Obstáculos ao 3º dia

No sábado de manhã, dia cinco de Maio, iniciou-se o regresso. A nossa progressão fez-se no sentido inverso, mas pela outra margem do Bamba, pela margem direita, no sentido contrário ao da corrente.

Tal como nos outros dias, levantámos o acampamento de madrugada e descemos a encosta sensivelmente pelo mesmo caminho. Junto do rio, na margem esquerda, tivemos a primeira paragem forçada. Recebi a ordem para passar a palavra aos restantes: «O pessoal dispõe-se ao longo da margem e monta a segurança. O alferes deve deixar a posição e ir falar com o capitão.»

Desloquei-me até junto do capitão. Junto à margem, estava ele com o chefe Simão e o Reguengos. Apenas faltava eu. À nossa volta, verifiquei que o pessoal estava disposto em pontos estratégicos, tendo alguns elementos a atenção centrada na margem oposta. Era a margem que tínhamos que alcançar, para percorrer no sentido ascendente.

— O meu capitão mandou-me chamar?

— Sim. Temos de decidir se patrulhamos na outra margem.

— Não é isso que convém fazer, capitão?

— É.

— Então qual é o problema?

— Temos que atravessar o rio. Já viste a largura e o caudal?

— Não me parece fundo. E a água não corre com muita força. Se fosse há dois dias atrás, capitão, aí o caso era totalmente diferente.

— Totalmente diferente como, alferes? — perguntou o Reguengos.

— Com o temporal que se abateu sobre toda a região, Reguengos, isto — e apontei para o rio — deveria estar intransponível.

— Estava como, alferes?

— Não devia ser possível passar para o outro lado. Devia ter o dobro da altura e uma corrente dos diabos. Com a saraivada que desabou durante horas... Não se lembra do barulho que fazia nas chapas do telhado?

— Que barulho, alferes?

— É verdade! O Reguengos não estava connosco. Só chegou depois disso. Na estava connosco, mas apanhou uma bruta carga, com a picada cortada em vários sítios. Sabe bem como choveu durante horas seguidas.

— Que achas que devemos fazer, Ulisses?

— Capitão, não me parece difícil a travessia. O único problema é com os nossos homens mais baixos do que nós.

— Diz lá como achas que deveremos fazer, para ver se bate com aquilo que aqui discutimos antes de chegares.

— Quer que lhe diga, sinceramente, como devemos fazer, capitão? Não me parece nada de especial.

— Diz lá então. Aguardamos apenas a tua opinião para prosseguirmos. Se estivermos todos de acordo, arrancamos.

— Não devemos ouvir também o furriel?

— Não. Queremos é a tua opinião.

— Três ou quatro GEs, dos mais altos, atravessam para o outro lado. Com cuidado, para experimentarem a altura da água e a corrente. Uma vez do outro lado, dispõem-se no terreno e montam a segurança. Em seguida, o nosso pessoal mais alto posiciona-se de metro em metro no meio do rio, para facilitar a travessia aos baixotes. Passam as armas e as mochilas. Passam-nas de mão em mão e com cuidado, para não se molhar nada, especialmente as munições, o rádio e o material de enfermagem. O pessoal mais alto, pode efectuar depois a travessia, com os braços bem levantados e as armas bem levantadas, para não se molharem e prontas a disparar, em caso de emergência. Os mais baixos passam com a ajuda dos que estão dentro de água. Para lhes facilitar a travessia, passam as armas aos que estão a dar apoio. Depois de todos do outro lado, o pessoal que se manteve na água a dar apoio segue para a margem, cada um na sua vez, começando pelo mais afastado, e retoma a posição na coluna. Penso que é este o melhor procedimento, capitão. E com o calor que vai estar nas próximas horas, quando o sol estiver mais alto, a roupa molhada sobre o corpo vai ser um excelente sistema de refrigeração.

— Gostámos de te ouvir, Ulisses. Disseste praticamente aquilo que já tínhamos pensado.

— Então para que é que me mandaram chamar? Qual foi o interesse de termos estado aqui a perder tempo, capitão?

— Não foi perda de tempo, alferes. — disse o Reguengos. — Quisemos ter mais uma opinião, para ver se estávamos todos de acordo. E a estratégia do alferes agradou-nos. O chefe Simão tem muito boa opinião a seu respeito. Parece que se saiu muito bem no tempo em que esteve no Alto Zaza. Confirmo as palavras do Chefe Simão: «O nosso alferes tem muito esperto no cabeça.»

Esta saída inesperada do enquadrante Francisco deu-me vontade de rir, mas tive de disfarçar e engolir o riso à força.

— Estás bem cotado na zona, Ulisses. — disse o capitão. — Nem me pareces o mesmo da operação helitransportada.

— Não avançamos porquê, capitão? Temos a travessia e o regresso pela margem direita.

— Tem calma, Ulisses. Já lá vamos.

A travessia do Bamba efectuou-se sem o mais pequeno incidente. Tirando alguns episódios caricatos, porque os soldados mais baixos ficaram com a água pelo pescoço e tiveram de ser apoiados pelos outros, tudo correu lindamente.

Andámos durante toda a manhã sob um sol escaldante. Atravessámos diversas linhas de água, subafluentes do Bamba. Foram para nós excelentes. Permitiram-nos encher os cantis. Aproveitámo-los também para encharcar as roupas. Enquanto andamos, vão secando e ajudam-nos a manter uma temperatura mais suportável, diria mesmo, agradável, porque, como devem saber, a evaporação provoca um arrefecimento. Isto constitui como que uma defesa contra o excessivo calor. É por esta razão que, debaixo dos camuflados, mantemos camisolas interiores de algodão sem mangas. O suor encharca-as. E a evaporação permanente ajuda a conservar o corpo a uma temperatura aceitável. Por outro lado, andar em plena selva de tronco nu constitui o maior dos disparates. Não apenas ficamos expostos às picadas de toda a espécie de insectos, como corremos o risco de uma rápida desidratação. Outra regra importante é aproveitar sempre as linhas de água. Durante as operações, podemos andar dias quase sem comer. Mas uma coisa que temos de ter é os cantis sempre atestados. Neste aspecto, a região é, por enquanto, que estamos no final da época das chuvas, rica de minúsculos cursos de água. É graças a esta permanente humidade e ao calor que se faz sentir que a vegetação é, em alguns locais, de elevada densidade e difícil penetração.

Chegámos a um local propício para acamparmos ao fim de muitas horas de marcha, de muitas travessias de riachos e de progressão por vezes difícil, nas zonas mais densas, só penetradas graças ao esforço do pessoal que ia na frente e cuja principal arma são as catanas. Foi precisamente junto de um riacho que resolvemos acampar, para recuperação de forças e passagem do resto do dia. E, antes da montagem das tendas, decidimos começar pela montagem das sentinelas e por um banho. Só depois disto procurámos comer alguma coisa.

Duas horas depois de estarmos devidamente instalados, tivemos um ataque imprevisto. Estava enfiado a descansar debaixo da tenda e fui um dos primeiros a ser atingido. Levantei-me bruscamente, como se me tivessem espetado uma agulha.

— O que é que foi? — perguntou assustado o capitão, que estava deitado ao meu lado, quando me viu levantar precipitadamente e começar a despedir-me em altíssima velocidade.

— Quissongo, Capitão. Estamos a ser invadidos.

Ainda mal o alarme tinha acabado de soar e já outros camaradas estavam na mesma aflição que eu, a despirem-se e a procurarem livrar-se das roupas e das dolorosas ferroadas das formigas.

A formiga quissongo — e aqui têm outra vez o elemento QUI, se é que ainda se lembram da minha reflexão linguística — é um simpático bichinho, muito estimado na região por todas as criaturas. Não há animal, por mais forte que seja, capaz de lhes resistir. Tudo foge disparado em alta velocidade à procura de lugar mais saudável. É que a quissongo é um bichinho terrível, o autêntico terror destas paragens. Não há pessoas nem animais que lhe façam frente. Os animais mais ferozes, até o rei da selva, têm-lhe um respeitinho diabólico.

De corpo fino e avermelhado, a quissongo é uma formiga com uma enorme cabeça, armada com duas fortíssimas mandíbulas que se cravam facilmente na carne de qualquer ser vivo. Todo o animal que tenha o azar de se lhe atravessar no caminho é devorado vivo em poucos minutos, se não der o fora enquanto é tempo. A quissongo é, segundo creio, o equivalente da piranha. Esta ataca na água; aquela em terra, nas zonas por onde se desloca. E as linhas de água não chegam sequer a constituir obstáculo. Ela é persistente e consegue ultrapassá-las. O único elemento a que não resiste é o fogo.

Se alguém tem o infortúnio de as pisar, não tarda que comece a ser brutalmente mordido por elas. Começam a trepar pelas calças, trepam-nos pelas pernas acima, entram-nos até nas botas. E, passados uns instantes, sem pedirem licença a ninguém, ferram-nos as mandíbulas sem dó nem piedade. E ferram-nos com tal violência e penetração, que continuam agarradas à carne quando as arrancamos. O corpo da formiga vem preso entre os nossos dedos. Mas o que não vem é o conjunto cabeça e mandíbulas, que continua preso ao nosso corpo, como pinças pontiagudas cravadas na carne. De modo que, por cada formiga temos duas operações: eliminá-la, separando-lhe o abdómen da cabeça; retirar a cabeça com as duas pinças e limpar e desinfectar a zona mordida com álcool, quando aquelas tenazes estão mais fundamente cravadas e provocam sangue.

Perante este ataque imprevisto, contra o qual não há defesas que nos valham, tivemos que desmontar rapidamente o acampamento e procurar outra zona mais saudável próxima da linha de água.

Após este ataque, que acabo de reviver e me fez eriçar os pelos do corpo, porque a memória das ferroadas ainda está fresca, vou ter de interromper a escrita por uns momentos. O filme já acabou. Saiu o pessoal do «Ninho das Víboras» e saio eu da mata, após um ataque de quissongo. Estava de tal modo entusiasmado a rever o filme em que fomos nós os actores, que só dei pelo adiantado da hora quando ouvi os primeiros ruídos de gente a entrar na messe de oficiais. É o Dr. Graça Marques que acaba de chegar. Vou conversar um pouco com ele e preparar o petromax, porque a luz eléctrica já não deve manter-se por muito tempo. Quando estiver tudo a dormir e houver novamente silêncio na messe, retomo a escrita por mais uns minutos.

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