Preocupações

 

Disse eu, lá atrás, que no meio do caos em que ando, o seu aerograma foi como um oásis num deserto. De facto, tirando alguns momentos, a minha Companhia tem andado metida no meio do caos. Mas, atenção! Quando digo caos, não quero com isto significar que reine aqui a desorganização, o salve-se quem puder. Pelo contrário! Enquanto eu estiver à frente da Companhia, anda tudo muito direito e bastante controlado, tanto quanto a minha fraca natureza humana o permite. O caos a que me refiro é de outra natureza. Tirando uns momentos de grande prazer, que me deram plena satisfação, a Companhia tem andado numa roda viva, sempre de um lado para o outro, envolvida em operações umas atrás das outras no meio do mato. E tenho escapado a elas por estar a comandar a Companhia e andar numa guerra diabólica de papéis, tudo por causa dos processos que me caem em cima. Até já desabafei por causa disto! Se a minha especialidade fosse o Direito, ainda vá que não vá! Estaria até como peixe dentro de água. Agora, uma pessoa de Letras, toda voltada para as literaturas e as linguísticas, ter de andar às voltas com esta linguagem jurídica estereotipada e a ter de ouvir este e aquele, por esta e aquela razão, é que não tem piada nenhuma. Não me bastavam as horas que perco com as charadas das mensagens a cifrar e a decifrar e ainda tenho de gramar com isto?!

Até o médico se tem queixado da minha falta de companhia! Diz ele que lhe desapareci das vistas e que passo horas no gabinete às voltas com os papéis. Mas também não é inteiramente verdade. Segui, pontualmente, os treinos da equipa. E têm-me valido, ultimamente, os serões agradáveis em casa de alguns civis, que me têm impedido de pegar na caneta e conversar convosco. Depois da retumbante vitória da nossa equipa em Carmona e do entusiasmo contagiante entre todos, os civis parece que passaram a simpatizar mais comigo. Têm-me convidado assiduamente para uns serões agradáveis, mesmo andando eu de dieta rigorosa. E o médico não se pode queixar da minha falta de atenção para com ele, porque também me tem acompanhado nestes momentos. Significa isto que, neste lapso de tempo, entre esta colecção de aerogramas e a última que vos escrevi, há muita coisa para pôr em dia. E antes que este comece e acabe a noite, aproveitemos o sossego do meu quarto para revermos os acontecimentos.

Estou agora a olhar para o meu relógio e a imaginá-lo como se fosse uma máquina do tempo. Máquina do tempo até é, na medida em que marca o tempo que nos vai escapando por entre os dedos. Mas não é destas máquinas que estou agora a imaginar. Estou a vê-la como uma máquina que me permitisse andar com os ponteiros para trás, fazendo-me recuar com eles. E porque não? Se é isto mesmo o que tenho que fazer! Pois andemos com eles para trás! Acabo de levantar a tampa preta de cabedal que o protege, quando andamos no mato, e estou mesmo a ver-lhe os ponteiros a girar em sentido contrário. E não é que pararam mesmo no ponto exacto? Precisamente a meio da manhã do vinte e cinco de Maio, uma sexta-feira como hoje. Como hoje? Exacto! O meu Caunymatic apresenta justamente a indicação de sexta-feira, o que significa que já não estou no mesmo dia em que comecei a escrever-vos, porque passa muito da meia-noite.

Estou neste momento no gabinete do comando a verificar a escala de serviço para o fim-de-semana e toda uma série de papelada que me colocaram sobre a secretária. Acaba de me entrar no gabinete o sargento-ajudante:

— O meu alferes dá-me licença?

— Entre, entre. Pode entrar à vontade. Não precisa de estar com formalidades. Ainda há momentos nos encontrámos e estivemos a conversar. Sente-se. Vem procurar a papelada? Acabo de verificar as escalas de serviço para o fim-de-semana. Verifiquei tudo. Está tudo assinado. Tudo em ordem.

— O meu alferes vai estar ausente durante muito tempo?

— Apenas o fim-de-semana. Devemos sair hoje a meio da tarde e regressar no domingo. O jogo é amanhã à noite.

— E vão viaturas militares para levar o nosso pessoal?

— Creio que não. Apenas vão os elementos militares que fazem parte da equipa. Não creio que outros queiram ir, apesar de terem sempre dado apoio e assistido aos treinos. Lembre-se que as despesas são por nossa conta. Ia-lhes sair do bolso. Não creio que queiram gastar dinheiro.

— E quem vai ficar a comandar a Companhia durante a ausência do alferes?

— Logicamente o graduado mais elevado.

— O nosso médico?

— Quem mais havia de ser? Somos, eu e ele, os únicos dois oficiais neste momento na sede da Companhia.

— Mas ele não está a par destas coisas, alferes.

— Nem precisa! Neste momento, temos tudo preparado para o fim-de-semana. Está tudo previsto. Mensagens para decifrar também não vão aparecer às catadupas durante o fim-de-semana. Além do mais, ficam cá elementos competentes, com muita experiência, em quem tenho toda a confiança.

— Quem, alferes?

— Se houver alguma situação imprevista, não está cá o nosso sargento? Não é a pessoa mais competente, a pessoa com mais experiência nas lides bélicas? Quem é que me tem dado apoio nos momentos difíceis? Não terá sido o senhor? Aliás, nem sequer estou a contar com o médico. Estou precisamente a pensar em si. Posso confiar plenamente. Ou será que não posso?

— Tem toda a razão! Vá o alferes descansado. Nada de especial há de surgir. E, se surgir, cá estou eu. O Doutor Graça Marques nem precisará de se preocupar. Já tem os doentes com que se entreter e para lhe darem trabalho.

Durante o almoço, apenas com dois elementos na messe, eu e o médico, sem contar com o moço impedido que nos serve as refeições e está responsável pelas instalações, a conversa girou quase toda à volta do acontecimento desportivo da semana. Todavia, à cautela, como quem não quer a coisa, o médico foi perguntando:

— Quem é que vai ficar a comandar a Companhia durante a tua ausência, Ulisses?

— O graduado mais elevado que vai cá ficar.

— Eu?

— Tu mesmo! Não está cá mais nenhum oficial. Mas não tens que te preocupar com nada. Está tudo tratado. Tudo em ordem e previsto para todo o fim-de-semana. De mais a mais, se for necessária alguma coisa ou surgir algum imprevisto, ninguém te incomodará. Já conversei a este respeito com o nosso sargento. É pessoa competente e de confiança. Tem muita experiência de guerra. Já deve ir na segunda ou terceira comissão. Por isso, ninguém melhor do que ele para as situações imprevistas.

— E o que te parece? Vamos ganhar?

— Queres que te diga, sinceramente, aquilo que estou convencido que vai acontecer?

— Diz.

— Por aquilo a que tenho assistido todos os dias durante os treinos, estou com uma enorme fezada de que vamos fazer boa figura. Pelo menos, o segundo lugar no campeonato já ninguém no-lo pode tirar. Já está no papo. Sabes melhor do que eu, que tens cá estado sempre, que a equipa tem feito boa figura. De todo o Batalhão, é a única que chegou à final. Ganhou sempre em todas as saídas.

— O segundo lugar já cá canta de certeza, Ulisses, mas não é a mesma coisa. O primeiro sempre será melhor. Trazer a taça para aqui será um feito importante.

— Sem dúvida! Mas olha que talvez não!

— Talvez não?!

— Sim, Graça Marques, o mais importante, para mim, é a actividade desportiva em si. O mais importante é o são convívio entre todos. E o prazer de participar e conhecer outras equipas e lugares é para mim o melhor de tudo!

— Tens toda a razão, Ulisses. O desportivismo é a coisa mais importante. Mas, convenhamos, se pudermos ficar em primeiro lugar e trouxerdes para aqui para Quimbele a taça, sempre terá outro sabor!

— Claro que sim! Tens razão! Será o máximo! Mas eu já fico satisfeito pelo facto de ter um fim-de-semana diferente, longe daqui, fugindo à rotina diária e, sobretudo, porque vou conhecer mais um pedaço deste imenso país!

— Já sabes onde vais ficar?

— Não. Tenho tempo de me preocupar. Vamos com civis. Eles conhecem bem Carmona. Instalo-me onde ficarem.

— Podias utilizar a messe de oficiais de Carmona. Poupavas umas massas...

— Pois poupava! Mas perdia o convívio com o pessoal. Não conheço nada do sítio para onde vou. Com os civis, além da companhia, que é mais agradável que todo o resto, não tenho com que me preocupar. É andar por onde eles andarem. Não tenho com que me preocupar! É só gozar o prazer dos momentos.

— Estais a contar sair daqui a que horas?

— Ainda não sei. Lá para meio da tarde. Mas isso já saberemos daqui a pouco, quando formos à bica. A malta deve encontrar-se toda no Briosa Bar. Logo se combina a saída.

— E tu? Como é que te vais aguentar? Estás a esquecer-te que andas de dieta rigorosa? Vê lá o que vais arranjar e se me estragas o tratamento.

— Está descansado. Não sou parvo. E muito menos masoquista. Terei o máximo de cuidado.

— Espero bem que sim. E, sobretudo, nada de bicas.

— Achas que ia estragar a dieta em que me puseste? Estou, lá isso é verdade, com saudades de um cafezinho, de um Rimaga! Creio que é a marca que aqui nos costumam dar. Mas, fica descansado: não tenciono tocar-lhe.

— E tu vais assim com essa farda: de calções e camisa de manga curta?

— Claro que não! E agora que acabámos de almoçar, vai andando. Eu vou mudar de pele. Espera por mim à entrada da messe.

Trocada a roupa militar pela civil e metidos os objectos de «toilette» e uma muda de roupa numa maleta emprestada, saí da messe. Fui ter com o Graça Marques, que me esperava sentado ao volante do jipe.

— Já vens com a trouxa?

— Já. Deste modo não preciso de voltar cá acima. Estou pronto para abalar quando quiserem.

— E a máquina fotográfica, Ulisses? Esqueceste-te dela? Não a trazes?

— Achas? Achas que me ia esquecer depois de tantas semanas de jejum e abstinência à espera que fosse arranjada? Já aqui vai! Dentro da maleta, juntamente com dois rolos de diapositivos.

— Não era melhor trazê-la a tiracolo? Para que serve o estojo de coiro e a correia?

— Não, Graça Marques. Por enquanto não é preciso trazê-la. Quando não, ainda me aparece por aí algum «gozão» a perguntar-me se não lhe quero tirar um slidezinho.

— Já alguém gozou contigo por causa das fotografias?

— Já! Andam por aí uns gozadores. Ainda, no outro dia, um dos meus soldados voltou-se para mim e disse-me: «— Alferes, vai um slidezinho?»

— E tu?

— Eu nada! O que querias que dissesse? Desatei-me a rir! Achei-lhe piada. E mais piada vou achar daqui por uns tempos, quando tiver um projector e uma boa colecção de imagens para lhes dar uma sessão de «slides».

— Estás a pensar nisso?

— Estou. Tirando o cinema, aqui em Quimbele, os treinos da equipa, nestes últimos tempos, e os momentos de descanso no café, com umas boas partidas de póquer, que outro divertimento é que cá temos, Graça Marques? Isto é uma pasmaceira!

— As meninas, Ulisses!

— Estás a ficar cacimbado, Graça Marques? Que meninas aqui? Só se forem de chocolate, nas sanzalas dos arredores. E os problemas que daí podem advir? Queres arranjar clientela para tratamento?

Esta breve conversa chegou ao fim ao mesmo tempo que a nossa curta viagem desde a messe até ao Briosa Bar.

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