Operação mataquenha

Peço desculpa por esta interrupção sonora na fala do capitão. A culpa não foi minha. Foi da censura, que riscou o vocábulo. Fora este corte de uma palavra, que também começa como a primeira desta frase, o diálogo está correctamente transcrito.

— Já agora, Galvão, não seria altura de tirarmos outra fotografia com nós os quatro a passar revista às tropas?

— E quem é que tira a fotografia, alferes?

— Isso é fácil, Galvão. Pede-se a um dos nossos homens. Não acha que devíamos ficar os quatro juntos para a posteridade?

— Está certo, alferes. Estamos todos de acordo. Não é verdade, Capitão Alberto?

— De que estás à espera? Passa a máquina a um soldado e põe-te ao lado do Reguengos. Eu fico entre ele e o Ulisses.

Mais uma fotografia foi disparada, tendo como figurões o furriel Galvão, o Reguengos, o Capitão Alberto e a minha ilustríssima pessoa.

Depois da passeata e revista às tropas no meio da mata angolana, regressámos ao recolhimento da tenda.

— O que é que o Galvão está a fazer? — perguntei eu.

— Vou-me pôr à vontade. Vou-me despir.

— O quê? Temos uma sessão de strip-tease na mata? — perguntou o capitão, brincando com o furriel. — Ainda se fosses uma miúda jeitosa...

— Olhe que é boa ideia, Galvão! — disse eu. Vou também pôr-me à vontade. Mas não vou tão longe. Vou descalçar-me. Vou tirar as botas e as meias e ficar à vontade.

— Também vais fazer strip-tease, Ulisses?

— Não, Capitão. Não vou tirar a roupa, à cautela. Não vou tão longe como o furriel. Pode aparecer por aqui alguma abelha que implique comigo. Já me bastou da outra vez, que fiquei com um alto na planta do pé.

— Ó Reguengos, tire-nos uma fotografia. — pediu o furriel Galvão. — É para mandar para casa. É para verem que aproveitamos bem os momentos a fazermos campismo no meio das operações na mata.

Voltámos a ficar registados na película. Nós os três: eu, o capitão e o furriel. Nós os três, comodamente instalados na nossa «barraca» de campismo militar.

A dada altura do nosso descanso matinal, reparei numa mancha preta junto à unha do dedo grande do pé do furriel.

— Oiça lá uma coisa, Galvão, já olhou para os seus pés? Nunca sentiu nada de estranho, durante a nossa marcha no meio do mato?

— Não. Porquê, alferes?

Levantei-me e pus-me a examinar o dedo grande do pé do furriel.

— Ou muito me engano ou o furriel já se tramou. Não seguiu os meus conselhos, no outro dia, quando andou descalço à volta da nossa tenda.

— Já me tramei porquê, alferes? — perguntou o furriel meio surpreendido, meio preocupado.

— De certeza que nunca sentiu uma impressão estranha no pé? Assim como uma sensação de mordedura e de comichão?

— Nunca, alferes.

— Ouve lá, Ulisses, o que é que se passa? — perguntou o capitão. — A que propósito estás a mexer no pé do furriel?

— Capitão, ou muito me engano, ou o Galvão já se tramou. Andou descalço. É um perigo do caraças, aqui no solo angolano.

— Um perigo porquê, Ulisses? Podemo-nos picar nas abelhas, como te sucedeu a ti?

— Olhe aqui este ponto negro, junto à unha. E vejo aqui uma espécie de galeria debaixo da pele. Admira-me como é que o furriel ainda não se queixou.

— Qual é o problema?

— O furriel já foi atacado.

— Foi atacado?!

— Sim, Capitão. Desconfio que tem aqui um parasita já instalado. Isto tem todo o aspecto de ser uma mataquenha.

— Uma mataquenha, alferes? — perguntou o furriel, já em estado de alarme.

— Sim, uma mataquenha. É um parasita. É uma pulga penetrante. Vamos ter de tratar disto imediatamente, antes que o furriel venha a ter problemas durante a marcha de regresso. Temos de extraí-la e desinfectar isto muito bem.

— O alferes tem a certeza?

— A certeza absoluta, absoluta, não. Mas quase. Tenho quase a certeza de que não estou em erro. Já vi muito disto enquanto estive no Alto Zaza. Por isso recomendei sempre aos meus homens para nunca andarem descalços.

— Ouve lá, tu sabes tratar disto?

— Sei, Capitão. Disto e de muito pior. Esquece-se que já substituí várias vezes o médico da nossa Companhia em situações de emergência. Não se lembra, há tempos, do Graça Marques ter dito, por brincadeira, que lhe andava a fazer concorrência e, às vezes, a dar-lhe trabalho com as situações mais difíceis, que me ultrapassavam? Sei como resolver isto. Mas agora não vou ser eu. Temos entre nós médicos muito mais habilitados para esta emergência.

— Estás a gozar connosco, Ulisses? Onde é que temos aqui os médicos? Só se for o soldado enfermeiro, que consiga resolver a situação. Aqui não vejo mais ninguém.

— Não estou a gozar, capitão. Temos entre nós verdadeiros especialistas no tratamento destes parasitas.

— Quem, podes dizer-me?

— Temos os GEs. São exímios em extrair pulgas penetrantes. Fazem-no com tal perícia, que o paciente nem se queixa. Mesmo em casos mais graves do que este, em que o pé está completamente infestado e com galerias de fazer inveja aos mineiros, os GEs e os nativos, em geral, são exímios em extrair mataquenhas. Esperem uns segundos, que eu já volto com um GE.

Levantei-me e fui falar com o chefe Simão. Disse-lhe das minhas suspeitas e pedi-lhe que me indicasse o GE que considerava o melhor especialista em extracção de pulgas penetrantes.

Voltei à tenda com o GE.

— É sim, alféris. O nosso furriel apanhou mataquenha.

— É grave?

— Nan, meu alféris. É fácil tirar.

Tivemos, durante cerca de cinco a dez minutos, uma pequena intervenção cirúrgica feita por um nativo com instrumentos rudimentares, os mais simples, encontrados em plena floresta tropical. O GE escolheu um pequeno graveto do chão. Com a faca do mato, limpou-o da casca e aguçou muito bem a ponta. Em seguida, utilizando a minha lamparina a álcool, desinfectou-a com o fogo e endureceu-a. Depois, pegou no dedo grande do pé e, segurando a lanceta afiada de madeira, cravou-a precisamente no centro do pequeno olho negro que se detectava nitidamente junto ao rebordo da unha. Evitou furar o animal.

O furriel olhava o trabalho e, meio receoso, procurava suportar qualquer eventual dor que viesse a sentir. Tal como se de um calo se tratasse, o furriel aguentou perfeitamente esta breve operação cirúrgica, efectuada com um graveto com a ponta bem afiada e endurecida pelo fogo.

De início, tudo o que o soldado GE fez foi procurar chegar ao nível do bicharoco, sem lhe tocar. Em seguida, com todo o cuidado, alargou a cavidade a toda a volta do animal e só depois, já com largura suficiente para o extrair inteiro, sem deixar parte dele no interior, cravou o parasita em pleno centro e procurou puxá-lo completamente para fora. Ficou apenas um pequeno orifício no dedo, sob a camada da pele, que não chegou sequer a sangrar. Limitámo-nos, no final e com o bichinho esborrachado no chão, a limpar muito bem toda a zona com algodão e álcool. O enfermeiro colocou depois um penso para isolar a área e o resto da manhã passou-se sem mais incidentes ou casos dignos de menção neste nosso registo.

Posso agora dizer que, graças à imprevidência do furriel, tive a oportunidade de referir um problema corrente em toda a África. É um dos muitos parasitas que atacam o Homem. Durante o tempo que estive no Alto Zaza assisti a algumas situações deste tipo, mas nunca me ocorreu fazer-lhes referência na minha correspondência.

Amanhã, quando estiver com o Doutor Graça Marques, se me lembrar, peço-lhe um dos manuais de medicina tropical e vejo se lá encontro informações de índole científica acerca deste tipo de parasita dermatológico. E forneço-vos as respectivas informações. Note-se, e volto a frisar, se me lembrar e se encontrar informações a este respeito. De qualquer modo, já aqui fica o registo de uma situação imprevista no último dia da nossa permanência em pleno mato.

— Está terminado o filme? — Estão vocês a perguntar-me.

E eu respondo: — Claro que não! Está na hora do intervalo. Vou parar a escrita por uns minutos. Vou lá fora, isto é, vou deixar o sossego do meu quarto e vou à sala de jantar. Vou ao frigorífico buscar uma bebida fresca. Espero ter a sorte de não encontrar ninguém. A esta hora, deverão os oficiais estar com o Doutor Graça Marques no Briosa Bar, em confraternização com os civis de Quimbele. Até daqui por uns minutos. 

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