Rumo ao Norte

Eram umas cinco da manhã quando começámos a distribuição do pessoal pelas viaturas.

— Em que viatura vai o Joaquim, alferes?

— O Joaquim vai na Berliet. Vai comigo, na mesma viatura. Posso vir a precisar dele, para o caso de termos de obter informações junto dos civis. Nem todos falam Português.

— Qual a secção que vai na Berliet com o alferes?

— Na Berliet vai a secção do furriel mais antigo. Vai o Rodrigues. O pessoal vai atrás e o Rodrigues comigo, ao lado do condutor. Está já tudo carregado na Berliet, Rodrigues?

— Sim, alferes. As tendas e o material da cozinha ficaram ontem carregados. Só tivemos que meter os colchões de espuma e pneumáticos, as caixas das rações e pouco mais. Quando quiser, podemos arrancar.

— Vamos já. É só ir buscar a pasta com todo o material, o meu saco, a arma e as cartucheiras e despedir-me da malta que fica. Ainda temos muito tempo. O encontro é só às seis e meia. O Ramalho carregou todos os géneros indispensáveis?

— Está tudo, alferes. Da minha parte creio que não falta nada. Podemos arrancar quando quiser. Quem é que vai na frente?

— É indiferente. As viaturas já conhecem o caminho de cor. Paramos na cortada para o Cuango e esperamos a coluna de Sanza Pombo.

— É melhor ir o alferes na frente, com a Berliet. Tem melhores faróis. E o alferes conhece melhor o caminho e vai mais carregado. Nós seguimos atrás. É verdade, o alferes trouxe a sua máquina de café?

— Penso que não me esqueci de nada. Meteste tudo o que eu disse na mochila, Joaquim?

— Sim, meu alféris.

— E os pacotes de café que trouxe de Quimbele? E os lençóis e cobertores lavados para a minha cama?

— Sim, meu alféris. Está tudo, todas as coisas do meu alféris.

— Espero que sim, Joaquim. Tu és o meu braço direito e o meu melhor ajudante, juntamente com os furriéis. E trazes também os teus livros, para estudares?

— Sim, meu alféris. O Joaquim nunca esquece nada.

— Óptimo! Então podemos avançar. Um momento: onde puseste a caixa com o rádio, Joaquim?

— Está atrás na Berliet, meu alféris.

— Está seguro, para não se avariar?

— Sim, meu alféris.

Contemplei por uns breves segundos o vasto espaço sideral, como os nossos antigos marinheiros, à procura do rumo. Num céu profundamente estrelado, lá estavam as estrelas brilhantes do Cruzeiro do Sul, para nos ajudar a navegar e a procurar o rumo, se nos perdêssemos nos amplos espaços descobertos do território angolano. Levantei o braço e dei a ordem, em voz alta, para todos ouvirem:

— Podem arrancar. E boa sorte para todos nós!

A viagem até ao local do encontro fez-se depressa e sem problemas. Com os potentes faróis da Berliet, a picada via-se perfeitamente, apesar do escuro da noite. Com a Lua Nova, o céu mantinha-se estrelado e de uma profunda limpidez, augurando-nos boa fortuna. Enquanto assim estivesse, tínhamos a certeza de uma viagem a seco, sem uma carga de água para nos encharcar as roupas e rasgar profundas valas na picada, a dificultar-nos a progressão.

Consultei o relógio. Ainda não eram seis da manhã. Estávamos já no entroncamento do Cuango. Com o encontro previsto para as seis e meia, tínhamos, na melhor das hipóteses, três quartos de hora de espera.

— Rodrigues, vamos ter muito que esperar. É melhor algum pessoal saltar das viaturas e posicionar-se na picada. Com a maioria do pessoal embrulhado nos cobertores e a dormitar, podemos ter problemas. É melhor sairmos e montarmos a segurança. Além disso, está frio. Andamos um pouco. Dá para aquecer.

— A esta hora não há perigo, alferes.

— Mesmo assim, é bom alguns soldados descerem e montarem a segurança. Nunca se sabe....

— O quê, alferes? A esta hora?! Mas se o alferes achas isso, põem-se sentinelas.

— Mesmo que não haja perigo, Rodrigues, é melhor. Se o Comandante de Batalhão aqui chega e encontra toda a gente a dormir nas viaturas, ainda é capaz de pensar que somos baldistas. E não quero dar-lhe uma falsa imagem de nós.

— Não tinha pensado nisso, alferes. Está bem observado.

— Não é só por isso, Rodrigues. As regras de segurança não foram inventadas para gastar papel e tinta. Lembre-se que as baixas no nosso exército, geralmente, só começam a verificar-se quando o pessoal adquire excesso de confiança e começa a baldar-se para as normas de segurança. Eu quero chegar ao fim da comissão sem baixas.

— Tem razão, alferes.

— Já pensou o que seria se um grupo de terroristas, acidentalmente, desse connosco aqui parados, a dormir em cima das viaturas? Apesar de escuro, vêem-se perfeitamente os vultos à luz das estrelas.

Passado um longo espaço de tempo, começa o furriel Ramalho com maus agoiros:

— Ó alferes, para que horas estava previsto o encontro?

— Para as seis e meia.

— Já viu que horas são? Já amanheceu há muito. O sol já vai alto e nada! Ainda não se ouve qualquer barulho das viaturas. Terá acontecido alguma coisa?

— O que é que quer que tenha acontecido, Ramalho? Não se esqueça que a coluna não vem de Quimbele, vem de Sanza Pombo com o comandante. Há sempre atrasos na saída; e, além disso, ainda não conhecem o caminho como nós.

— A estrada é alcatroada até Quimbele, alferes. Faz-se com rapidez.

— Mesmo assim. Está a esquecer-se que para aqui é picada. Estamos a meia distância entre Quimbele e o Alto Zaza. E a pior zona fica daqui para lá. Têm zonas difíceis, com subidas íngremes. E podem ter apanhado a picada cortada imprevistamente pelas chuvas. Tenha calma. Parece-me até que já ouço ruído ao longe...

— Não se ouve nada, alferes.

— Calem-se, por favor. Estou a ouvir barulho muito distante. São as viaturas, com toda a certeza. Pessoal, toca a saltar das viaturas e a estenderem-se ao longo da picada, mantendo a segurança. O nosso comandante vem aí.

— Não se ouve nada, alferes.

— Mesmo assim, cumpram as ordens. Não me digam que são surdos. Não ouvem o ruído cada vez mais próximo?

— Tem razão. O nosso alferes tem razão. Também estou a ouvir barulho de carros. — disse um soldado de cor.

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