Abatido física ou psicologicamente?

Quimbele, 9 de Maio de 1973

 

Não há como o sossego da noite e a silenciosa protecção do nosso quarto, após um dia carregado de trabalho e de problemas, no meio de uma guerra de papeis, de regulamentos de Justiça Militar, de decifração de mensagens e de um sem número de imprevistos, para aumentar a carga emocional. Para cúmulo, até o estômago deu em implicar comigo. Rejeita-me a comida das refeições. Desde que comi a porcaria de uma lata de conserva, a meio da operação na mata, tem vindo a pregar-me partidas. Foi um estafermo de uma lata. Vinha armadilhada com lança-chamas. Eram sardinhas macho carregadas de tomate e picante. Provocou-me um enorme ardor e fez-me rejeitar a comida.

Hoje, para cúmulo e tristeza minha, vi-me privado do gostoso cafezinho. O médico, o Dr. Graça Marques, proibiu-mo completamente. Já me ameaçou com o hospital, se a situação não se modificar. Ando neste momento em regime de dieta. A única comida que o estômago parece aceitar bem são coisas geladas. Na hora da bica, como quase não almocei, substitui o café por um gelado de natas. Não houve qualquer reacção. O estômago manteve-se calmo. Não escoicinhou! Deixou-me fazer a partida de póquer de dados sem me obrigar a levantar e sair do café. À hora do jantar, por uma questão de cautela, fiz a minha própria comida. A Isabel, a mulher do Mário, de quem já vos falei, deu-me uma receita de leite creme. Fiz uma espécie de papas com farinha e leite. Para leite creme teria a reprovação de qualquer cozinheira. Estava comestível, apesar de tudo! Foi a minha refeição. Até ao momento ainda não tive qualquer reacção subversiva.

Esperemos que não haja nenhuma revolta ou sublevação do meu aparelho digestivo, para poder gozar as longas horas de um merecido serão em descanso no meu quarto. A estas horas, o pessoal militar e civil deve estar mergulhado no «Ninho das Víboras». É quarta-feira. Enquanto durar o filme, não devo ter aqui ninguém a perturbar-me o descanso. Não há melhor cinema do que ficar aqui sossegado, agarrado à caneta e aos aerogramas, na conversa convosco.

Acabo de receber, hoje mesmo, correspondência vossa. Chegou juntamente com um exemplar da revista “Science et Vie”, que deve ter vindo em cruzeiro pelo Atlântico. Como a viagem de barco é demorada, chegou com razoável atraso. Era o tal exemplar que há muito deveria ter recebido e que cheguei a pensar que se tivesse extraviado. Já recebi outros números muito mais recentes, inclusive o do findo mês de Abril.

Fiquei surpreendido com a notícia de que o pai comprou mais um rádio e anda a utilizar os meus auscultadores. E fica aqui uma interrogação: para quê tantos aparelhos de rádio? Terá sido para não ficar atrás de mim e passar a ter um aparelho com a mesma capacidade de captação de ondas curtas como o que aqui adquiri? Ou será para constituir, mais tarde, um museu, com tantos aparelhos guardados no sótão?

Mudando de assunto e ainda antes de retomarmos a operação na mata, disse-me o capitão que terei de antecipar ligeiramente as férias, para que ele possa depois ir também para aí a seguir a mim, dentro do período em que elas podem ser gozadas na metrópole. Depois disso, segundo me informaram na secretaria, só podem ser gozadas em território angolano. E disse-me o sargento que tenho direito a mais cinco dias do que o tempo que previra, porque ainda não gozei os cinco dias de licença a que temos direito de três em três meses para «descacimbar».

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