Compra de um rádio |
Viremos a página do calendário e passemos ao dia seguinte. Os domingos em Quimbele, à excepção da novidade recente dos filmes aos fins de semana, são quase sempre passados da mesma maneira: missa na igreja, quando cá venho e me levanto a tempo e tenho disposição para ir ouvir um dos padres da missão, os jogos de póquer para disputarmos as bicas, as conversas banais com os civis e camaradas de infortúnio, especialmente com o médico da Companhia, e, por vezes, as visitas dominicais da parte da manhã aos doentes do hospital, quando o médico me convida para o acompanhar e que troco com prazer pela missa. Mas este domingo em Quimbele acabou por ser diferente dos outros. A meio da manhã, resolvi ir fazer uma visita ao comerciante que me vendeu a máquina fotográfica. Fui lá para saber se a máquina já estava reparada. — O alferes cá por Quimbele? Veio cá passar o fim de semana e decidiu visitar-me? — Não. Tive ontem um caso bicudo. Tive de vir trazer um nativo ao hospital. Estive quase a vê-lo passar para o outro lado. Como o comerciante mostrou interesse em saber tudo em pormenor, ocupei um bom bocado da manhã a fazer-lhe um relato circunstanciado dos momentos de aflição por causa do nativo. — Quer dizer que o alferes se livrou de boa! E então, o que o traz aqui pela minha loja? — Venho saber da máquina fotográfica. — Infelizmente, ainda não está reparada. Mandei-a para o representante logo a seguir a ter-ma entregue. Mas ainda não está. Na semana passada, perguntei por ela em Luanda. Fui lá passar um fim de semana e comprar material. Não lhe trouxe a máquina, mas lembrei-me do alferes. — Lembrou-se de mim? Como? — Não me tinha falado, há tempos, que estava interessado na aquisição de um bom aparelho de rádio? Pois lembrei-me do alferes e encontrei um modelo recente que, tenho a certeza, lhe vai interessar. É superior a todos os outros e demasiado caro para as posses dos meus clientes habituais. Mas tenho a certeza que está de acordo com as suas exigências. — Vamos lá ver, então, essa maravilha! — É um aparelho bastante completo e sofisticado, próprio para ondas curtas. Tem uma captação espantosa. Nem precisa de antena exterior. Basta-lhe a antena telescópica para captar o mundo inteiro. Tenho a certeza que não o vai cá deixar ficar. E se não o quiser, fica cá para meu serviço. — Mostre-me lá essa maravilha. Não precisa de dizer mais nada para me espicaçar a curiosidade e o interesse. Ainda não perdi a vontade de substituir o cangalho velho, que trouxe do puto, por um modelo de melhor qualidade. O comerciante tirou o aparelho da caixa, que ainda vinha fechada com a fita adesiva de origem, e colocou-o em cima do balcão. É um aparelho moderno, com uma apresentação magnífica e um altifalante de grande diâmetro, que reproduz bem os agudos e os graves, reguláveis por meio de dois botões separados. É um aparelho dos mais recentes, essencialmente construído com circuitos integrados, muito diferente do pequeno aparelho transistorizado que trouxe da Metrópole, ou do puto, como aqui designamos o minúsculo país que é Portugal. Custou-me quase o equivalente a um mês de vencimento: três mil e quinhentos escudos. Mas valeu a pena, pelas horas de prazer que me tem proporcionado desde que o trouxe para o destacamento. «Fala-me um pouco das características técnicas do aparelho» — está o pai, que é um aficionado pelas ondas curtas, a querer saber e a interrogar-se, certamente, acerca do que vou fazer ao pequeno aparelho que me ofereceu há anos, em Espinho, quando apareceram os primeiros rádios transistorizados. Para já, devo dizer-lhe
que não vou vender o aparelho velho. Ainda pensei vendê-lo a um soldado
por quinhentos escudos. Mas depois, reflectindo um pouco, lembrei-me que o
aparelho era uma recordação da infância e o dinheiro não me aquecia
nem arrefecia. Por isso, guardei-o na mala e regressará comigo daqui por
dois anos. Envio-lhe o folheto descritivo do aparelho, juntamente com os
aerogramas. E para satisfação mais rápida da sua curiosidade, passo a
fazer-lhe uma brevíssima descrição das principais características. |