Recurso a um aliado |
Durante parte da manhã, só tive um momento agradável. Consegui uns escassos minutos de conversa com o meu braço direito. Há mais de uma semana que não conseguia ter uns bons momentos de conversa na companhia daquele que se tem revelado o meu melhor amigo, o furriel Rodrigues. Desde que saímos da Quimabaca, tenho andado mais com outros elementos do que com o pessoal do meu grupo de combate. Durante os seis dias de operação, tirando um ou outro soldado, era tudo pessoal de outros grupos. Foi óptimo ter-me encontrado com o Rodrigues. Bebi um fino e aproveitei para desabafar. Não há como ter um amigo verdadeiro, alguém em quem se confie, para podermos desabafar e aliviar as tensões. É bem melhor do que a confissão a um padre, ainda que seja mouco. E muito melhor do que nos virarmos para um muro e ficarmos longo tempo a despejar-lhe em cima o que nos vai na alma. É como vos digo. Desabafei e encontrei um aliado para me ajudar a resolver os problemas, um aliado de confiança, que começava erradamente a pensar que eu me tinha esquecido dele. — O alferes agora abandonou-nos. Deixou de conviver com o seu pessoal. — Abandonei-vos? Isso não é verdade, Rodrigues. Estou sempre a lembrar-me de todos os elementos do meu grupo. Mas que quer? Têm-me separado! Desde que viemos da Quimabaca para aqui, só me têm surgido problemas. E é cada um que nem imagina! — Então porquê, alferes? — Imagine que, durante o meio ano em que andámos fora da sede da Companhia, o capitão me nomeou Vogal da Gerência Administrativa. Diz ele que me nomeou no dia em que chegámos de Luanda a Quimbele, no ano passado. — Não tinha cá outros alferes com ele? Não era mais lógico, alferes, ter nomeado um dos alferes que cá estava com ele na sede da Companhia? — Era, Rodrigues. Foi isso mesmo que lhe disse. Mas ele respondeu-me que me tinha escolhido a mim e que tinha toda a documentação para assinar. — E o alferes assinou? — Tive que assinar. Quando me recusei, ameaçou-me. Ameaçou-me que me punia por não lhe acatar as ordens. — E o alferes assinou? — Acabei por assinar. Veio-me com a conversa que estava a desconfiar injustamente dele, que era miliciano como eu, que estava tudo em ordem e que ele próprio fora o primeiro a assinar. — Quer que lhe diga o que penso, alferes? — Claro. Diga. Para isso é que estou a aproveitar a sua amizade e a desabafar consigo. — Penso que o alferes já se lixou. Ou muito me engano, ou o capitão tramou-o. — É precisamente por pensar o mesmo que ando com isto atravessado. Já comecei a procurar analisar a papelada. Posso estar enganado, mas parece-me que notei uma certa má vontade em ma passarem para as mãos. O Rodrigues é que me podia dar uma ajuda. Eu não sei para onde me virar. Além disto, tenho ainda o processo de um soldado que se desenfiou com um carro roubado e uma arma. Estou a procurar meter-me dentro da dinâmica dos processos judiciais. E, ainda para cúmulo, desconfio que o capitão vai dar baixa ao Hospital Militar. Se isso acontecer, fico aqui sozinho à frente da Companhia. — O que é que o alferes pretende que eu faça? Já sabe que pode contar sempre comigo. — O que pretendo é simples, Rodrigues. Converse com os soldados que têm permanecido sempre na sede. E também com o nosso pessoal que aqui está. — E faço o quê, concretamente? — O pessoal costuma frequentar a cantina e o bar. Procure averiguar se eles detectaram alguma coisa de anormal. — Anormal como? — Por exemplo, desvios de material de consumo exclusivamente militar, como bebidas, por exemplo, géneros diversos, bolachas, chocolates, etc. Em suma, se detectaram ou suspeitam de alguma negociata ilícita com os géneros de uso exclusivamente militar. Entretanto, eu vou continuar a verificar a contabilidade. Ou muito me engano, porque não é esta a minha especialidade, não sou forte em contabilidades, ou há qualquer coisa que não bate certo. — Algum desvio nas contas, alferes? — Não sei ao certo. Mas estou convencido que há gato escondido com o rabo de fora. E mais desconfiado fiquei quando falei com o furriel que cá tem estado sempre à frente da cantina e dos géneros. Quando toquei no assunto, não gostei da reacção dele. Deve haver qualquer arranjinho entre ele e o capitão. E depois, para me espicaçar mais, notei uma certa má vontade na resposta às minhas perguntas. Alguma coisa tem de haver, Rodrigues. Por que razão acha que me nomearam a mim vogal e não os alferes que cá estiveram sempre na sede? Não lhe parece bizarro? — No seu lugar, alferes, também não ficava nada tranquilo. E já reparou que só agora, ao fim de meio ano, é que lhe dizem que é vogal? — Posso contar consigo, Rodrigues? — Claro que sim, alferes. Hoje mesmo começo a por-me em campo. — Mas não fale a ninguém desta nossa conversa. Vá procurando indagar sem dar demasiado nas vistas, não vá levantar e afugentar a lebre. Vamo-nos encontrando de vez em quando. E talvez até mais do que até ao momento. Se o capitão se vai embora, acabo por ficar aqui sozinho, só com o Doutor Graça Marques. — O Capitão vai-se mesmo embora? Vai-nos deixar? Então foi mesmo para o tramar, alferes. Arranjou um bode. — Um bode? — Sim, alferes, um bode espiatório. Livra-se da nossa Companhia e fica cá o alferes, que se lixa. — Ele não vai embora, Rodrigues. Deve ir de baixa mas é para o Hospital Militar. Por isso é que digo que se não for a sua companhia, não tenho com quem conversar e me abrir à vontade. Consigo sinto-me seguro. — E pode contar sempre comigo. Já está farto de saber isso. Vemo-nos, pelo menos, nos treinos, alferes. Pelo menos, ao fim da tarde, encontramo-nos no campo. A malta anda a treinar para o encontro em Carmona. — Tem visto o Joaquim? Tem sido bem tratado, Rodrigues? — Não se preocupe. Está bem integrado. Até parece militar. Tem tudo o que é preciso. Desde que o alferes o trouxe do Alto Zaza, tem sido bem tratado. O Capitão deu ordens para ser tratado como se fosse um dos nossos soldados. Logo vê-o, durante o treino. Vai lá estar, não é verdade? — Claro, Rodrigues. Vou dar todo o apoio ao nosso pessoal. E se o capitão for para Luanda, como penso que vai, e ficar a substituí-lo, pode ter a certeza que a Companhia e o pessoal ficarão em boas mãos. Já me conhece. Tudo o que faço, procuro fazê-lo o melhor possível. |