Isso tem tempo. Logo à tarde. Depois do almoço. Vou também eu convosco. Venham agora daí comigo. Vamos ao Chope-Chope. Come-se lá muito bem e barato. — rematou o senhor Amândio, convencendo-nos e levando-nos com ele.

Estou convencido, agora mais do que nunca, que a divina Providência, neste sábado, dia 26 de Maio, estava do meu lado. Logo pela manhã, deambulando sozinho pela cidade, tive imprevistamente a companhia do senhor Sílvio. Pouco depois, sem contarmos, aparece-nos o Senhor Amândio a levar-nos para um restaurante onde almoçámos muitíssimo bem. Eu mesmo, que ando de dieta, tive um almoço que não me fez mal e me soube lindamente: um suculento bife grelhado, acompanhado com batatas cozidas e couves, tudo muito bem regado com azeite de qualidade. E não é que me caiu mesmo bem?! Ficou tudo no estômago, sem me ter visto nem grego nem troiano, nas habituais aflições de carga ao mar pouco depois das refeições, que me têm andado a fazer emagrecer demasiado e a andar de dieta rigorosa. Sempre bem disposto durante todo o dia, sem me lembrar dos problemas causados pelas dores de estômago e rejeição da comida. Isto se não contar com a indisposição à noite, para me recordar que não posso deixar de ter cuidado com a boca.

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