Uma carta paterna |
Quimbele, 31 de Maio de 1973 Se aqui houvesse uma oficina de pirotecnia ou uma casa que vendesse foguetes e fogo de artifício, compraria uma dúzia de cada espécie e faria um barulho tal que se ouvisse em todo o lado, até nas sanzalas distantes que rodeiam a vila. Seria uma festa de arromba, com foguetes e cerveja com fartura para todos quantos viessem indagar o que aconteceu. Finalmente! Ao fim de tantos meses, aconteceu-me uma coisa há muito desejada! Finalmente, depois de tantos pedidos, consegui matar saudades daquela letra miudinha, bem desenhada e certinha, que comecei a conhecer no dia em que me sentei nos bancos da escola, tendo o pai por professor. Finalmente! Finalmente, a minha excelentíssima paternidade decidiu pegar na caneta e escrever-me uma carta completa, inteirinha, sem outra letra que não fosse a sua, sem necessidade de utilizar a mãe como retransmissora das suas palavras. Pena tenho eu de estar aqui tão longe de si! Se assim não fosse, agarrava-me fortemente ao seu pescoço e dava-lhe um beijo profundo, longo, demorado, carregado de saudades. Não pode imaginar o prazer que senti quando deparei com um aerograma no meio dos outros cuja letra não era a da mãe! Neste caos em que ando, isto foi como um oásis num extensíssimo deserto. Será assim tão difícil abstrair-se da companhia dos seus colegas de café e concentrar-se uns minutos no preenchimento de um aerograma? Quer crer que o estou agora mesmo a pintar, graças à minha imaginação? Não é que o estou mesmo a ver sentado, aí em Coimbra, a uma mesa do café Arcádia, afastado dos amigos de cavaqueira diária após o jantar, concentrado na escrita de umas linhas para o filho distante? Estou a vê-lo distintamente! Na mesa ao lado, está o Dr. Rui Cunha, o dentista que tem o consultório no primeiro andar de um prédio vizinho do café. Estou a vê-lo, agora mesmo, numa outra cena, na sala de espera ao lado do consultório, a montar a enorme pista de comboios eléctricos que fazem a delícia dos doentes, adultos e crianças, especialmente dos mais jovens. À esquerda, vejo o nosso médico poeta, sempre pouco falador, porém atento a todas as conversas. Vejo-o entre o dentista e aquele professor da faculdade de Ciências, que todas as noites, por imposição própria, faz uns quilómetros de percurso a pé pelas ruas da cidade, antes de regressar a casa. De acordo com as palavras dele, que me surgem agora, é o exercício diário de marcha para manter o físico em bom estado. Ao lado, estou a ver que se encontra o meu amigo doutor, pequenino e nervoso, já com uma boa idade, que me passou o atestado de saúde e perfeita visão, quando, no quarto ano, necessitei de tirar a carta de condução para poder percorrer o País inteiro na pesquisa de material para o meu trabalho de Linguística. Em suma, estou a imaginá-lo sentado, a escrever-me esta carta, momentaneamente alheado dos seus companheiros habituais de cavaqueira quotidiana. Estão lá todos à volta da mesa, junto à coluna mais próxima do balcão. Não falta nenhum! Nem o secretário da Universidade, que costumava perguntar-me, quando andava na elaboração da tese, se tudo me estava a correr bem e não precisava de ajuda. E, junto do balcão com a pastelaria e outros produtos, entre este e a porta de entrada, o Sr. José Maria, o dono do café, sempre amável e sorridente com todos os clientes. Estou a vê-los a todos, distintamente, como se eu próprio estivesse sentado na minha mesa habitual, junto à janela, a ler os meus livros quinzenais de literatura francesa da colecção Garnier Flammarion. Quando receber estes aerogramas, peço ao pai que leia esta parte aos seus amigos e que lhes diga que também deles tenho saudades, que gostaria de me poder agora sentar junto do grupo, a ouvir-lhes as conversas, sem os interromper, imitando esse amigo poeta que só fala quando é preciso ou quando se metem com ele, mas que nos tem proporcionado uns poemas e contos interessantes. Quando estiver com ele, diga-lhe que também eu aqui, nesta região, embora não tenha os bichos que ele utilizou para nos deliciar, tenho, em contrapartida, muita bicharada de outro tipo, sem falar da humana com quem tenho de lidar no dia a dia. E diga-lhe também que ainda guardo dele a cópia a químico de uma carta original, que conservo quase como uma relíquia, que ele me deu naquele dia em que, pela primeira vez, o vi rir, graças àquela recolha disparatada que eu andava a fazer de «receitas para o fígado». São umas receitas que tiveram o condão de o fazer rir e o levaram a trazer-me, no dia seguinte, a cópia a químico de uma célebre carta escrita a outro médico, a recomendar um doente com problemas em vésperas de casamento, para eu juntar às outras receitas. Está neste momento o pai completamente intrigado, a pensar que tem o filho já cacimbado pelo clima angolano, sem perceber a que raio de receitas para o fígado me estou a referir. Para que o cacimbo actual desta região não chegue aí à metrópole, eu passo a explicar-me melhor. As receitas para o fígado nada têm a ver com as mezinhas que se vão comprar ao boticário. Estas eram e continuam a ser, porque as tenho ainda comigo, uma colecção de textos humorísticos, uns de autores anónimos, outros atribuídos a alunos dos exames da quarta classe, carregados de disparates, de imaginação e palavras com outros sentidos, capazes de fazerem rir os mais sisudos. Alguns são muito antigos. Os primeiros, lembro-me de os ter copiado, ainda aluno da escola primária, fornecidos pela mãe. É tal o seu grau de comicidade e subtil ironia que me permitiram ver rir, pela primeira e última vez em toda a minha vida, o nosso médico poeta e contista, quando ele, intrigado por me ver rir enquanto folheava os textos dactilografados, mos pediu para os ler. E o conteúdo da cópia a químico da carta que ele me entregou, no dia seguinte, foi acrescentado à colecção, tendo-lhe apenas mudado o nome dos intervenientes. Está o pai a ver qual foi o resultado da sua carta? Teve o mágico condão de me ter feito esquecer, por uns largos minutos, as agruras do desterro e provocar-me uma evasão no espaço e no tempo. |