Escrita adiada

Vou ter de interromper a minha conversa convosco. Daqui a pouco são horas do pequeno-almoço e tenho de me despachar. Já aqui estou há umas boas horas a escrever-vos, à luz do petromax. Acordei eram umas quatro da manhã. Isto deve ser consequência de um hábito antigo, do meu tempo de estudante liceal. Quando estava nas vésperas de testes, costumava pôr o despertador para esta hora, para estudar até às sete da manhã, porque às sete e meia tinha de estar na estação de Espinho para apanhar o comboio para o Porto. Ainda se lembram desse tempo? Bons tempos, em que a mãe me deixava o pequeno-almoço preparado de véspera, para não ter de se levantar de madrugada. Era só aquecer o café com leite e comer o pão com queijo ou manteiga, antes de sair de casa para a estação ou até mesmo antes de começar o estudo matinal. Bons tempos, apesar de algumas dificuldades, especialmente no Inverno, em que chegávamos ao Liceu Alexandre Herculano completamente encharcados.

Ao fim de tantos anos, continuo com uma certa tendência para acordar de madrugada por volta das quatro da manhã. Ou terá sido por causa das preocupações?

Não me bastava andar com uma pedra no sapato, tenho agora outro problema bicudo para resolver. Tenho um processo às costas para elaborar, por causa de um estúpido de um soldado. Durante o fim de semana, ausentou-se indevidamente. Desenfiou-se para a cidade com uma viatura civil furtada e uma arma que levou da arrecadação. De modo que vou ter de me meter dentro dos processos judiciais. Vou ter de recorrer à ajuda do sargento da secretaria, para me fornecer um Código de Justiça Militar e me dar uma rápida ensaboadela sobre a maneira de encetar um processo deste tipo. Possivelmente, irei ter de me deslocar a Sanza Pombo, para efectuar averiguações. Já não me bastava andar preocupado com o problema de ter de efectuar uma investigação à contabilidade da cantina e dos géneros, ainda me surge mais este processo. E para me pesar um pouco mais, vou ficar à frente da Companhia, porque o capitão vai estar ausente.

Vou ter de ficar por aqui. O sol já há muito nos ilumina e tenho as obrigações da rotina diária. Mais logo, ou na impossibilidade amanhã, retomo a escrita e acabo o relato da operação. Talvez inicie até uma nova colecção de aerogramas. Fecho já estes e envio-os para aí. Na dúvida, despeço-me por momentos. É curioso: acabo de me lembrar da frase «despeço-me com amizade». E acabo também de me lembrar do nome do engenheiro Sousa Veloso, que faz o programa televisivo relacionado com a agricultura.

Aproveitemos então a lembrança súbita. Despeço-me com amizade e até aos próximos aerogramas.

Vosso filho,

                      Ulisses.

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