Chegada a Carmona

 

Posso agora confirmar que as previsões do meu interlocutor saíram rigorosamente certas. Às quatro e meia, estávamos a caminho. Com uma estrada perfeitamente asfaltada, com pouco movimento e longas rectas, mantivemos uma velocidade moderada, quase sempre entre os noventa e os cento e vinte quilómetros por hora. E isto nem foi velocidade elevada, atendendo às modernas e potentes viaturas da maioria dos civis da nossa claque desportiva. Foi, sem dúvida, uma viagem muito melhor e muito mais cómoda do que andar nas estafadas e ronceiras viaturas que equipam a nossa Companhia. Exceptuando a Berliet, que foi estreada por nós, já deveriam estar todas na reforma. Mas, mesmo sendo nova, nem a Berliet se pode comparar, em comodidade e velocidade, aos Mercedes e BMWs de alguns civis.

— Está a ver ali aquele clarão e aquelas primeiras luzes? O que é que lhe tínhamos dito? Estamos quase a chegar. Ainda nem são oito da noite e já temos Carmona à vista. Daqui a pouco estamos no hotel.

De facto, ao longe, destacando-se do fundo escuro da mata cerrada que envolve toda a estrada, cujo recorte se consegue distinguir perfeitamente contra o escuro de uma noite estrelada, viam-se, aqui e ali, as primeiras luzes eléctricas da cidade. E por cima, embaciando a luminosidade de uma noite ponteada de diamantes, distinguia-se uma enorme mancha clara, própria da iluminação de uma grande cidade: Carmona.

Acabámos de entrar na sede do sector. Com os carros em marcha moderada, uns atrás dos outros, parece que vamos num cortejo de casamento.

— Repare nestas modernas avenidas, alferes. Carmona é uma cidade moderna, em grande progresso...

— Estava precisamente a reparar nisso! — disse, cortando involuntariamente a apresentação que o meu companheiro de viagem me estava a fazer. Parece-me, agora à luz da iluminação eléctrica, uma cidade onde, certamente, não me importaria de viver. Aquele edifício moderno, ali ao lado, deve ser uma escola.

— E é mesmo, alferes. Como é que adivinhou?

— Pelas dimensões e formato. Apesar de ser de noite, fez-me lembrar uma escola técnica. E quase de certeza que aquele edifício ao lado dos outros, constituído por arcos que formam uma cúpula elíptica, deve ser um pavilhão gimnodesportivo.

Sempre em marcha lenta, para não nos afastarmos uns dos outros, e talvez porque os condutores estariam também a fazer uma breve apresentação da cidade, contornámos uma praceta circular, tendo ao centro o busto de uma personalidade. Entrámos numa ampla avenida, quase rectilínea, não fosse uma ligeira curvatura para a direita, com modernos edifícios de cada lado. Afastámo-nos uns quinhentos metros da praceta e estacionámos.

— Estamos chegados, alferes.

— É aqui?

— Precisamente! Andamos cheios de sorte!

— Sorte?! Porquê?

— Porque, a esta hora, temos lugares para estacionar. Se aqui tivéssemos chegado a meio da tarde, não conseguíamos ficar ao pé do hotel. Esta rua é muito movimentada. É difícil arranjar lugar no sítio que queremos.

Pouco depois, estávamos reunidos à entrada do hotel. Olhei para cima e vi o reclame: «Hotel Apolo».

— Sim senhor! Temos um nome mesmo a condizer comigo.

— A condizer com o alferes? — perguntou-me um dos quimbelenses, intrigado sem perceber a razão da minha afirmação.

— Está a condizer com o meu nome. Eu chamo-me Ulisses, como vocês estão fartos de saber. Ulisses é um nome de origem grega. É um herói que ficou célebre na História. Andou longe de casa e da família durante um larguíssimo período de tempo. Fartou-se de correr mundo, mas nunca chegou tão longe como nós. Passou apenas de fugida por Lisboa, que ainda não existia, e andou cheio de sorte. Se fosse agora ainda era capaz de ser mobilizado e vir aqui parar como eu e os meus camaradas. E Apolo é o nome de um deus da mitologia. Não podia ser maior a coincidência! Só falta que nos apareça aqui um Zeus, para ficarmos instalados em casa dos deuses.

— Um Zeus, alferes? Quem é?

— Zeus é o pai dos deuses, o senhor do Olimpo, o mesmo que Júpiter. Um é grego e o outro é romano. Mas não deixam de ser o mesmo deus. Não me digam que já se esqueceram daquilo que estudaram no liceu. Não se recordam da mitologia utilizada pelo nosso poeta, pelo nosso épico, por Luís Vaz de Camões?

— Ó alferes, onde é que isso já vai! Já fizemos o quinto ano há muito tempo.

— Este é o melhor hotel da cidade. — acrescentou outro civil, quando me viu levantar novamente a cabeça, para verificar o nome, e começar a registá-lo na agenda, que acabara de tirar do bolso. — O alferes está a fazer os seus registos?

— Estou, pois, senhor Sílvio. — E para melhor o esclarecer, bem como os restantes elementos que observavam, cheios de curiosidade, o que eu estava a fazer, acrescentei: Isto está para mim como o diário de bordo para os comandantes dos navios!

Verifiquei que alguns dos meus companheiros me olharam intrigados, com cara de caso, como de quem não percebeu patavina do que acabara de dizer. Antes que me pedissem esclarecimentos, expliquei o que pretendia dizer:

— Esta agenda é para mim equivalente, isto é, igual ao registo que os comandantes dos navios fazem diariamente no chamado livro de bordo. Tudo quanto se passa a bordo, as partidas, as chegadas, os lugares por onde passam e os acontecimentos diários têm de ser por eles registados no livro de bordo. A minha agenda é precisamente como um livro de registo diário. Aqui registo, meticulosamente, tudo quanto faço e por onde ando.

— Tudo, alferes? Nesse espaço minúsculo com meia dúzia de linhas? — observou o Sr. Amândio, que acabara de deitar uma olhadela furtiva para a agenda que eu tinha na mão.

— Tudo, pois! Mas de maneira sintética. Apenas os elementos mais importantes, para mais tarde poder facilmente reconstituir os acontecimentos. Por exemplo, neste preciso momento, acabei de registar a nossa hora de partida e chegada. Querem saber o que acabei de escrever relativamente a este momento? Apenas isto: «Saí às 16:30 com o Torres para Carmona. Chegámos eram 20:00 horas. Instalei-me no Hotel Apolo.» Estão agora a perceber por que razão olhei para cima? Precisamente para confirmar o nome do hotel. Penso que não me enganei. Não é aqui que vamos ficar todos instalados?

— É pois, alferes. E bem instalados. Este é o melhor hotel da cidade. Tem capacidade de sobra para todos. E, por duas noites apenas, não arromba as finanças de ninguém!

— Penso que ninguém está preocupado com isso. E faço de todos esta minha opinião. Pelo menos da malta militar que pertence à equipa. Em Quimbele e no meio do mato, não há onde gastar o dinheiro. A malta deve ter dinheiro acumulado. E, se não tiver, penso que deverão existir algumas verbas para estes fins. Até porque é o valor dos Tigres de Quimbele que está aqui em jogo. O que importa é que estejamos todos juntos.

— E vamos estar, alferes. Cabe cá toda a gente e ainda vai sobrar espaço.

— Isso é óptimo. Todos juntos, para gozarmos, de maneira agradável e desportivamente, um fim-de-semana. Até porque, por aquilo que penso, vêm aí uns dias de muito trabalho.

— Muito trabalho porquê, alferes?

— Penso que a Terceira Companhia vai ter um período de muita operação no meio do mato. Por isso, é aproveitar estes momentos para mostrar o valor do pessoal militar.

— E não só, alferes. E o pessoal civil que faz parte da equipa? Está a esquecê-lo?

— Claro! Civis e militares. Quando penso no meu pessoal, estou também a pensar em todos nós, civis e militares. Nós não pertencemos a Quimbele? Não somos os Tigres de Quimbele? Não é para proteger toda a gente que aqui estamos? Neste momento somos todos quimbelenses!

Em ar de brincadeira, acrescentei: Está a ver aqui algum militar? Que eu veja, só aqui estão civis. E todos com vontade de conhecer uma nova cidade, de gozar o melhor possível este fim-de-semana e, sobretudo, de levar para Quimbele os louros da vitória.

— Mas o meu alferes esqueceu-se de uma coisa importante. — disse um dos meus elementos, metendo-se na conversa.

— Esqueci-me? De quê?

— Da máquina fotográfica, alferes.

— É preciso instalarmo-nos e ir jantar. — disse o Sr. Sílvio, cortando-nos a conversa à entrada do hotel. — Como é? Encontramo-nos aqui no átrio? Quinze minutos dão perfeitamente para nos instalarmos. Às oito e meia aqui?

Concordámos todos. Ocupámos os nossos quartos, largámos a tralha que trazíamos e, à hora indicada, estávamos novamente reunidos. O Sr. Sílvio alvitrou:

— Somos muitos. Penso que o melhor era formarmos pequenos grupos e procurarmos diferentes lugares para comer. Se entramos todos juntos num restaurante ou nalgum café, nunca mais nos despacham.

— Não andamos juntos? — perguntou um elemento da equipa.

— Se entramos todos no mesmo restaurante, a esta hora, — voltou a explicar o Sr. Sílvio — nunca mais somos atendidos. De certeza que querem começar a conhecer a cidade, que querem dar umas voltas por aqui. Esta é uma das ruas principais. Quase todas se cruzam com esta, desde que andem aqui pela zona central e não se afastem para a periferia. Por isso, ninguém se perde. É muito fácil dar com o hotel. Com grupos mais pequenos é fácil. Além disso, alguns de nós temos aqui gente conhecida e familiares. Gostávamos de aproveitar, já que aqui estamos, para os ir visitar.

— De facto, o Sr. Sílvio tem toda a razão, pessoal! — acrescentei eu, procurando fazer entender as razões do Sr. Sílvio. — Não temos o direito de nos empatarmos uns aos outros e obrigar os nossos condutores a andarem sempre na nossa companhia. Somos todos adultos. E quem tem boca vai a Roma. Por isso, é melhor seguirmos a sugestão. Está aqui malta jovem de Quimbele que já conhece Carmona. Distribuem-se pelos outros e formam pequenos grupos, enquadrando a malta que aqui está pela primeira vez. Pela minha parte, eu nem me importo de andar sozinho. Não me perco. Por isso, quem quiser andar comigo, tudo bem! Tudo o que é preciso é que, amanhã, uma hora ou hora e meia antes do jogo, a malta se encontre toda no mesmo local. E o melhor local, parece-me, é precisamente aqui. Vamos todos juntos para o pavilhão desportivo.

Não vou alongar-me mais com pormenores acerca dos nossos primeiros momentos em Carmona. Para ser breve, antes de mudar a folha do calendário, bastará dizer que andei o resto da noite com três elementos do pessoal da minha Companhia. Deambulando pelas amplas e bem iluminadas avenidas, fomos dar a um antigo edifício térreo com telhado de chapas onduladas de zinco, transformado numa hospedaria. Entrámos. Gostámos do ambiente e petiscámos qualquer coisa. E como pouco movimento havia àquela hora na cidade e pouco para ver, regressámos cedo ao hotel.

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