Ler não é maçada

Como podem verificar, o sumário é extenso. Tão extenso, que não sei bem por onde começar. Aliás, esta é mais uma daquelas afirmações sem nexo que às vezes nos costumam sair! Dizer que não sei por onde começar é um daqueles disparates próprios de quem não utiliza a massa cinzenta para reflectir. Se os factos estão anotados cronologicamente, não tenho mais do que começar pelo primeiro tópico. Logo, o problema não está aqui, mas talvez na tola da minha cabeça, que me está a puxar para outro lado. Talvez que isto seja das saudades! Especialmente dos pais. E não só! Estou também a lembrar-me dos amigos e das minhas coisas que aí deixei e que gostaria de agora poder rever.

Ou será que esta sensação esquisita que agora me invade é a consequência das palavras da mãe, no aerograma datado de dezasseis de Maio? Dezasseis de Maio? Já repararam que hoje é o dia dezanove de Maio e a vossa última carta tem a data de dezasseis? Significa isto que a vossa correspondência acaba de bater um novo recorde. Bastaram apenas três dias para me chegar às mãos! É um verdadeiro recorde dos serviços postais militares! Penso que foi a primeira vez que o correio demorou tão pouco tempo a chegar-me às mãos. É esta — valha-me ao menos isto! — uma das vantagens de estar agora na sede da Companhia, em Quimbele.

Afinal, o que é que esta última carta tem de especial para me estar a desviar da minha promessa e a fugir ao relato dos acontecimentos? Muito simplesmente isto: um comentário «disparatado» da mãe. Quase no começo da carta, a mãe diz-me, referindo-se a si: «Sou uma maçadora com tanta escrituração...».

Se a mãe se considera uma maçadora por me escrever com tanta assiduidade, como é que me consideram a mim, que vos envio dezenas de aerogramas de cada vez? Se a mãe se considera uma maçadora, então eu devo ser um chatarrão, porque vos entupo a caixa do correio com maços de aerogramas.

Sabe qual é a única coisa que eu considero maçadora? É nunca conseguir ler palavras escritas pelo pai. Tudo o que ele me diz, salvo raras excepções, que ainda estão longe de esgotar a contagem pelos dedos, é sempre através da mãe. Apesar de haver quem diga que ler é maçada, e vá até mais longe, dizendo que estudar é nada, o que eu posso dizer é que maçada é não ter nada para ler, especialmente se se trata das vossas cartas.

Maçada é ver os outros receberem correspondência, quando chega o correio, e nós ficarmos de mãos a abanar, por nada haver para ler. Maçada é não ter notícias de casa, é não saber dos amigos, é não saber como queimar o tempo que nos vai queimando, desgastando-nos e encarquilhando-nos cada vez mais o corpo e tornando-o mais próximo da terra que pisamos e que, algum dia, nos deverá cobrir.

Por isso, para que não seja mesmo maçada, o que digo à mãe é que nunca se canse de escrever. Escreva. Escreva muito. Quanto mais escrever, mais momentos de prazer me proporcionará. E, durante os momentos de leitura, estarei muito mais perto de vós. E diga ao pai que pegue na caneta, que não utilize a mãe como escriba. Diga-lhe que pegue na caneta e que me mace com as palavras escritas pelo punho dele, porque também estou com saudades de o ler. Também estou com saudades daquela caligrafia miudinha e com palavras bem alinhadas, a que o pai me habituou desde os bancos da escola. Claro que agora as palavras não serão as mesmas que nos obrigava a copiar para aprendermos a ler e escrever. Estas, agora, são bem mais importantes, porque carregadas de outros significados e também de saudades. Isto sim, é que é uma verdadeira maçada. Querer recordar as palavras do pai e não as ter escritas pelo punho dele, isto sim, é que é maçada!

Estou com saudades das vossas vozes. Não é que as palavras faladas sejam melhores que as escritas. Que o não são! Perdem-se quase instantaneamente. Ainda não acabaram de ser proferidas, e já estão completamente apagadas, apenas com alguns ecos cada vez mais distantes nos nossos ouvidos. As escritas, não! Estas mantêm-se. Permanecem. Podemos lê-las e relê-las. Desafiam o passar dos tempos. Mas falta-lhes o timbre das vossas vozes. E, tenho de confessá-lo, com a quantidade de meses já passados, longe de vós, com milhares de quilómetros a separar-nos, o som das vossas palavras, quando as leio, já não é bem o mesmo. O vosso timbre está cada vez mais esbatido. E não fora a minha prodigiosa imaginação, que vos consegue restituir quase por completo, como se estivésseis presentes, há muito elas se teriam por completo extinto!

É nestas alturas que me lembro o quão importante seria se tivéssemos telefone em casa. Com o posto administrativo e os correios a cinquenta metros do meu quarto, era fácil ter uns minutos de prazer a ouvir as vossas vozes. Seria uma outra forma de matar saudades de casa! Como não têm essa pequena invenção que permite encurtar as distâncias, terei de continuar a contentar-me exclusivamente com as vossas cartas e aerogramas e as gulodices que me vão mandando, gulodices para o estômago e para a mente, porque, além dos queijos e outras surpresas, tenho recebido os exemplares da Science et Vie, que me permite manter a par das evoluções tecnológicas e científicas e onde vou buscar matéria para a minha colaboração no jornal do Batalhão.

Chega de lamechices sentimentais. Vamos às peripécias destes últimos dias, seguindo — espero eu! — a sequência cronológica dos acontecimentos.

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