1º dia no mato

— Alferes Ulisses, são horas. É preciso levantar.

Abri os olhos. Era o enquadrante Francisco, que me estava a acordar. Levantei a tampa de cabedal do relógio e tentei ver as horas.

— Ainda é de noite. Que horas são?

— Alferes, são horas de levantar. O capitão e o furriel já andam a acordar a malta.

— Ainda está escuro.

— Já se vê, alferes. Daqui a pouco temos o sol no horizonte.

— Não é demasiado cedo?

— Não, alferes. Temos de aproveitar para andar o máximo enquanto o calor não aperta. Temos de alcançar o primeiro local da parte da manhã. É uma vegetação densa, alferes. Temos de andar bastante. Uma progressão difícil. A mata é fechada. Daqui por umas horas o calor aperta.

— Já está todo o pessoal levantado?

— Já anda tudo a pé.

— E deixaram-me ficar para o fim?

— O alferes roncava. O capitão não o quis acordar logo. Temos de desmontar as tendas e abalar.

— E os guias?

— Já está tudo arranjado. Os meus homens já escolheram pessoal de confiança.

— Tens que te despachar, Ulisses. Vamos comer qualquer coisa e arrancamos logo.

— É precisa a minha lamparina, capitão?

— Não. Isso é quando estivermos na mata. O pessoal do Quitari preparou-nos o café com leite. É tomar o pequeno-almoço e ala, que se faz tarde.

A desmontagem das tendas, o arrumo do material nas mochilas e o pequeno-almoço ocupou-nos algum tempo.

— O nosso capitão já reparou nas horas que são? — perguntou o furriel.

— Já, Galvão. O sol já vai alto e daqui a pouco são oito horas. Já perdemos demasiado tempo.

Eram precisamente oito horas quando arrancámos em passo acelerado em direcção ao primeiro objectivo. A fase inicial fez-se ao longo de um trilho, bem conhecido dos carregadores nativos do Quitari. Iam eles à frente, juntamente com os milícias do enquadrante Francisco. Logo a seguir, com distâncias de três a quatro metros entre cada homem, ia uma secção de GEs, seguida pelo meu pessoal. Entre cada elemento graduado tínhamos uma secção. Na extremidade da cauda, outra secção de elementos GEs.

A progressão fez-se com relativa facilidade e velocidade até entrarmos na zona de floresta densa, precisamente o início da área a patrulhar. Aqui, a progressão passou a fazer-se ao ritmo do trabalho das catanas, para abertura do caminho nas zonas de mais densa vegetação. Eram treze horas quando chegámos a uma linha de água abundante, numa zona plana e de densa vegetação. Patrulhámos a área envolvente, na margem do curso de água. Nem o mais pequeno vestígio de passagem humana.

— Este é o sítio ideal para acamparmos. Temos cinco horas de marcha sem pararmos, capitão. É um sítio bom para acamparmos e pernoitarmos, capitão Alberto. — disse o enquadrante Francisco.

— O que é que acha? — perguntou o capitão ao chefe Simão. — É bom local? É seguro?

— Sim, meu capitão. Não tem pirigo, meu capitão. Não tem turra.

— É preciso limpar a área para montarmos as tendas e colocar as sentinelas — disse o capitão.— O enquadrante Francisco e o chefe Simão acham que este é um bom local. Pelos nossos cálculos, é o ponto um do nosso objectivo. Amanhã, temos toda esta zona ao longo do rio. Vamos andar sempre no meio de mata cerrada, ao longo desta linha de água. Tu e o furriel — disse o capitão, dirigindo-se especialmente a nós os dois — vão orientar o pessoal e elaborar uma escala de serviço. Dois homens em cada posto. Duas horas de sentinela para cada homem. A mudança é de hora a hora, mudando apenas um elemento. Estamos entendidos? Ah, e não esquecer que não há barulho. As conversas fazem-se em voz muito baixa.

— Isso já se sabe, capitão. Toda a malta está avisada que na mata não há conversas nem barulho. Boca fechada e ouvidos abertos, sempre atentos, são uma das bases da nossa segurança.

— Sabes tu, Ulisses, mas não sabe o pessoal. Têm a memória curta. É preciso estar sempre a lembrar-lhes as normas de segurança.

— Esteja descansado, capitão, que eu volto a lembrar-lhes.

— E o almoço agora, meu capitão? As sentinelas vão já para os postos sem almoçarem? Não era melhor comerem antes de irem para o local?

— Não, Galvão. As sentinelas devem ser a primeira coisa. — disse eu.

— Como então, alferes?

— É fácil, Galvão. Montamos os postos de sentinela e as tendas para pernoitarmos. Com as sentinelas dispostas e as tendas montadas, temos o resto do tempo para almoçar e descansar. Para comer dez minutos chegam e sobram. Um dos elementos vai para a tenda respectiva, come o que tem a comer e regressa imediatamente ao posto, dando a vez ao outro. E é preciso que o pessoal fixe mentalmente a zona e preste atenção aos sítios por onde passamos. Devem ser sempre os mesmos. Fica um trilho que nos vai servir de orientação durante a noite.

Distribuídas as sentinelas e com as tendas montadas e cobertas com vegetação, demos início ao primeiro dia de turismo forçado na selva. Se houvesse turras nas redondezas, creio que viriam a correr ter connosco, porque o cheiro do café acabado de fazer espalhou-se por uma vasta área.

— Já reparou, capitão, que estamos aqui preocupados com a segurança e acabámos de quebrá-la?

— Como assim? — perguntou o enquadrante Francisco.

— Estamos a denunciar a nossa posição.

— O quê?! Estamos a denunciar a nossa posição? — perguntou o capitão um tanto surpreendido com a minha afirmação.

— Estamos, capitão. Quando ando na mata, olhe, por exemplo, na Quimabaca, ainda não tinha chegado às sanzalas e já sabia que estavam próximas.

— Como assim, Ulisses? Tens algum radar?

— Tenho, Capitão. O mesmo que todos trazemos entre os olhos.

— Que radar? Onde é que temos um radar entre os olhos? Estás a ficar apanhado do clima.

— Creio que estou a perceber o nosso alferes — disse o enquadrante. — E ele tem razão. Está a referir-se ao nariz, não é verdade?

— Exacto. Com o cheirinho do café, se houver turras nas redondezas, quase de certeza que vêm a correr ter connosco, para tomar uma bica.

— Como assim? Não te estou a perceber, Ulisses. Como é que consegues detectar a proximidade das sanzalas?

— Pelo nariz, Capitão. É preciso é que o vento esteja de feição.

— Como? Cheira-te as pessoas?

— Não, capitão. Embora também tenham cheiro, e algumas um verdadeiro pivete, não são as pessoas. Há um produto que costuma estar nas sanzalas, geralmente na orla, afastado das cubatas. Está colocado em estrados sobre estacas, a um metro ou mais do chão, de onde se liberta um cheio característico, que se sente a quilómetros.

— O quê?

— A fuba, Capitão. Nunca reparou nos estrados suspensos, na orla das sanzalas, com a mandioca a secar ao sol? Pois é precisamente isto que liberta um cheiro característico, activo, que consigo detectar a grande distância. Nas vezes que andei com os GEs do chefe Simão, na mata à volta da Cabaca, observei-os e aprendi com eles a abrir os nossos sentidos: vista, ouvidos e olfacto. São as nossas grandes sentinelas, Capitão. E silêncio absoluto, para ouvirmos o que a natureza tem para nos dizer.

— Estás a falar como um mestre, Ulisses. Já tens matéria para ensinar aos teus alunos.

— O capitão está a gozar comigo, mas olhe que é verdade. Tem aqui o Reguengos e o chefe Simão. Eles podem confirmar se tenho ou não razão. E sabe que mais, Capitão? Vou por-me à vontade. Tirar as botas e as meias e enfiar-me na tenda.

— Fazes bem. E eu vou-te fazer companhia. Mais logo, vamos tomar banho no riacho e atestar os cantis.

Tirei uma sesta deliciosa, apesar do colchão não ser dos melhores. Havia um graveto de um ramo que, ao princípio, me incomodou. Uma vez eliminado, as folhas que coloquei debaixo do cobertor dobrado formaram uma cama aceitável. Se o médico aqui estivesse, tinha-me tirado outra fotografia a dormir. Em breve, deixei de ouvir o barulho da selva e da água a correr e entrei na terra de Morfeu. Acordei com as costas moídas eram umas quatro da tarde.

— Ouve lá, não queres ir tomar banho ao riacho? — perguntou-me o capitão. Nós vamos banhar-nos e encher os cantis.

— Toda a gente ao mesmo tempo, Capitão?

— Estás tolo. Isto aqui não é a praia de Luanda. Em turnos. Enquanto um grupo mergulha, outro monta a segurança. E aproveitamos para encher os cantis. Trouxeste os comprimidos para desinfecção da água?

— Está tudo na mochila, Capitão. E o enfermeiro traz também uma reserva na mochila, juntamente com o material de primeiros socorros. Já ligaram para a Sede da Companhia?

— Achas que eu me esqueço de estabelecer o contacto pela rádio, Ulisses? E mesmo que não me lembrasse, o nosso homem das transmissões nunca se esquece das obrigações. Achas que ando a dormir, Ulisses?

— Não, Capitão. Foi só para lembrar, isto é, para me sentir mais tranquilo.

Depois do banho, sofri um ligeiro contratempo. Cometi a imprudência de não enfiar logo as meias e calçar as botas. Tive o azar de pôr o pé em cima de uma abelha. E levei o brinde correspondente: uma dor de longa duração e um alto na planta do pé para me incomodar. Valeu-me o nosso enfermeiro, que vem dotado para todas as emergências. Em breve estava esquecida a dor e o inchaço. O único inconveniente, se é que isto pode ser considerado um inconveniente, foi ter andado o resto da tarde acompanhado pelo cheiro forte e mentolado da pomada balsâmica do laboratório militar.

Antes de anoitecer e com todo o pessoal controlado, preparei uma refeição quente com a lamparina a álcool, à qual se associaram os graduados, o enquadrante Francisco e o chefe Simão e alguns soldados, que estavam próximas da nossa tenda. Como ao almoço acabámos com todos os bolos e iscas de bacalhau, preferimos agora não tocar nas latas das rações de combate e deixá-las para os dias seguintes. A nossa refeição para o resto da tarde e da noite foi uma bebida preparada com leite em pó e o Milo, uma bebida agradável, leve, energética e revigorante. Apesar de não ter contado com os soldados que se associaram, a quantidade trazida, bem racionada, deu perfeitamente para os dois dias seguintes.

A primeira noite na mata passou-se bem. Embora as noites arrefeçam consideravelmente, adoptámos entre os quatro que ficámos na mesma tenda uma estratégia que se revelou eficaz. Como temos de passar rondas durante a noite, rodamos de três em três horas. O que está na ponta da direita levanta-se e vai fazer a ronda. Quando regressa, deita-se na extremidade esquerda, obrigando os outros a deslocarem-se. É incomodativo, porque temos de acordar os que dormem. Mas desta forma também nos calha a vez de ficar no meio dos outros, o que permite aproveitar o calor dos corpos e suportar melhor o frio da noite.

Como vêem, temos tácticas originais e eficazes para tudo: até para dormir melhor em plena selva, aproveitando a energia térmica libertada pelos nossos corpos.

O grande e único inconveniente durante esta primeira noite foi a conversa antes de adormecermos. O enquadrante Francisco, ou o Reguengos, como também já começámos a tratá-lo ao fim de um dia de convívio em operação na mata, estava com as pilhas carregadas de energia e com vontade de conversar. Começou a recordar alguns episódios cómicos passados com ele em plena selva. E foi um problema bicudo, diria até mais, diabólico: não podíamos rir à nossa vontade, para não quebrar o silêncio da noite.

Coloquem-se na nossa posição e imaginem a situação. Já imaginaram o suplício que é estar um indivíduo a recordar situações cómicas por ele vividas e nós perdidos de riso sem nos podermos rir à nossa vontade? Daria uma cena caricata, talhada à medida para o tempo em que o cinema era mudo!

Porque é que eu vos estou a relatar todos estes pormenores, aparentemente sem grande importância, em vez de fazer um relato sintético do que foi esta operação na mata? Por um lado, para melhor poderem acompanhar as minhas vivências; por outro, para vos mostrar que, apesar dos trabalhos em que nos vemos forçosamente envolvidos, não deixamos de manter a nossa boa disposição e o moral sempre elevado. E já que adoptámos esta estratégia narrativa, vamos continuar a mantê-la, porque, entretanto, já estamos no dia quatro de Maio.

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