Diálogo no Alto Zaza |
Arrancámos para o destacamento do Alto Zaza logo a seguir ao almoço, tendo ficado o Valério a substituir o capitão. Ao todo, um grupo de combate, enquadrado por dois oficiais e um furriel, sem contar com o enquadrante Francisco, que se juntou no dia seguinte ao grupo, para nos ajudar durante a operação. Tal como o capitão previra, o final da tarde foi ocupado pelo pessoal a verificar, com a ajuda e controlo dos furriéis, todo o armamento. E isto foi para toda a gente que se encontrava no destacamento, independentemente de participarem ou não na operação. Apesar de todos saberem que o armamento deve ser periodicamente verificado, limpo e lubrificado, a dona prudência leva-nos, pelo menos a mim, a reunir de tempos a tempos o pessoal e a verificar o estado do equipamento. Há sempre aqueles que se desleixam, que só se lembram de Santa Bárbara nas horas das aflições. E se essas horas se verificarem, não será a melhor altura para verificar e desencravar as armas. Durante os momentos que estive disponível, porque já tinha verificado de manhã o meu material, aproveitei para descontrair um pouco. Dei uma volta pelos arredores do destacamento, na companhia do alferes que me foi substituir no Alto Zaza. Segundo ele, fui várias vezes procurado por um indivíduo de cor, sempre muito bem vestido e bem falante. — Não estou a ver quem possa ser, Vieira. Durante o tempo que aqui estive, era frequentemente visitado por nativos, que vinham conversar comigo e, muitas vezes, pedir-me ajuda. Até dinheiro cheguei a emprestar a alguns nativos, especialmente aos G.Es. E nunca deixaram de me devolver o empréstimo! — Este é um indivíduo ainda novo, que se distingue de todos os outros nativos. Estava muito bem vestido. Com calças bem feitas e vincadas e camisa de mangas curtas ao xadrez, com óculos escuros, parecia um senhor. E falava bem o português, Ulisses. Não me parecia um nativo das sanzalas. — Por isso que me dizes, estou agora a lembrar-me que recebi aqui, algumas vezes, talvez umas duas ou três, um indivíduo que confere com a tua descrição. Era um indivíduo ainda novo, denotando uma certa cultura. Falava um português correcto, muito diferente do que encontramos entre o pessoal das sanzalas e até dos próprios GEs, que falam um português macarrónico. — É capaz de ser o mesmo, Ulisses. Disse-me que falou várias vezes contigo. — Deve ser. E se é quem penso, pelas conversas que tive com ele verifiquei que conhecia muito bem a região. E de há longa data! Pensei algumas vezes se não será algum elemento terrorista, à cata de informações. Recebi-o uma ou duas vezes no meu gabinete e bebemos sempre umas cervejas. À cautela, nunca o deixei passar da zona da entrada, entre o portão e o nosso edifício do comando. A única vez em que dei uma volta por aqui, na companhia dele, fi-lo por fora do quartel. Fi-lo porque ele insistiu comigo, que me queria mostrar uma coisa. Seguimos ao longo da pista de aviação, pelo lado de fora da vedação. Fomos até ao fundo do nosso destacamento. Quis-me mostrar aquele canto, na extremidade junto à pista. Disse-me que eu era um alferes diferente dos outros que cá tinham estado e que as populações gostavam de mim. E contou-me uma história estranha, que não sei se é verdade. Disse-me que antes de nós termos vindo para cá esteve aqui um alferes que era um selvagem, um tipo detestado por todos, e que tinha matado alguns camaradas dele e que os tinha enterrado naquele canto do quartel. Achei a história um tanto bizarra. Mas não o contestei, porque nada do que me disse era inverosímil, embora me custe a aceitar que houvesse um oficial nosso com tamanha crueldade. De facto, naquele canto, e passei a reparar mais nele depois desta conversa, há uma zona mais alta com dupla vedação de arame farpado, que forma uma espécie de joelho saliente. Não é possível andar sobre aquele montículo de areia, porque está cercado por uma dupla fiada de arame farpado. Mas sempre pensei que, quando fiz a planta do destacamento, que aquilo era um reforço, para dificultar a entrada no destacamento, em caso de ataque por aquela zona. — Isso é uma história muito bem contada, Ulisses, para te convencer e captar a tua amizade. Às tantas, é capaz de ser algum elemento terrorista a procurar obter informações a nosso respeito, como pensaste. — Pensei e bem, Vieira! Tudo é possível. De mais a mais, os terroristas não trazem qualquer letreiro a dizer: «Terrorista fulano tal» ou «Sou terrorista». Seja como for, uma coisa é certa: o indivíduo foi sempre de uma enorme correcção, até com um certo nível, bastante simpático e educado, bom conversador. Tratei-o como amigo. Sempre que me visitou, bebemos umas bojecas. Recebi-o como gosto que me recebam também a mim. E a verdade é que fui para a Quimabaca e nunca mais me lembrei dele. |