Por falar em trabalho

O último fim de semana da minha estadia na Quimabaca acabou por ser passado fora. Tirando a sexta-feira, em que ocorreu, por exemplo, o episódio caricato das amêndoas e que foi praticamente um dia de descanso na sanzala, os dois seguintes foram, em grande parte, passados na picada entre o acampamento e Quimbele. No final da tarde dessa sexta-feira, dei a conhecer aos meus furriéis as actividades para o dia seguinte:

— Rodrigues e Ramalho, amanhã vai ser um dia de bastante trabalho. Apesar de fim de semana, de ser sábado, temos ainda a povoação de Marimba por recensear. É talvez das maiores sanzalas desta zona e está ainda por fazer.

— Essa sanzala é próxima daqui, alferes. Fica a caminho de Quimbele.

— É verdade, Rodrigues. Mas vai ser das mais trabalhosas. Começámos o trabalho pelas mais pequenas e pelas mais afastadas. Deixámos esta para o fim. Vai levar-nos mais tempo que a maioria.

— Talvez não, alferes. Agora já estamos treinados.

— Ora aí está! Foi precisamente por isso mesmo que a deixámos para o fim. Se fosse no início, iríamos levar um dia inteiro.

— Está lá o professor primário, alferes. Nem vamos precisar do Joaquim. Ele pode ajudá-lo.

— Ele pode ajudar-me? O Rodrigues não quer vir dar-me também uma ajudinha?

— Preferia ficar na sanzala, se o alferes não se importar. Preferia ficar cá com o Ramalho.

— Quer isto dizer que já combinaram alguma coisa para amanhã...

— Não combinámos, alferes. Mas preferia ficar aqui descansado. Olhe, por exemplo, a adiantar serviço.

— A adiantar serviço? Como?

— A passar-lhe os recenseamentos a limpo.

— A propósito, alferes, precisamos de reabastecimento.

— Isso é fácil, Ramalho. Fazemos o recenseamento de Marimba e damos uma saltada a Quimbele. O Ramalho vai comigo e trata de levantar na cantina o que necessitamos.

— Tenho mesmo que ir, alferes?

— Se quiser. Não necessariamente. Se fizer uma lista do que é preciso, não necessita de ir. Vai o soldado cantineiro. Entrega-lhe a lista e ele trata do reabastecimento.

— A que horas parte o alferes para o recenseamento?

— À hora habitual, Rodrigues. Durante o pequeno-almoço, escolhe os homens para irem comigo. Com a perspectiva da ida a Quimbele, não vão faltar voluntários. E como são sempre os mesmos a quererem sair, veja se desta vez há alguém que nunca tenha ido a Quimbele e necessite de lá ir. Às vezes há necessidade de certas coisas que só se conseguem numa civilização diferente desta em que agora nos encontramos. Nunca se sabe. Ele às vezes há necessidades basilares a precisarem de satisfação.

— Malandrice, alferes.

— Não é malandrice nenhuma, Rodrigues. Há necessidades e necessidades. Além do mais, aqui não há cafés e lojas onde arejar o dinheiro. Pode haver soldados a precisarem, por exemplo, de papel e tinta para escreverem...

— O alferes está a desviar a conversa... Não têm cá muitos aerogramas? Para que querem eles as cartas? Para gastarem dinheiro em selos?

— Adiante, Rodrigues. Mudemos de assunto. Fica então decidido. Vocês ficam este fim de semana sozinhos. Já não será a primeira que ficam cá sem mim. Vou eu amanhã fazer o recenseamento de Marimba e depois o reabastecimento a Quimbele. No domingo, cá me têm de volta. Sim, porque o recenseamento e o reabastecimento não se podem fazer no mesmo dia.

— O alferes até gosta! Amanhã é sábado. É dia de cinema. Até dá para passar um serão agradável.

— Aí está! Mais uma razão para ir um de vocês comigo.

A verdade é que não consegui convencer nenhum dos furriéis a ir comigo. Certamente, deveriam ter alguma patuscada combinada para o fim de semana e não queriam sair da sanzala. O que quer que fosse, nunca cheguei a averiguar, nem tão pouco me interessou. Até os compreendo perfeitamente. Adaptámo-nos já todos à população local. Fizemos aqui bastantes amizades. Às vezes surgem amizades mais íntimas. Preferiram gozar tranquilamente os últimos dias de permanência no local.

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