Saudades da terra

Estava muito satisfeito a procurar evocar o domingo de Páscoa no Alto Zaza quando fui interrompido pelos soldados e um furriel do alferes Raul:

— O meu alferes não quer vir connosco? Vamos dar um mergulho no rio e nadar um pouco.

Aceitei o convite. Fui com eles. E fiz muito bem! Passei uns momentos agradáveis. O riacho tem uma profundidade considerável! É dos melhores riachos que encontrei até hoje. Muito melhor que o Futa e que as insignificantes linha de água que conheci nos diferentes lugares por onde tenho passado. Fundo e com uma zona ampla com cerca de dez metros de extensão, o local é uma autêntica piscina natural. Dá para mergulhar e nadar. Foram uns momentos de grande descontracção. Verifiquei também que o pessoal não ficou aborrecido comigo pelo longo sermão que lhes preguei, logo pela manhã, após o pequeno-almoço.

São neste momento catorze e trinta minutos. Já tirei uma sesta a seguir ao almoço. Estou agora novamente de caneta na mão. E, para ser sincero, estou num estado de espírito bastante esquisito, a tentar rabiscar mais umas linhas. É uma sensação estranha! Não sei bem porquê. Talvez porque hoje é sábado e amanhã é domingo. Talvez por ser fim de semana e eu estar aqui desterrado, no meio de gente ignota, em longínquas paragens! Talvez porque recordo neste momento a hora da bica aí em Coimbra, no Arcádia, a conversa com os amigos, as miúdas a passarem no passeio mesmo à frente da mesa onde, eu e o pai, nos costumamos sentar. Talvez pelas saudades da casa, da minha aparelhagem estereofónica e das minhas cassetes com boa música! Talvez por causa da música que estou agora a ouvir no rádio e que gravei, em tempos passados, em tempos vividos, em tempos alegres e felizes, no meu gravador de bobinas. Tempos alegres e felizes, à mistura com outros tristes, mas já esquecidos!

Para ser sincero, não sei bem qual a causa justa deste sentimento estranho que agora me invade. Talvez seja o conjunto de tudo o que agora evoquei e de tudo o que ficou por referir. São as saudades dos tempos passados, na companhia da família, na companhia dos amigos! As saudades da terra e dos bons momentos aí vividos!

Durante os minutos que estive deitado, a fazer a sesta habitual depois do almoço, senti-me como alguém que estivesse a cumprir uma pena, preso entre quatro paredes. Só difere das quatro paredes de uma cela, porque tenho por prisão todo um imenso espaço vazio, um espaço rodeado de matas e capim, um espaço longínquo onde, sabe Deus onde, anda o motivo da minha presença aqui neste povo, entre gente de pele mais escura que a minha, vivendo em cubatas de madeira, entre gente que fala uma língua que ninguém entende e corrompe a minha numa algaraviada por vezes incompreensível... Ainda se aqui estivesse o Joaquim para me ajudar a entendê-los...

Sabem o que acabo de fazer neste preciso instante? Não sabem! Como haviam de saber? Ainda não o disse! Acabo de abanar, de agitar vigorosamente as folhas dos aerogramas, para sacudir a tristeza que me invadiu. Não têm culpa nenhuma da minha situação e não tenho o direito de vos estar a massacrar com tristezas! Tristezas não pagam dívidas. Temos de procurar encarar a realidade pelo lado positivo. Se não estivesse aqui, nunca poderia ter conhecido novas terras, novos horizontes. Nunca poderia ter conhecido as simpáticas gentes da Quimabaca, que tão bem me acolheram. Nunca teria podido aumentar os meus conhecimentos e nunca teria estas longas conversas convosco.

Não sou o único a ver-me nesta situação de degredo forçado. Quantas centenas, quantos milhares de almas andam por aqui desterradas como eu? Tenho todo este pessoal desconhecido que veio comigo, rapazes dos mais variados estratos sociais e com as mais variadas profissões, que se viram de um momento para o outro a carregar o mesmo fardo. Mas são talvez mais felizes, porque não têm as mesmas responsabilidades nem os mesmos cuidados a que sou obrigado por causa deles.

Vou ter de agitar novamente os aerogramas, porque ainda não consegui libertar-me deste sentimento estranho. Agarrou-se-me à pele e custa a despegar!

— Ouve lá, não tencionavas falar-nos da maneira como passaste o domingo de Páscoa? Já te esqueceste do que estavas a falar?

Ainda bem que o pai me fez a pergunta. E olhe que o vi, por momentos, na minha frente. Imaginação, já se vê! Mas que o vi, vi. Vio-o e ouvi as suas palavras. E até o vi sentado na minha frente, sentado à mesa do café, a fazer-me a pergunta. E já que me fez a pergunta, vou passar a responder-lhe. 

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