Temporal imprevisto |
Enquanto decorre o filme «Ninho das Víboras» e estou aqui no maior silêncio, porque não há ninguém na messe de oficiais, é boa altura para recuarmos no tempo e regressarmos ao Alto Zaza. Estamos na madrugada do primeiro de Maio. Sobre as nossas cabeças, ouve-se uma barulheira a que já não estava habituado. Além dos formidáveis estampidos do temporal que assola toda a região, chovem pedras sobre as placas metálicas da cobertura do edifício de comando. Ninguém consegue dormir. De vez em quando, somos fortemente iluminados pelas descargas eléctricas, que caem sobre as árvores da mata à nossa volta e as fendem de cima a baixo. O capitão olha para mim. Lembra-se da conversa que tivemos no gabinete dele e lamenta ter seguido a minha sugestão. Não trouxe o ponche camuflado. — Dizias tu que já não eram precisos os ponches. Segui a tua deixa, lixei-me. Não o trouxe e agora é o que se vê. — Isto não é nada, capitão. Devem ser as despedidas da chuva. — Pois olha que se estão a despedir muito bem! — Ainda bem! Quanto mais chover, melhor é para nós! — Melhor é para nós? — perguntou o Vieira, que seguia a conversa entre mim e o capitão. Sinceramente, não te estou a perceber. Em que é que é melhor para nós, Ulisses? Só se for por não precisarmos de ir à água. A chover desta maneira, temos os bidões todos atestados. Já temos o abastecimento feito. — A chover desta maneira, Vieira, não há picadas que resistam. Vão levadas nas enxurradas. — E essa é que é a vantagem? Só se for para termos mais trabalho! Como não és tu que tens que cavar... Só dás ordens! — Às vezes é mais importante dar ordens que cavar, Vieira. Que interessa estar a estoirar o físico, se o resultado é negativo? Se não fossem as minhas ordens, se não fossem as minhas orientações, ainda agora estaria perdido nas picadas. O nosso pessoal tem energia, é jovem, mas falta-lhes o raciocínio. Sem as minhas orientações, nunca teríamos saído de algumas situações críticas em que estivemos. Ainda agora lá estariam a puxar pelo físico e a trabalhar para o boneco. — Mas afinal qual é a vantagem, carago? Estás para aí a falar, mas não respondeste ao Vieira. — Capitão, a grande vantagem é que com tamanho dilúvio as probabilidades de apanharmos com alguma mina na picada ficam reduzidas. Com as enxurradas, vão-se as picadas e os brindes surpresa que lá possam ter colocado. — Nunca tinha pensado por esse prisma. A tua lógica está certa, mas aqui não costumam colocar minas. — Fie-se na Virgem e ainda vai ver o trambolhão que leva! A chover desta maneira, capitão, não temos operação. Quem é que se vai meter debaixo de tamanho temporal? — Isso logo se vê. Já com o sol a iluminar-nos, embora invisível atrás de um céu cinzento e carregado de nuvens escuras, recebemos uma mensagem: «Toda região, inclusive sede [batalhão], violento temporal. Operação adiada dia seguinte». A meio da manhã, ainda debaixo de chuva, entrou um Landrover. Era a viatura com os milícias. Chegou o enquadrante Francisco com um grupo de seis homens, para nos auxiliar na operação. Chegou tardíssimo, em relação ao previsto. Deveria ter chegado ao destacamento ao amanhecer, para começo da operação. A viagem foi-lhes dificultada pelo mau tempo. Encontraram a picada cortada em vários sítios. Vinham completamente encharcados e enlameados, especialmente os homens que vinham atrás, na caixa aberta da viatura. Só a meio da tarde o tempo começou a clarear e a chuva a amainar. Geralmente, durante o período que estive a comandar o Alto Zaza, as chuvadas eram fortes, mas relativamente breves, seguidas de um sol forte para nos aquecer e enxugar. Desta vez, fomos martelados constantemente por uma chuva persistente e forte, durante horas a fio. Dir-se-ia que o Senhor São Pedro, ou quem quer que manda nas meteorologias destas paragens tropicais, decidiu esgotar todas as nuvens celestes, antes de dar início a um longo período de seca. Toda a área do aquartelamento ficou transformada num enorme lodaçal, de lama escorregadia e barrenta. Os nossos abrigos viraram pequenas piscinas. A única vantagem foi vermos a operação adiada por um dia e ficarmos com todos os bidões de duzentos litros atestados e com água para os próximos dias, poupando-nos uma ida à linha de água para abastecimento. Tirando as rotinas normais de um quartel no meio da mata, passámos parte do tempo na conversa e a jogar aos dados. Andamos sempre com eles, para termos uma forma de ocuparmos os tempos livres. Os meus continuam num dos bolsos, dentro da pequena carteira de cabedal, que serve simultaneamente de porta-chaves. Muitas vezes me têm feito recordar os bons momentos, em que me permitiram brincadeiras agradáveis com colegas, durante o meu tempo de universitário. Se falassem, teriam muitas e gostosas histórias para contar. Quem sabe? Talvez um dia os faça falar! Não seria novidade nenhuma. Se os relógios de Lisboa falaram em tempos, graças à feliz ideia de D. Francisco Manuel de Melo, nos seus Apólogos Dialogais, se os perros, isto é, os cães contaram as histórias dos seus donos, graças a Cervantes, nos «Colóquios de los perros», por que razão não poderão também os meus dados falar? Pois fiquem sabendo que, se isso alguma vez vier a acontecer, terão umas gostosas e picantes histórias para contar. Seria até uma maneira bastante original de satisfazer a curiosidade do médico, que anda constantemente a tentar caçar-me as minhas aventuras amorosas. Mas deixemo-nos de lembranças, que o tempo não pára e tenho ainda a operação para vos narrar. |