2º dia no mato |
Estamos no segundo dia no mato e, felizmente, o capitão ainda não teve motivos para se lamentar por ter seguido os meus conselhos e não ter trazido o ponche. A esta hora, o filme deve estar a meio. E eu tenho de avançar, sem perda de tempo. Ainda me falta muito. Restam-me talvez umas duas horas de luz do gerador e de silêncio na messe. É este um silêncio de ouro e convidativo para evocar os dois dias seguintes de operação, se é que vou ter tempo para isso. O objectivo do segundo dia na mata é bater toda a zona ao longo do rio Bamba e alcançar uma elevação com mil e sete metros de cota. Tal como ontem, levantámos o acampamento ainda sem sol. Ainda o manto da noite estava a desbotar, já nós andávamos atarefados a desmontar as tendas, a arrumar as mochilas e a disfarçar os vestígios da nossa presença. As latas vazias e o lixo característico da presença do bicho-homem foi reunido e enfiado numa cavidade, que voltámos a cobrir de terra e disfarçámos com folhagem. Por muito cuidado que se tenha, nunca é possível eliminar totalmente os vestígios da nossa passagem. As clareiras abertas no meio da densa vegetação e os arbustos e o capim mexido e calcado só passado algum tempo voltam a reconquistar o espaço e a retomar o aspecto natural. Pela análise pormenorizada que estivemos a fazer da carta topográfica, pareceu-nos que a linha de água junto da qual ficámos não tem largura suficiente para ser um afluente do Cuango. E não nos enganámos! Ao fim de cerca de uma hora e meia de marcha difícil, por meio de vegetação densa, deparámos com uma linha de água abundante e de considerável largura. Era, finalmente, o rio Bamba. Seguimos o percurso do rio em direcção ao interior, ou seja, em direcção à confluência com o enorme rio africano que este minúsculo alimenta. Fizemos a primeira pausa para comer por volta das dez e meia da manhã. Tínhamos prescindido do pequeno-almoço, para aproveitar a frescura da madrugada e ganharmos tempo. Acabáramos de chegar à base do monte. Era seguramente o nosso objectivo. Tínhamos pela frente uma subida, não muito íngreme, mas prolongada. E não podíamos desperdiçar a proximidade do rio, com água em abundância para nos lavarmos e abastecermos os cantis. Foi uma pausa mais que merecida. Descansámos. Calámos os roncos surdos dos estômagos vazios e recuperámos energias. Aproveitámos, inclusive, para retirar o suor do corpo, ensaboá-lo e lavá-lo. Alguns soldados tinham tido a feliz ideia de meter um sabonete nas mochilas. E o sabonete acabou por andar, durante uns minutos, de mão em mão. O único aspecto negativo, que me desagradou, foi o de ter de voltar a enfiar a mesma roupa a cheirar a suor. Apesar de ter levado umas mudas, preferi guardá-las para quando chegássemos ao objectivo. Embora sem a fresca água do rio para nos lavarmos, tinha pelo menos a vantagem de passar o resto do dia e a noite com roupa interior lavada e meias em melhor estado do que as que trazia nos pés. E um dos produtos que mais ajuda me prestou foi o pó de talco que trouxe numa embalagem. Com as botas cheias de talco, foi-me mais fácil voltar a enfiá-las e evitei problemas durante a marcha. A subida até ao cimo do monte fez-se com alguma dificuldade, especialmente na fase inicial. O facto de termos pausado durante meia hora, se por um lado nos permitiu refrescar no rio e recuperar energias, obrigou-nos a um maior esforço para reaquecimento do motor. Depois de uma marcha forçada e prolongada, por vezes uma pausa revela-se contraproducente: quebra-nos o ritmo e dificulta-nos a sua recuperação. A subida fez-se com alguma dificuldade, apesar do declive não ser muito acentuado. Não foi acentuado mas prolongado, até conseguirmos alcançar a crista. Toda a encosta está coberta por alta árvores, que nos protegeram do calor fortíssimo de um sol quase a pique. Alcançámos o pico do monte não sem algum esforço, mas o resultado foi surpreendente. O panorama é magnífico! A partir de determinada altura, a mata começa a rarear. O cume é quase como uma bossa de camelo sem qualquer vegetação, a não ser umas raquíticas ervas a que parece faltar a água das chuvas. Vê-se tudo à nossa volta. Um denso manto verde esconde perfeitamente toda a área por onde passámos. Se tivéssemos tido algum azar, não teria sido possível a evacuação de helicóptero, porque não só não existe qualquer clareira onde pousar, como dificilmente daria com a nossa localização. — É este o objectivo. Não há qualquer dúvida. Isto parece conferir com os dados da carta topográfica. O que te parece, Ulisses? — É provável que seja, Capitão. Aqui é difícil de dizer. Não temos pontos de referência. Com a carta orientada pela bússola, penso também que será este o local. Mas certezas é impossível ter, Capitão. A menos que tivéssemos um altímetro, para ver se a altitude confere com o que aqui está registado. Talvez os GEs consigam orientar-se melhor, Capitão. Pergunte ao chefe Simão. E o Reguengos, o que lhe parece? — Penso que estamos no objectivo. O nosso alferes está certo. É impossível dizer com certeza, mas penso que é este o local. É o mais alto aqui da zona. Naquele sentido, vai-se ter à Camuanga e à fronteira. Ali em baixo, corre o maior curso de água que encontrámos. — É isso mesmo que também penso, Reguengos. — disse eu, reforçando-lhe a opinião. E o chefe Simão, o que tem a dizer? — É sim. — É o quê, chefe Simão? — perguntou o capitão. — É o local do mapa, meu capitão. — E onde é que vos parece melhor para montarmos o acampamento? — Se o meu capitão me permite... — Sim! Qual a sua opinião, Reguengos? — Se o meu Capitão me permite, eu sugeria que ficássemos ali em baixo, naquela zona, entre o cimo despido do monte e o começo das árvores. Temos a sombra e a protecção das árvores. — Mas ali o terreno é inclinado, Reguengos. — É, Capitão Alberto. Mas é também o mais seguro. Aqui ficamos desabrigados. Ficamos descobertos. Somos apanhados pelo sol e pelo vento, se houver algum temporal. E somos vistos à distância. O que é que o nosso alferes acha? Concorda comigo? — Inteiramente, Reguengos. A segurança é a coisa mais importante. É mais importante que a nossa comodidade. — Vamos então montar o acampamento na vertente para o interior. Mas antes vamos aproveitar o local e a altitude para contactarmos com o nosso pessoal. Desde que saímos de manhã que estamos sem contactar. — Certo, Capitão. Estabelecida a ligação com os nossos camaradas, com a sede da Companhia e o Alto Zaza, deslocámo-nos para a zona abrigada pelas árvores e começámos a montar o acampamento. Temos de um lado, para cima e a curta distância, a crista escalavrada do monte; para baixo, a zona cada vez mais densa da mata. Nós estamos precisamente na zona onde começa o arvoredo, um local que nos parece mais seguro. De cima, a zona descoberta não permite qualquer avanço de tropa hostil sem que seja facilmente detectada por nós; do lado oposto, o arvoredo e vegetação cada vez mais densa dificulta a penetração. No silêncio da noite, uma investida inimiga por aquele lado será facilmente detectada pelo barulho anormal da abertura de uma passagem através da vegetação. Montada a segurança ao local, aproveitámos a protecção das nossas tendas para descansarmos e dormir um pouco. Dorme-se melhor durante o dia do que à noite. Enquanto o sol nos ilumina e o pessoal anda levantado, o sono, pelo menos o meu, é mais tranquilo, porque nos sentimos mais seguros. Durante a noite, o meu sono é leve e frequentemente interrompido. Mesmo com os olhos fechados, estou sensível aos mais pequenos ruídos. E o mais incrível é que se os ritmos naturais se alteram, se deixo de ouvir determinados ruídos, acordo logo sobressaltado com a mudança imprevista do ambiente sonoro. Para cúmulo, a noite neste local teve uma duração anormalmente longa. Como o terreno é inclinado, porque ficámos numa das vertentes de um monte, tivemos de posicionar as tendas com a abertura para baixo, de modo a ficarmos com a cabeça na posição mais elevada. Se não tivéssemos tomado esta precaução, quando estivéssemos deitados teríamos tendência para rolar pela encosta. Em suma, em vez de ficarmos numa posição perfeitamente horizontal, tivemos de dormir com alguma inclinação. E, para piorar a situação, acordámos todos a meio da noite, sobressaltados por uma enorme barulheira. Levantou-se um violento temporal. Nem uma gota de água! Mas uma ventania fortíssima, que fazia um barulho ensurdecedor. Valeu-nos talvez a forma do monte e a protecção das árvores. Junto ao solo, ao nível das nossas tendas, o vento era fraco. Mas na zona do vale, o barulho era elevado. Dir-se-ia que o vento vinha canalizado pela zona do vale e decidido a sacudir violentamente as folhas das árvores e a arrancá-las. Era um uivar persistente e um ramalhar frenético, como que um despique de forças entre o vento e as árvores, que viam as copas vigorosamente sacudidas. Verdadeiros contrastes da mãe-natureza: durante toda a tarde, um sol escaldante de trovoada; durante a noite, frio e vento capaz de tirar o sono ao homem mais fatigado. |