Agenda protegida

Está bem de ver que quando esta conversa ocorreu entre mim e o Rodrigues, ainda não tinha em Quimbele os oficiais da CCS. Estava longe de imaginar que no próprio dia em que tive esta conversa ia ficar à frente da Companhia. Tudo aconteceu imprevistamente e ao mesmo tempo. E, apesar do imprevisto, nem tudo foi mau. Mas não é disto que quero falar. Afastei-me dos oficiais meus superiores para ficar em sossego na vossa companhia e retomar a parte final da operação.

Hoje não é dia de cinema em Quimbele. Só há filmes às quartas-feiras e aos fins de semana. Todavia, apesar de ser quinta-feira, vou procurar rever a parte final da operação na mata. Será melhor do que ir ao cinema. Tenho tudo ainda bem registado nos neurónios. E com a minha poderosa imaginação, felizmente vou poder rever todas as cenas e, espero, voltar a ouvir as conversas. Quando a memória começa a debitar-me os dados que foi gravando, é ver a caneta a deslizar em alta velocidade sobre os aerogramas. E tenho de ser rápido. Só assim consigo apanhar todas as conversas. Por isso, o silêncio da noite é para mim o momento ideal. Permite-me voltar a ouvir tudo com muito mais nitidez, como se tivesse na minha frente o pessoal com quem andei. Ah, é verdade, tenho também comigo os registos com as principais anotações. Tenho sempre a preocupação de as gravar na minha agenda. Durante a operação, andou sempre no bolso do camuflado. Andou sempre bem junto ao coração. E muito bem embrulhada em plástico, muito bem protegida, para não se estragar. Se não tivesse tido estes cuidados, estaria agora completamente inutilizada. Durante a operação, fartei-me de atravessar riachos e pequenas linhas de água. Cheguei a andar completamente encharcado. Todavia, a agenda não apanhou a mais pequena gota. Desde aquele triste acontecimento de Mafra, que há muito vos relatei, desde esse dia em que me vi em situação aflitiva e um dos meus camaradas saiu em péssimo estado, mais morto do que vivo, desde esse dia em que a minha agenda ficou com as capas completamente enlameadas e da cor do barro, desde então nunca mais deixei a agenda ao acaso. É, como já o disse várias vezes, o meu livro de bordo. É nela que registo metodicamente tudo quanto faço ao fim de cada dia.

Agora me lembro que me esqueci completamente de uma coisa importante. Queria encontrar-me com o furriel Galvão e passou-me por completo! Espero que ele já tenha mandado revelar as fotografias e, sobretudo, que não se esqueça de mandar duplicar aquelas em que eu figuro. Ainda foram umas tantas! Não posso agora precisar o número. Uma meia dúzia? É o que iremos ver, quando retomar o fio à meada. Certamente que os momentos voltarão a surgir-me, durante a projecção do filme no ecrã da minha imaginação.

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