Conversa ao pequeno-almoço

O primeiro «fait divers», isto é, o primeiro episódio engraçado ocorreu graças ao Capitão Glória Dias, que está aqui em Quimbele.

Como devem estar recordados, tenho estado aqui sozinho, nesta vila, à frente da Companhia. O capitão Alberto deu baixa ao Hospital Militar de Luanda e deixou-me a batata quente na mão. Tirando o médico, o Dr. Graça Marques, não tenho mais nenhum oficial da minha Companhia com quem conviver. Em contrapartida, estão cá três oficiais da Companhia de Comandos e Serviços: o segundo comandante do Batalhão, o capitão Glória Dias e o tenente Oliveira. Mas não é a mesma coisa! Tirando o capitão Glória Dias, que me parece uma excelente pessoa e com quem me sinto mais à vontade, os outros são demasiado senhores das suas patentes militares. Devem ter receio que elas lhes fujam debaixo do pés. As nossas conversas são muito mais reservadas e distantes. São totalmente o oposto do capitão.

Desde os primeiros contactos, o capitão Glória Dias agradou-me plenamente. Pareceu-me uma pessoa de fina educação, simpático, com uma grande sensibilidade, conhecimentos e gosto pelas artes. É, em suma, pelo que logo depreendi e pelas fotografias que me mostrou, um artista, capaz de trabalhar a madeira mais dura, dela fazendo brotar verdadeiras obras de arte, especialmente em baixo-relevo. Tudo nele me agradou. E parece-me que o sentimento é recíproco. Talvez com o dobro ou mais da minha idade, fez-me lembrar, em alguns aspectos, o meu pai. Não é que o capitão tenha a mais pequena semelhança física. Mas possui qualidades que me quadram e me fizeram, desde logo, sentir uma grande confiança nele.

Na manhã do dia dez, por altura do pequeno-almoço na messe de oficiais, teve uma atitude que me cativou. Estávamos todos reunidos, à excepção do médico, num ambiente de conversa pouco informal, em que as palavras pareciam de chumbo, arrancadas a saca-rolhas, todas difíceis e ponderadas antes de proferidas. Era um ambiente pouco propício a uma refeição descontraída e revigorante, para um bom começo de mais um dia de trabalho. Até o tenente, que não tem mais do que uma tira do que eu, parecia pouco à vontade. Seriam as duas tiras atravessadas na garganta que o faziam sentir-se superior ao alferes que tinha na frente? Ou seria pela presença de um oficial superior, o segundo comandante do Batalhão, sentado à mesma mesa?

Ao meu lado, o capitão Glória Dias ia tomando a refeição, calmamente, sem grandes palavras, mais escutante do que falante. Muito antes de terminada a refeição, disse-me de maneira que só eu ouvi:

— Coma devagar, com calma. Não tenha pressa. Deixe-se ficar para trás. Faça como eu. Deixe-os ir à frente. Deixe-os sair e fique aqui, durante mais uns minutos, na minha companhia.

Olhei para ele. Baixou-me a cabeça, como que dizendo, pelo gesto, que lhe seguisse os conselhos.

Duplamente convencido, pelas palavras e por aquele gesto discreto que entendi perfeitamente, fui-me deixando ficar para trás. Já os dois outros oficiais iam no fim da refeição e ainda eu me encontrava a meio, comendo com uma lentidão nada habitual em mim. Em breve, os dois oficiais pediram licença, levantaram-se e saíram. Continuámos a mastigar, em silêncio, durante uns segundos, até que deixámos de ouvir os passos.

Com um gesto calmo, lento, como que saboreando o silêncio da sala, o capitão Glória Dias pegou na cafeteira de alumínio, ainda meio cheia de café. Encheu a chávena quase até ao cimo. Pegou na outra cafeteira ao lado da primeira e esbateu o escuro do café com um pouco de leite, acabando de atestar a chávena. Enquanto acrescentava duas colheres de açúcar e começava a mexer, convidou-me a acompanhá-lo.

— Alferes, siga o meu exemplo. Encha uma chávena. Faça como eu. Barre uma boa fatia de pão com manteiga e aproveite para recarregar devidamente as baterias. Não tenha pressa. O dia é muito comprido. A manhã ainda agora vai no começo.

Esqueci-me completamente das papas da minha dieta e acatei-lhe os conselhos. Como um bom aluno que segue o mestre, imitei-lhe fielmente os gestos. Numa agradável cumplicidade, saboreámos calmamente todos os novos ingredientes deste pequeno-almoço: o café com leite, a fatia barrada com manteiga e o sossego reconfortante da sala de jantar da messe de oficiais de Quimbele.

Acabada a refeição, o capitão voltou-se para mim, muito sério, mas com um ar paternal:

— Deixe-se aqui ficar uns minutos na minha companhia. Conversemos um pouco, em sossego, como dois bons amigos.

Fixei-o, cheio de curiosidade e, ao mesmo tempo, intrigado, procurando adivinhar o que pretenderia de mim.

Num tom calmo, quase pausado, olhando-me de frente, olhos nos olhos, o capitão prosseguiu:

— Desde que aqui cheguei que o tenho vindo a observar e a estudar.

— A mim, capitão Glória Dias?

— Sim, a si.

— E então?

— Vejo-o sempre ocupado, nervoso, sempre agitado de um lado para o outro, como que atormentado por qualquer problema. Em vez de conviver connosco, de se divertir, de ir ao cinema e passar o tempo de uma maneira agradável, verifiquei que se isola. Deixou-nos ir para o cinema e foi-se enfiar no quarto. Até já conversei a seu respeito com o doutor Graça Marques. Segundo ele me disse, tem andando com problemas de saúde. Passa-se alguma coisa consigo?

— Não, meu capitão. Não se passa nada. Não fui convosco ao cinema, porque também é preciso matar as saudades de casa.

— Matar as saudades de casa?! Como?

— De vez em quando, capitão, o silêncio do nosso quarto é bom para conversarmos com os nossos familiares, para lhes darmos notícias daqui e os deixarmos mais tranquilos.

— Sim, tudo isso está muito certo. Mas não é razão suficiente para esse nervosismo permanente em que me parece andar. Segundo constatei, nos últimos dias, passa grande parte do tempo às voltas com a papelada militar. Olhe que o trabalho é para se ir fazendo nas calmas, sem pressas.

— Isso é natural, capitão. Não é de admirar que ande nestes últimos tempos às voltas com as papeladas militares. Tenho alguns processos para resolver e nunca tive a mais ínfima formação em justiça militar. A minha formação foi sempre na área das Letras e nunca na da Justiça. E muito menos militar!

— Só por isso? Isso até é compreensível. Até entendo que procure meter-se dentro dos procedimentos judiciais. Mas não me parece que seja razão suficiente para tanto nervosismo. E muito menos o estar temporariamente à frente da Companhia. Tem de haver outras razões mais fortes, que o andam a moer. Segundo me disse o doutor Graça Marques, o seu permanente mal-estar destes últimos dias, que o obriga a andar de dieta, deve ser de origem nervosa. Tem que haver forçosamente qualquer coisa que o anda a preocupar e a moê-lo lentamente. E se isto é a realidade, não quer aproveitar a minha presença para desabafar? Às vezes, partilhar os problemas com um amigo, ajuda a resolver as situações. E pode ter a certeza que está na presença de um amigo. Sei mais a seu respeito do que aquilo que imagina. E olhe que não sou só eu que sou seu amigo. O nosso capelão sente também uma grande estima por si. Ultimamente, em Sanza Pombo, temos falado bastante a seu respeito. E não só eu com o capelão! O seu nome tem sido badalado.

— Badalado?! A meu respeito?! Mas porquê, capitão? A que propósito?

— Ainda pergunta? Não sabe o que tem feito nestes últimos tempos?

— Sei, sim, meu capitão. Tenho-me limitado a cumprir as ordens que me dão e a desempenhar as missões o melhor que sou capaz.

— Só isso?

— Que eu saiba, não estou a ver mais nada, capitão.

— Não me diga! Está a ver muito pouco. Deve estar a precisar de ir a Sanza Pombo mudar de lentes. E, se lá for, talvez descubra que é mais falado do que imagina.

— Sinceramente, meu capitão, não o estou a entender. Onde é que pretende chegar concretamente?

— Não se lembra dos momentos em que andou acompanhado pelo nosso capelão? Não se lembra das vezes que ele esteve consigo no Alto Zaza e numa sanzala da região, quando andou a efectuar o recenseamento de diversas povoações indígenas?

— Lembro-me perfeitamente, capitão. A companhia do nosso capelão proporcionou-me sempre momentos de grande satisfação. É uma daquelas pessoas cuja companhia me dá o maior prazer. Mais do que um capelão, é um amigão, uma daquelas pessoas com quem dá gosto conviver.

— Pois olhe que ele partilha precisamente os mesmos sentimentos. E temos falado a seu respeito!

— Ah! Já estou a perceber a razão das suas palavras! Por isso é que eu sou tão falado em Sanza Pombo. Estou a ver que o capelão me tem colocado nos píncaros da lua. Por isso sabem tanto a meu respeito!

— Não é só por isso, alferes Ulisses. Está a esquecer-se de muitas coisas.

— Da colaboração que me pediram para o jornal? Tenho-a mandado sempre que posso. Até pelo nosso capelão, quando nos dá o prazer das visitas ao meu grupo.

— Muito mais importante do que isso. Escreveu um texto que está a ser ou até já foi musicado. Está a esquecer-se do hino do Batalhão.

— Isso? De facto, tem razão. Não me estava a lembrar de tal! E deduzo que o capitão Glória Dias quis aqui ficar sozinho, comigo, porque me tenho esquecido de um pedido frequente do capelão.

— Agora sou eu que o não estou a entender. Que pedido?

— O da fotografia. O capelão tem insistido frequentemente comigo que o nosso comandante pediu que eu lhe mandasse uma fotografia minha. Mas, a verdade, é que, além de não ter nenhuma, tenho-me sempre esquecido de tal coisa. Algo tão simples, tem ficado sempre para trás. E é um problema insignificante, comparado com outros que me têm surgido nestes últimos tempos!

— Ora aí está! Afinal sempre há problemas. Acabou agora mesmo de confirmar o que eu suspeitava. Fugiu-lhe a boca para a verdade. Sempre estou certo! O nosso alferes anda com problemas. Daí o nervosismo pouco normal. Daí as suposições do médico da Companhia. Os seus problemas são de origem nervosa. Eu posso dar-lhe uma grande ajuda, se quiser confiar em mim. Já sou um macaco velho, com muita experiência. E essa experiência e os meus conselhos poderão ser-lhe muito úteis.

Estas últimas palavras do capitão fizeram-me rir por uns momentos. Com que então um macaco velho com muita experiência! Foi esta expressão como que o passe de magia, que ajudou a quebrar as últimas barreiras entre mim e ele. Gozando os minutos de silêncio na sala, aproveitei para desabafar, expondo-lhe as minhas suspeitas. Ouviu-me com toda a atenção e com muita paciência.

— E o capitão acha que fiz bem em assinar, cumprindo as ordens do Comandante de Companhia?

Respondeu-me que, no meu lugar, também ele teria feito o mesmo. Se, por um lado, ninguém pode ser obrigado a assinar documentação que desconhece, indo contra a própria vontade, por outro, um subordinado deve acatar as ordens de um superior...

Quando estávamos a reflectir sobre o problema de assinar ou não documentos contra vontade e cumprir ou não cumprir ordens superiores, entrou-nos na sala de jantar o médico da Companhia, o doutor Graça Marques. Ficou muito surpreendido por nos encontrar ali àquela hora:

— Vocês ainda aqui estão? Ainda a acabar o pequeno-almoço a estas horas da manhã?!

— Já tomámos o pequeno-almoço há um bom pedaço. — disse eu. Ficámos aqui um pouco na conversa, para aproveitarmos o sossego da sala. E tu? Não tomaste o pequeno-almoço connosco. Porquê? Adormeceste?

— Não! Saí mais cedo. Tive umas urgências no hospital. E vim agora buscar a minha máquina fotográfica. Como ouvi barulho na sala, vim ver o que se passava. E já que aqui estão, aproveitamos para testar este «flash» que acabo de comprar para a minha máquina fotográfica. Vou tirar-vos uma fotografia.

Por um simples acaso, devo ter ficado numa fotografia do médico na companhia do capitão Glória Dias. E com a interrupção da conversa, aproveitámos para abandonar a sala.

— Espero que a nossa conversa tenha servido para o ajudar a descontrair, alferes. Logo à tarde, a seguir ao almoço, não o deixo ir para o gabinete do comando.

— Não, capitão? Então porquê?

— Porque tem de se distrair. Logo à tarde, vai servir-me de cicerone. Vai mostrar-me as sanzalas dos arredores. Aproveitamos para fazer uma caçada às rolas. Trouxe comigo a espingarda e algumas caixas com cartuchos. Espero dar-lhe a provar um dos meus petiscos: rolas à Capitão Glória Dias...

— E quem vai connosco, capitão? — perguntei, bruscamente, cortando a publicidade.

— Ninguém. Vamos nós os dois. Não queremos ninguém a espantar-nos a caça.

— E vamos como, capitão? A pé?

— Não, de carro. Não tem consigo o jipe do capitão?

— Ter, tenho. Mas não o tenho utilizado. Não preciso dele. Tem sido mais útil ao doutor. Anda com ele, para ir para o hospital, que ainda fica a uns dois quilómetros daqui.

— Pois, logo à tarde, fica de folga. Não lhe empresta o jipe. Vai a pé, se quiser ir trabalhar. E se não for, o prejuízo não é grande. Também precisa de descansar. Já esteve toda a manhã no hospital.

Voltámos a estar juntos à hora do almoço, precisamente no mesmo local: a sala de jantar da messe de oficiais de Quimbele.

Ainda antes de nos sentarmos, o capitão Glória Dias abeirou-se de mim e perguntou-me:

— Então, que tal a sua manhã? Correu-lhe bem?

— Tudo bem, meu capitão. Não houve nada de anormal a assinalar. As rotinas habituais...

— E ouça cá, o pequeno-almoço reforçado, hem? Não lhe fez mal?

— É verdade! Andei toda a manhã bem disposto. Desta vez não foi nada fora!

— Está a ver como tenho razão? O seu problema são os nervos. Precisa de se distrair...

Não vou agora reproduzir o resto das nossas conversas durante o almoço. São as conversas habituais entre oficiais. Não tanto à vontade e descontraídas como é habitual, porque as patentes estranhas à Terceira Companhia não o permitem. Mas não deixam de ser conversas normais!

Próximo do final do almoço, já a entrarmos na sobremesa — e esta parte tenho que a reproduzir aqui no meu relato! —, o capitão Glória Dias interveio, voltando-se para o médico da Companhia:

— Hoje de tarde, o nosso médico está de folga. Não vai trabalhar.

Muito admirado, o Graça Marques olhou para o capitão e perguntou-lhe:

— Então porquê, meu capitão?

— Aqui o nosso comandante de Companhia — e voltou-se para mim — não lhe empresta o jipe durante a parte da tarde.

— Não me empresta o jipe? Vais precisar dele, Ulisses? — perguntou-me o doutor, inquirindo-me com surpresa.

Não cheguei sequer a responder-lhe, porque o capitão nem me deu tempo!

— Não senhor! Hoje não lho pode emprestar. Vai precisar dele durante toda a tarde. Hoje, o nosso alferes Ulisses vai ter uma tarde descontraída. Precisa de se divertir. Vai servir-me de cicerone. Vai mostrar-me as sanzalas das redondezas. E eu aproveito para levar a minha Flaubert. Se apanharmos algumas rolas, logo à noite teremos um petisco à capitão Glória Dias.

— Queres brindar-nos com uma das tuas especialidades gastronómicas? — perguntou o segundo comandante do Batalhão 4511.

— Assim é, meu major. Se a pontaria não me desamparar e as rolas deixarem, teremos, logo à noite, um petisco. Aqui o nosso alferes Ulisses precisa de se distrair. Anda muito tenso com os problemas da Companhia. E nós temos de dar uma ajuda ao nosso doutor. Não é verdade, doutor Graça Marques?

— Assim é! É preciso que o Ulisses se recomponha e não me dê trabalho. Se lhe acontece alguma coisa, sou eu o responsável pela sua saúde. E como médico da Companhia, tenho de zelar pelo bem-estar de todos os elementos, quanto mais dos amigos! Com que então é por isso que não me emprestas o jipe? Pena tenho eu de não poder ir convosco! — voltou-se o médico, sorrindo para mim — Espero que façam uma boa caçada, para podermos apreciar as artes culinárias do nosso capitão. Se for tão bom como é a trabalhar a madeira, teremos obra de mestre!

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