Caçada às rolas |
Apesar do médico me ter proibido o cafezinho, isso não me impede de acompanhar os amigos e camaradas e de passar uns breves momentos de convívio no Briosa Bar. Nos momentos que lá vou, nestes últimos dias, a minha bebida habitual tem sido um copo de leite bem fresco. Não sabe tão bem como uma boa cerveja tirada à pressão, mas bebe-se. Quando tal não me apetece, costumo pedir um gelado. Curiosamente, dou-me bem com alimentos gelados! O estômago não reage e não me obriga a correr para a casa de banho para deitar carga ao mar. Como o bem-estar físico é mais importante que o prazer do café, dos refrigerantes e da cerveja acompanhada com ginguba ou camarões, tenho-me limitado à presença física e à companhia dos amigos durante o período da bica. Estivemos a jogar aos dados até cerca das duas da tarde: eu e o médico contra o capitão Glória Dias e o tenente Oliveira. Foi uma disputa entre a Terceira Companhia e a CCS, no final da qual fomos nós, eu e o médico, a pagarmos a despesa geral, incluindo a do major. Acabada a partida, o capitão foi o primeiro a levantar-se: — Alferes, vamos à nossa caçada? — Graça Marques, preciso da chave do jipe — pedi, ao mesmo tempo que arrumava os dados no bolso e me levantava. — Ulisses, antes de saíres, não te esqueças de meter combustível. O depósito está quase vazio. — Fizeste bem em lembrar-me, Graça Marques. Enquanto o nosso capitão vai buscar a arma e os cartuchos — disse, voltando-me para o capitão —, eu aproveito para atestar o depósito. Olhei em volta, ainda antes de sair do café, para ver quem mais ali estava. Infelizmente, o moço responsável pelo parque auto e os combustíveis não estava por ali. — Capitão, antes de irmos para cima, vamos passar pelo Bar Quimbele. É já ali em baixo. Cinquenta metros daqui. Preciso de encontrar o moço encarregado do parque auto e dos combustíveis. Temos de atestar o depósito. Depois, enquanto atesto, o meu capitão vai ao quarto buscar o material. — E eu vou já para cima? Para a messe? — Não é necessário. Vai comigo no jipe. O soldado vai atrás, na caixa. A distância é curta. Entrámos no jipe. Desengatei e destravei. Deixei avançar lentamente, aproveitando a descida até ao outro café. Parei na curva, a seguir ao posto farmacêutico militar, mesmo em frente ao Bar Quimbele. Tivemos sorte. Não precisei de procurar. Dei logo com o grupo onde se encontrava o moço. — Passa-se alguma coisa, meu alferes? — Nada de especial. Preciso apenas da tua ajuda. Tenho de sair com o nosso capitão e é preciso atestar a viatura. Eram cerca das catorze e trinta quando me sentei novamente ao volante do jipe, com o depósito completamente atestado. Como, entretanto, o capitão ainda não tinha chegado, parei a viatura junto ao passeio, em frente à porta principal da messe. Olhei para mim próprio. Estava prestes a sair para a estrada contrariando todas as normas. Em vez do camuflado, estava de farda número dois, ou seja, de calções e camisa de mangas curtas, o traje habitual nas vilas e cidades, quando não largamos a pele militar para nos trajarmos à civil. Quando o capitão chegou e me preparava para arrancar, tive um rebate de consciência: — Capitão, vamos assim para a estrada? — Assim como, alferes? — Vestidos desta maneira, sem camuflado. — Não é necessário. Não vamos para nenhuma operação na mata. As palavras do capitão não foram suficientes para me convencer. Mesmo aceitando que iríamos de farda número dois, continuei com a sensação de que me faltava qualquer coisa. Em todas as deslocações, além do camuflado, ando acompanhado por uma fiel companheira: a espingarda G3. E para reforço da companhia, trago o cinto largo com as bolsas dos carregadores devidamente atestados com munições. Tive uma sensação estranha. Uma sensação como de alguém que sai de casa e se esqueceu de enfiar a roupa. Senti-me nu. Por isso, enquanto o capitão se ajeitava no lugar ao lado do condutor, pedi-lhe uns breves minutos: — Capitão Glória Dias, vá-se sentando e acomodando, que eu tenho de ir rapidamente lá dentro. Preciso de ir fazer uma pequena coisa que ninguém pode fazer por mim. Antes de nos pormos a caminho, isto é indispensável para o meu bem-estar. Entrei rapidamente na messe e dirigi-me para o meu quarto. Retirei as almofadas de cima da mala. Procurei a chave do aloquete e abri a fechadura. Levantada a tampa, retirei a espécie de gavetão, no cimo da arca, e remexi toda a roupa, procurando no fundo. Tacteando com os dedos, dei com a pistola que trouxe da metrópole. Abri a bolsa de cabedal e verifiquei o carregador. Estava completamente atestado. Voltei a guardar a arma no estojo e enfiei-o num dos bolsos dos calções. Ao fim de uma série de meses, desde a recruta como soldado cadete, veio-me subitamente à lembrança a pequena pistola automática com munições de 6,2 milímetros. Tenho-a na minha frente, em cima da mesa onde estou a escrever. De dimensões e formato idênticos a um modelo que conheci em Mafra, de marca FN, esta apresenta inscrições gravadas em francês, as iniciais BH e a indicação de patente Bulwark. Tirando o número de série, não apresenta qualquer indicação de data de fabrico. Mas sei que constitui uma autêntica relíquia do tempo da Primeira Grande Guerra, segundo creio. Será que o pai ainda se lembra desta arma? Teve-a escondida, durante muitos anos, no fundo de um gavetão do guarda-fatos. Era a pistola que o meu padrinho, o tenente José Ribeiro dos Santos, trouxe da guerra, creio que de França, juntamente com aqueles binóculos pequenos, também de marca francesa, próprios para assistir às óperas e observar em pormenor não apenas o actores-cantores, mas sobretudo os espectadores sentados nas plateias. Será que o pai ainda se lembra deste objectos? Não trouxe comigo os binóculos; apenas a pequena pistola que foi do meu padrinho e que ele usava, quando esteve comandante de um posto da Guarda Nacional Republicana em Espinho. Era eu ainda um catraio, na fase em que andava com um triciclo com rodas grandes de ferro e um assento de madeira. Lembro-me perfeitamente deste tempo. Não preciso de grande esforço de memória para que me reapareçam as imagens deste tempo. Vejo-me até mesmo na companhia do meu padrinho, em Espinho, com ele fardado, junto a um posto da GNR que ficava na rua 8, mais ou menos a meia distância entre a rua 23 e o bairro piscatório. Deveria eu ter os meus dois ou três anos. E estou até a lembrar-me de uma fotografia que o pai me tirou por esta altura, na companhia do meu padrinho, ele todo fardado, eu de calções e suspensórios do mesmo tecido e com uma camisolita que tinha uns bonecos bordados. Pois é verdade! É incrível como o tempo passou e estas imagens continuam ainda nitidamente gravadas na memória! Trouxe para Angola a pequena pistola, que agora mesmo me fez recuar uns valentes anos até à minha infância. Consegui pô-la a trabalhar durante a minha recruta em Mafra. Durante este período, tive como companheiro de pelotão e de caserna um camarada que era especialista em tiro ao alvo com armas de fogo de vários calibres e tipos. Numa das tardes livres em Mafra, saímos do interior daquele convento e quartel e fomos fazer tiro com as armas que ele tinha levado, não só para nos mostrar o arsenal por ele utilizado em concursos, mas sobretudo a sua perícia com elas. Falei-lhe da relíquia que sabia estar escondida num dos gavetões do guarda-fatos. Pediu-me que a levasse na semana seguinte. Verificámos que é do mesmo calibre de algumas das armas que ele utiliza em concursos. Desmontámo-la. Limpámo-la cuidadosamente e pusemo-la a trabalhar. Funciona impecavelmente e com bastante precisão, desde que as distâncias não sejam grandes. Gastámos praticamente uma caixa de munições a fazer tiro com ela. No final, deu-me uma caixa completa de munições e aconselhou-me que guardasse esta arma, porque era, segundo ele, uma relíquia com algum valor para os coleccionadores. Guardei-a e trouxe-a comigo. Embora o carregador seja de pequena capacidade, penso que umas doze munições de cada vez — e digo penso porque o carreguei há muito tempo e já não me lembra quantas lhe consegui meter! —, poderá vir a ser útil se alguma vez me vir em situação de aperto. No entanto, como não tem a mais pequena comparação com a capacidade de precisão e de segurança de uma espingarda automática, tive-a até esta altura sempre muito bem protegida e guardada no meio da minha roupa. Tirei-a neste dia, pela primeira vez, do fundo da mala; e enfiei-a no bolso dos calções. E tirando neste momento os pais, nunca dela falei a ninguém. Nem tão pouco ao capitão, com quem andei toda a tarde. Deixemos a pistola e as nossas digressões e retomemos a caçada. — Para que lado é que o meu capitão pretende ir? — Não sei. O nosso alferes é quem conhece a região. — Temos várias hipóteses. Podemos seguir para o lado das sanzalas que se avistam daqui de Quimbele. Podemos ir também para os lados do hospital ou para a zona da missão. Se escolhermos esta segunda hipótese, teremos estrada alcatroada durante parte do percurso. Mas podemos também ir um pouco mais longe. Podemos pegar a picada para o Alto Zaza e seguir para os lados da fazenda Nossa Senhora da Conceição. Mas esta última hipótese é a pior, penso eu. Ainda são uns bons quilómetros e só metade do percurso é feito por estrada alcatroada. — Vamos então para mais perto. Mas o nosso alferes é que sabe, não sou eu. — Então, se me permite a escolha, penso que devemos ir para os lados da missão. Logo à saída de Quimbele, há muito arvoredo de cada lado da estrada. Parece-me o melhor local para encontrarmos as rolas. — Vamos para aí, então. Amanhã, leva-me para o outro lado. Descemos parte da avenida principal. Antes da igreja, cortámos numa transversal à nossa direita. Apanhámos a rua que circunda a colina onde fica Quimbele. Passámos em frente à cantina e refeitório das praças e cortámos, pouco depois, para a picada que vai até à missão. Acabado o minúsculo troço de alcatrão, vimos ao longe um bando de rolas. — Capitão, que lhe dizia eu? Olhe ali tantas! É melhor deixarmos aqui o jipe e seguirmos a pé. Com o barulho do motor, espantamos o bando. — Nem pense! Não é necessário. Vá andando de vagar com a viatura. Eu consigo abatê-las sem sairmos do jipe. — Duvido muito, meu capitão. Olhe que eu também tenho muita experiência de caça. Nunca tive uma Flaubert com cartuchos como os seus. Mas calcorreei muitas vezes os arredores de Coimbra, entre o meu bairro e Eiras, com uma espingarda de pressão de ar. E nunca regressei a casa sem trazer pardalada. A pé, ainda acredito que mate algumas rolas. Agora, em andamento, quando chegarmos perto delas, fogem todas com o barulho do motor. — Ande lá, que eu sei o que estou a fazer. Vá de vagar. Abrande. Vou apontar. Ouviu-se um disparo. As rolas levantaram todas com o barulho da detonação. — Vê? Eu não lhe dizia? Fugiu o bando todo. Nem uma! — Nem uma, não! Não senhor, aquela a que apontei ficou ali caída. Ora pare lá a viatura e vamos lá buscá-la, para a pôr à cintura. De facto, na berma da picada, uma rola debatia-se em vão. Procurava levantar voo e seguir as outras. Mas um grão de chumbo tinha-lhe atingido a articulação da asa. Apenas a asa direita batia plenamente, fazendo o animal andar aos círculos na terra avermelhada do chão. — Então, alferes Ulisses? O que é que eu lhe dizia? Estava a duvidar da minha pontaria... — Não estava, não senhor. Mas essa foi atingida por um golpe de sorte ou azar, conforme as perspectivas. Sorte para si; azar para ela. Se quiser caçar mais alguma rola, meu capitão, o melhor é deixarmos o jipe na borda da picada e continuarmos a pé. Os animais são espertos. Já fixaram o barulho do carro. Não apanha mais nenhuma. — Não, não, nosso alferes, vamos para o jipe. Andemos. Lá para diante havemos de encontrar mais bandos. Fizemos o percurso até à missão e regressámos. Nem uma só rola nas árvores. Fizemos mais do que uma vez o percurso de um lado para o outro, em marcha lenta. Dir-se-ia que os animais tinham passado palavra, porque nem rolas nem outras espécies de aves. Regressámos à messe já o sol começara a desaparecer no horizonte. À noite, após o jantar, enquanto o pessoal foi até ao Briosa Bar tomar a bica e passar um bocado de tempo, fiquei na messe a ajudar o capitão a preparar o petisco. A certa altura, comecei a magicar: uma rola não dá para nada! Mesmo estando eu de dieta, ainda são quatro oficiais. Só se se contentarem com o aroma do petisco. Por isso, pedi licença para me ausentar por uns minutos e saí. Fui à cantina comprar uns aperitivos e uns pacotes de bolachas. Trouxe também umas garrafas de vinho verde, que meti no frigorífico, e reforcei a dotação com refrigerantes, cervejas e gasosas, para beber com uísque. A meio da noite, com mais de uma hora antes do gerador ser desligado e temos de ficar à luz do petromax, tínhamos uma mesa bem fornecida, não apenas com a amostra das habilidades culinárias do capitão, mas também com outros acepipes, entre os quais o queijo da serra que acabara de receber da metrópole. Foi o que se pode considerar uma confraternização agradável, que deu, apesar de tudo, para que cada um ficasse com uma reduzida amostra da qualidade gastronómica do que seriam rolas à Capitão Glória Dias, se ele tivesse seguido os meus conselhos e elas não tivessem debandado e passado palavra. Não vou agora reproduzir-vos as conversas e as brincadeiras do nosso segundo comandante a entrar com o capitão Glória Dias por apenas ter caçado uma rola. Cada um teve de se contentar com a prova de uma pequena amostra, que estava excelente, e desforrar-se na variedade que estava na mesa. Escusado será dizer que o queijo da serra foi das coisas mais apreciadas. Encolheu substancialmente. Foi muito apreciado, quer em fatias simples, sem nada a acompanhar, qual verdadeira gulodice, quer acompanhado com fatias de pão. Em suma, todos ficaram plenamente satisfeitos, à excepção da minha pessoa, que teve de se limitar a provar um pequeníssimo pedaço do animal, para não estragar a dieta e a noite. Para terminar o episódio da caça, devo dizer-vos que, na manhã seguinte, após uma fugaz passagem pelo gabinete de comando, passei toda a manhã à caça com o capitão Glória Dias. Uma vez mais ficou o médico sem viatura. Para não ir a pé para o hospital, fui-o lá levar a seguir ao pequeno-almoço. Foi uma manhã quase integralmente passada com o capitão. Levei-o até às sanzalas dos arredores de Quimbele. Nunca quis seguir os meus conselhos: largarmos a viatura e andarmos a pé, sem barulho e sem conversas. E o resultado foi que, tirando a primeira infeliz, que foi atingida por um grão perdido de chumbo, mais nenhuma se deixou aproximar, para desgosto do nosso capitão Glória Dias (e também para mim, que gostaria de o ter visto satisfeito!), porque acabou com uma manhã inglória de caça às rolas. |