Acerca do capitão

Não vou retomar o domingo de Páscoa. Já passou. Não interessa aqui referir que estive parte da tarde num agradável convívio com os furriéis. Disputámos uma partida de póquer com os meus dados. E abatemos mais um dia não folha que se encontra pendurada na parede. Ainda se lembram disto? A folha em que registámos os dias de comissão a cumprir continua na parede da sala comum, ao lado do quarto dos oficiais, na sala que serve para as nossas refeições, os nossos momentos de convívio e de quarto dos furriéis. E, a meio da tarde, houve futebol no campo em frente ao edifício do comando. Assisti ao jogo na companhia do elemento mais jovem do quartel, o velho Manel, que continua sempre bem disposto, apesar da quantidade de anos que lhe pesam sobre os ombros.

Na segunda-feira, tive a agradável companhia do médico no Alto Zaza. A seguir ao almoço, foram para lá o capitão, o alferes Vieira e o Graça Marques. Aproveitei parte da tarde para dar uma volta a pé pelos arredores do Alto Zaza, na companhia do médico, que me ofereceu uma fotografia que em breve receberão.

— Quando é que me apanhaste a dormir, Graça Marques?

— Há dias. Pouco tempo depois de ter comprado a máquina.

— Olha que foi para mim uma verdadeira surpresa. Não dei por nada!

— Pois não! Quando entrei no quarto para te ir desafiar para sairmos, roncavas como um justo. Não resisti à tentação. Fui buscar a máquina e apanhei-te a dormir. Tirei a foto e voltei a sair. Não deste absolutamente por nada. Estavas ferrado e todo esparregado em cima da cama! Tenho ainda outra fotografia para te dar. Mas ficou em Quimbele. Lembras-te de eu te ter tirado uma foto a apanhar-te só a cabeça e de te ter dito que ia testar a máquina?

— Perfeitamente! Fui eu que te ajudei a regulá-la para uma posição de «close-up». Nem sabias o que era isto, quando te falei no «close-up»!

— Pois olha que a foto ficou impecável. As lentes são uma categoria! Estás nítido. Quase dá para contar os pelos do teu bigode.

— Estou curioso em ver essa maravilha. Vais dar-me uma, para mandar aos meus velhotes. Vão ficar felizes por me verem, ainda que seja só no papel.

— Ouve lá, Ulisses. Tenho uma coisa que te quero perguntar.

— Pergunta.

— Há bocado, quando chegámos, deixaste-me perplexo!

— Perplexo?! Mas a que propósito?

— Quando o capitão esteve a falar connosco, a falar da necessidade de ir alguém substituir o Raul, que está no Cabula Calonge, por que é que te ofereceste logo? Não seria mais lógico ir o Valério e ficares tu em Quimbele? Não é a tua vez?

— É. É a minha vez de ficar em Quimbele. Mas eu ainda não conheço o Cabula Calonge. Conheço bem toda a região do Alto Zaza, menos esta zona.

— Mas essa zona não fica mais próxima de Quimbele do que do Alto Zaza?

— Creio que sim. Mas a região mais importante de toda a Companhia é o Alto Zaza. Por isso, penso que deve também pertencer ao Alto Zaza. Até era aqui, no Alto Zaza, que deveria estar a sede da Companhia, e nunca na vila.

— Sinceramente, não te estou a entender. Trocas a civilização pelas sanzalas?

— Não tenho que andar permanentemente sob as ordens do capitão. Longe da sede, sou eu quem manda. Sinceramente, e olha que isto não é para dizer a ninguém, fica aqui entre nós, às vezes o capitão não me agrada.

— Não te agrada? Olha que é um tipo porreiro.

— Não. Não me agrada. Às vezes não me agrada. Tem demasiado «pâtois». Muita conversa. Está habituado a enrolar-vos, quando vos contacta nos consultórios, a publicitar os medicamentos... Tem às vezes saídas que não me quadram!

— É capaz de ser só impressão tua. Tens andado sempre afastado.

— Gosto mais da franqueza e do convívio dos meus camaradas, especialmente do Valério e do Vieira. Olha, por exemplo, o Vieira. É de poucas falas. Sempre calado, mas parece-me um tipo fixe, sensato, ponderado, um tipo de confiança. Totalmente o oposto do capitão, que julga que anda no Porto a impingir a banha da cobra a toda a gente.

— Estás a exagerar, Ulisses. Tem o feitio dele. É a maneira de ser das gentes tripeiras. Não tenho nada a dizer. Parece-me bom tipo.

— As gentes tripeiras conheço-as eu bem, Graça Marques. Lembra-te que fiz todo o meu liceu no Porto, no Alexandre Herculano. Deves conhecer. Para os lados de Campanhã.

— Estás a exagerar. Não posso dizer mal do capitão. Isso é impressão tua, Ulisses.

— Talvez tenhas razão. Deve ser impressão minha. Seja como for, no Cabula Calonge estou por minha conta. Devo estar lá bem, apesar de lá não estar o meu pessoal.

— Tu é que sabes. A escolha é tua. Mas creio que fizeste mal. Estavas melhor em Quimbele. 

Página anterior Home Página seguinte