Final da operação |
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Com a minha reflexão acerca da imaginação e das suas capacidades e também de Fernando Pessoa, que tinha de se intrometer nas minhas escritas, tenho já um monte razoável de aerogramas preenchidos e empilhados na minha frente. E a projecção da parte final do filme da operação por fazer. Está a campainha do cinema a tocar e a sala a escurecer. Acabemos com as digressões e ocupemos o nosso lugar. Acabo de rever os últimos instantes das cenas anteriores, para melhor nos situarmos na acção. Acaba de ser arrancada do meu corpo a cabeça com as mandíbulas de uma quissongo. Revi-me a desinfectar com álcool as marcas, que sangraram ligeiramente. O acampamento já foi levantado e está agora instalado noutro local mais saudável. Viram-se rapidamente as labaredas do fogo que consumiu os vestígios das NT e as fotografias foram tiradas. Está neste momento a passar na tela da minha imaginação a noitada de cinco para seis. Vi-me por uns breves instantes, instantes muito fugazes, dentro da tenda e à luz do foco a preencher as nove linhas referentes ao dia cinco de Maio. Acabo de embrulhar muito bem a agenda no plástico e de a guardar no bolso do camuflado. E a noite passou com incrível rapidez. A revisão das imagens oníricas e não oníricas também passou de maneira fugaz. Foram tão rápidas as imagens que não me deram tempo de as registar nas linhas invisíveis do aerograma. Foi mais uma noite sem chuva, para meu agrado e do capitão. Acordámos na manhã de domingo, dia seis de Maio, não ao som dos sinos a chamarem-nos para a missa, mas no meio de uma algazarra de animais voláteis, com plumas certamente coloridas, tão coloridas como o estridente chilrear destas espécies avícolas que não conseguimos ver, mas que se ouvem distintamente, aqui e além, nas copas altas das árvores que nos protegem. Bom sinal! Sinal que não há qualquer perigo e que até os animais se adaptaram à nossa presença, que não consideram hostil. É uma belíssima manhã de domingo! Por enquanto ainda o calor não é mais do que uma agradável carícia do sol, que já se ergueu no horizonte. — Quando é que arrancamos daqui, Capitão? — Hoje é domingo, Ulisses. O mais importante já nós fizemos. Vamos passar aqui toda a manhã. Arrancamos depois do almoço. — Do pequeno-almoço, quer o capitão dizer. — Não, Ulisses, do almoço, estou eu a dizer. Vamos passar a manhã toda aqui. Trata é de sacares a lamparina da mochila, que o Galvão e eu estamos com fome. — E o Reguengos também, além de mim, Capitão. Vamos lá ao pequeno-almoço.
O momento ficou registado. Ainda em meias, para alívio dos pés, e com os copos nas mãos, aquecemos o nosso pequeno-almoço e ficámos registados na camada fotossensível da película. — Esperemos que a fotografia fique boa, Galvão. — Então porquê, alferes? — Porque a sua máquina não tem flash. Aqui à sombra das árvores e ainda com o sol bastante baixo, a luz não é muita. Tomado o pequeno-almoço, com os nossos depósitos devidamente atestados para aguentarmos o resto da manhã, demos uma volta pelo acampamento. Serviu para nos ajudar a passar o tempo, mas sobretudo para verificar se as sentinelas estavam nos postos e avaliarmos o estado psicológico do nosso pessoal. — Já reparaste, Ulisses, que o nosso pessoal até parece que está acampado em turismo no meio da mata? — Estava precisamente a pensar o mesmo, Capitão. Até parece que foi telepatia. O capitão apanhou-me os pensamentos. — Acreditas nisso? Só se for para telepatos, Ulisses. Não estamos na época da caça aos patos. Só se formos nós, os patos, que andamos aqui a dar o corpo ao manifesto. — O que é que o Capitão queria? O pessoal de carreira não se mete nestas aventuras. Manda-nos a nós, aos milicianos. Os de carreira, cuja profissão é a guerra e deveriam estar aqui em vez de nós, fazem as comissões bem instalados nas grandes cidades e vilas. Vão-se enchendo e subindo na carreira, graças às comissões que fazem. — Isso é verdade, Ulisses. Nunca ouviste dizer que quem se... (piiii!) é sempre o mexilhão? |
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