Papel da imaginação

Já repararam onde o silêncio do meu quarto nos levou?

«Mas que grande chato que o meu filho me está a sair!» — Está agora o pai a pensar. E não se fica por aqui. Está ainda a perguntar: o que é que isto tem a ver com os relatos das experiências vividas em Angola?

Tem toda a razão! No entanto, ouso responder-lhe:

— Pai, tudo tem a ver com tudo por esta ou aquela razão. Nada surge ao acaso. Tudo tem a sua explicação. O que é que tenho estado a fazer nas minhas duas últimas cartas? Não serão as experiências de guerra por que tenho passado que vos estou a relatar? E como acha que eu consigo recuperar todos os momentos vividos e, inclusive, reproduzir-vos as conversas com os meus camaradas?

Não tenho um gravador de cassetes dentro da cabeça, como é lógico! Se o tivesse, teria o meu trabalho facilitado. Mas tenho os meus neurónios, que vão armazenando as experiências e uma poderosíssima imaginação, que consegue restituir-me quase na íntegra tudo por quanto tenho passado. Só para os pais ficarem com uma ideia da capacidade da minha imaginação, posso dizer-vos que ela é tal que, no silêncio do meu quarto, não só revejo mentalmente todas as imagens, como tenho de escrever em alta velocidade para não perder as palavras dos diálogos, que ouço distintamente.

Às vezes, tão distintamente, que dir-se-ia voltar a ter as personagens, quais hologramas vivos, a falar na minha frente. E o mais surpreendente é que consigo ver-me a mim próprio, como se o meu holograma se materializasse diante de mim. Tudo isto, graças à imaginação!

Estou agora a lembrar-me de uma figura célebre da nossa literatura. Já ouviram falar em Fernando Pessoa e nos seus heterónimos? Estou a lembrar-me de uma carta deste nosso poeta a um amigo, também ele escritor, de nome Adolfo Casais Monteiro. Nessa carta em que lhe fala dos seus próprios heterónimos, refere não apenas as características dessas personagens com vida própria que saíram da sua imaginação, como o próprio acto da escrita dos versos, uma escrita como que automática, em que tudo lhe sai de rajada e em que ele, mesmo em pé, apenas se limita a registar no papel. Nem os pais imaginam como essas palavras estão rigorosamente exactas. É mesmo possível surgirem outras entidades dentro de nós com autonomia própria, como se fossem nossos filhos mentais. Certamente, quando me revejo a falar com os meus camaradas, essa figura que se parece comigo e nasceu de mim, certamente já não será verdadeiramente a minha pessoa, mas uma projecção mental da minha pessoa num contexto já passado, como se fosse possível rebobinar o tempo e voltar a projectar os acontecimentos, sendo eu agora o espectador dessas revivências do passado. Tudo isto só é possível graças às capacidades reprodutoras da nossa imaginação. E querem crer que consigo reproduzir tudo, encher centenas de linhas nos aerogramas praticamente ao correr da pena, sem a mais pequena interrupção do discurso e, na maior parte das vezes, sem a mais pequena incorrecção linguística? Tal e qual como a situação evocada por Pessoa, relativamente a um dos seus heterónimos, quando conseguiu escrever de jacto e sem interrupção todo um poema de longa dimensão.

Só não consigo escrever mais de cada vez por causa dos duplicados a químico, que ficam em meu poder. Obrigam-me a carregar com uma certa pressão na esferográfica. Ao fim de algumas horas, começa-me o pulso a doer. Daí as pausas frequentes que me vejo obrigado a fazer. Servem-me não só para me refrescar com uma bebida agradável, mas também e sobretudo para recuperar do esforço, especialmente quando o pulso começa a reagir mais do que o que permite a resistência humana.

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