No gabinete do capitão

À hora marcada, estava no gabinete do capitão.

— Pedi a tua presença aqui porque preciso da tua ajuda para rever os planos da operação. Além disso, tenho uns assuntos pendentes. Quando chegámos aqui a Quimbele, foste nomeado vogal da Gerência Administrativa.

— Como?

— Foste nomeado vogal da Gerência Administrativa. A Companhia tem toda uma série de problemas de logística, de contabilidade, sem os quais não se pode viver. Para haver comida no refeitório e na cantina, tem de haver quem trate da organização, da contabilidade. Tu foste nomeado vogal da Gerência.

— A que propósito, capitão? Como posso ser vogal de uma Gerência, se estive sempre ausente da sede da Companhia? Porquê eu e não os meus camaradas, que estiveram aqui sempre consigo?

— Foste tu quem nomeei. Alguém tinha de ser e foste tu quem eu escolhi. Está tudo em ordem. Todas as actas das reuniões estão conformes. Só falta que tu as assines, para ficar tudo nos conformes.

— Mas eu não vou assinar actas de reuniões em que nunca participei, tanto mais que nem sei o que aí está escrito nem o que foi feito durante o meio ano que estive ausente. E para mais sem saber que era vogal de uma Gerência Administrativa que eu desconhecia!

— Estás a desconfiar de mim?

— Não é uma questão de desconfiança, capitão. É uma questão de lógica.

— Está tudo em ordem, Ulisses. Eu próprio, que sou o principal responsável, já assinei todos os documentos. Só falta que tu assines, para despachar o processo.

— Eu não posso assinar documentos que desconheço e para mais de uma gerência que nem sabia que existia, capitão.

— Estás a recusar-te a cumprir as minhas ordens?

— Não estou a recusar nenhumas ordens, capitão.

— Estás, sim senhor! Tens que assinar os documentos. Caso contrário, puno-te. Estás a desrespeitar as minhas ordens e posso punir-te pelo não acatamento de uma ordem.

— Ninguém me pode punir por recusar-me a assinar documentos que desconheço, capitão.

— Posso eu, porque não estás a fazer o que te mando. E se não assinas, passas a ter problemas comigo. Passo a destacar-te para todas as operações que viermos a fazer. E na próxima, vais ter de te arranjar sem carregador. Além do mais, estás a pôr-me em xeque, porque estás a desconfiar de mim, que estou na mesma situação que tu. Sou miliciano como tu. Não vim para aqui por vontade minha, tal como tu. Importas-te de assinar os documentos no espaço que te está destinado, que ainda temos coisas mais importantes para tratarmos, antes de arrancarmos para o Alto Zaza?

— Capitão, vou assinar os documentos, para que não diga que não cumpri as suas ordens. E para sairmos deste impasse. Vou-o fazer contra vontade. E espero que não haja nada de grave, porque uma coisa lhe garanto desde já: vou meter-me dentro destes assuntos e averiguar se tudo está em ordem. E se detectar a mais pequena falha ou irregularidade, serei o primeiro a denunciá-la.

— Nunca vais encontrar nada, porque nada há de irregular. Podes estar descansado que está tudo em ordem.

— Espero bem que sim, para que não tenhamos problemas. E em relação à operação que vamos iniciar, o que é que o capitão pretendia de mim?

— Pretendo apenas que me ajudes a rever a planificação. Deves conhecer a região melhor do que eu.

— O meu conhecimento é o mesmo de toda a gente, capitão. O facto de ter sido o primeiro a ir para o Alto Zaza não significa que conheça a região melhor do que os outros. Até porque a selva, tirando os nativos, nunca ninguém a conhece suficientemente bem. Mais importante do que isso é saber quem vai, além de mim e do capitão. Vai mais algum alferes?

— Não! Vais apenas tu comigo. O Valério vai ficar a comandar a Companhia durante a nossa saída. E depois deverá seguir para o Cuango, porque temos este destacamento sem alferes. Como sabes, o Raul foi chamado para o Cabula Calonge e agora está de férias na metrópole. Possivelmente, depois da operação, vais ficar tu a comandar a Companhia, porque penso ausentar-me durante uns tempos.

— Ausentar-se como?

— Estou a pensar dar baixa ao Hospital Militar.

— Dar baixa ao Hospital Militar?!

— Sim. Ando com problemas de saúde.

— Que problemas de saúde, capitão?

— Problemas, que não são da tua conta.

— Levo o meu grupo de combate?

— Não. Vai o pessoal daqui. E vai também connosco o enquadrante Francisco, além do grupo G.E.

— E não vai também o furriel Galvão, como disse ao pequeno-almoço? Quem é o enquadrante Francisco? Não estou a ver quem seja, capitão.

— Logo ficas a conhecer. É um elemento que conhece muito bem toda esta região. Já cá está há muitos anos. Fez aqui a tropa e acabou por se deixar ficar por cá. É mais conhecido por Reguengos, de onde é natural.

— Qual é a região que vamos bater durante seis dias, Capitão?

— É precisamente isso que agora aqui quero rever contigo na carta topográfica.

— Antes disso, há uma observação que gostaria de fazer.

— Tem a ver com isto?

— Tem. Tem a ver com todas as operações que fazemos.Tem a ver sobretudo com a nossa segurança.

— Com a nossa segurança? E é o quê?

— Quando me foram buscar a Cabula Calonge, as primeiras pessoas a informarem-me desta operação de seis dias foram os soldados. Ora, se toda a gente na Companhia sabe com antecedência aquilo que vamos fazer, também os turras devem saber. E arriscamo-nos a ter alguma surpresa desagradável.

— Ninguém sabe da operação. Só eu e tu e quem for connosco ficará a saber a zona para onde vamos. E como a área da nossa Companhia é um território vastíssimo, se calhar quase tão grande como Portugal, o risco é mínimo. Isso é coisa que não me preocupa. Até pensei que me ias dizer alguma coisa mais séria!

— E não o é, Capitão? Será que a nossa segurança não é a coisa mais importante? Não será isto sério?

— Claro que é. Mas o saber-se que vai ser efectuada, em breve, uma operação, não é um factor de insegurança, Ulisses. Pode até ser vantajoso.

— Não o estou a perceber.

— Já vais perceber. Em primeiro lugar, não se sabe rigorosamente quando e onde é que a operação vai ser feita. Pode até nem se fazer. Mas o facto de constar que vai ser feita uma operação em data e local incerto pode ser um elemento a nosso favor. Pode constituir um elemento psicológico de dissuasão. O inimigo pensa duas vezes antes de se aventurar no nosso território.

— O pior, Capitão, é se ele pensa três ou quatro vezes, decide ir para uma zona provável e por lá se deixa ficar à espera que apareçamos, para nos dar as boas-vindas.

— Não estou preocupado com isso. Preocupa-me agora é rever contigo, aqui no mapa, a nossa operação de seis dias.

— Na carta topográfica, para ser mais exacto.

— Ou isso. É a mesma coisa. Entendeste bem o que quis dizer. Vai dar ao mesmo.

— Concretamente, qual vai ser o plano, Capitão?

— Arrancamos hoje de tarde para o Alto Zaza, logo a seguir ao almoço. Amanhã, avançamos para o Quitari.

— Já reparou que amanhã é o primeiro dia de Maio, Capitão? Vamos ter uma boa celebração do dia do trabalhador. Esperemos não ficar trabalhados.

— A zona que vamos bater é esta, junto ao rio Bamba, que atravessa toda esta região entre a Camuanga e o Quitari. Temos que passar nestes locais. O primeiro objectivo é este, próximo do Bamba. Depois, temos de bater toda a zona até este monte. Temos de o alcançar cedo e montar aqui o acampamento. Segundo a cota da carta, vamos ficar a cerca de mil e sete metros de altitude. Depois batemos toda esta margem do rio. Teremos de regressar a um ponto próximo do primeiro em que pernoitámos na mata. No dia seguinte arrancamos para o Quitari, onde voltamos a pernoitar. No dia seguinte, vão as nossas viaturas buscar-nos ao Quitari.

— E os carregadores, Capitão? Onde é que os arranjamos?

— Isso depois se vê. Só precisamos deles depois do Quitari, quando arrancarmos para a zona a bater. Arranjam-se no Quitari. O que pensas levar?

— Tudo o que é necessário, Capitão. Como teremos carregadores, vou levar algumas comodidades para o meio da mata. Não quer tomar uma bica no final dos nossos piqueniques na selva? Levo a máquina pequena de fazer café, a lamparina a álcool e o que é necessário.

— É verdade, não te esqueças das pilhas para os focos. Podem ser necessárias.

— Se cada oficial levar o que é preciso, repartindo a carga pelos carregadores, podemos levar várias coisas para aguentarmos melhor a passeata pela selva, Capitão.

— Lembra-te que somos só nós os dois.

— E os furriéis? Não levam também carregadores?

— Quais furriéis? Só vai o Galvão. Somos só nós os três mais o enquadrante, sem contar com o chefe Simão. Mas esse fica com o pessoal dele.

— Pois! Mas o furriel não leva também um carregador?

— Claro que sim. Vai ter também um carregador.

— Então é o que eu digo, Capitão. Ficamos na mesma tenda. Dá para levar algumas pequenas comodidades. Pelo menos, o nosso café após as rações de combate não nos há de faltar. E com a lamparina a álcool, podemos aquecer as latas de feijoada e ter uma refeição quente. A lamparina e a máquina de alumínio não pesam nada. É material levíssimo. Temos é que levar álcool em abundância, além da dotação habitual do enfermeiro. Aliás, o meu pessoal já está habituado a estas pequenas comodidades. Da primeira vez, ainda gozaram com o alferes. Mas rapidamente se habituaram. Durante os recenseamentos na Quimabaca, eles eram os primeiros a lembrarem-me, com receio de ficarem sem o cafezinho depois das refeições.

— Não precisamos de muita coisa. Além das rações e dessas pequenas comodidades, como dizes, só temos de levar um cobertor, um pneumático e o ponche, por causa da chuva.

— E o material para montarmos as tendas, Capitão. O ponche é que não me parece necessário, capitão. Para quê ir carregado com impermeável camuflado? As chuvas estão cada vez mais raras. O bornal é que é o fundamental, para não dormirmos ao relento. E espias, para montar as tendas. E as armas e as munições, tudo devidamente limpo e lubrificado, para não haver falhas. Este vai ser o meu trabalho antes do almoço, Capitão. Aliás, antes de vir falar consigo, cruzei-me com o Galvão. Como durante o pequeno-almoço o Capitão tinha dito que ele ia, recomendei-lhe para verificar se todo o pessoal tem o armamento limpo e os carregadores atestados.

— Isso vai ser o nosso trabalho de tarde, lá em cima, no Alto Zaza, Ulisses. Além de mantermos o pessoal ocupado, controlamos todo o material e daremos as instruções mínimas fundamentais.

— Pois olhe que eu vou aproveitar o resto da manhã para verificar tudo. Vou desmontar a arma. Vou limpar e lubrificar tudo, para não ter surpresas desagradáveis. E espero ainda ter tempo para ir beber um fino antes do almoço. Há mais alguma coisa a tratar, Capitão?

— Não. Podes ir. Vemo-nos ao almoço.

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