Anúncio da rotação

Alto Zaza, 25 de Fevereiro de 1973

 

Ontem seguiu de tarde para Quimbele uma secção, que levou o correio e a colecção de aerogramas iniciada no dia 23. Regressou hoje ao destacamento com o reabastecimento. Veio a Berliet carregada não só com géneros para as refeições do pessoal, mas também com vários produtos de higiene e de consumo diário, como bolachas, bebidas, etc., para reabastecimento da cantina. Depois de tudo descarregado, tive de mandar um grupo comandado por um furriel aos destacamentos sob a responsabilidade do Alto Zaza, porque também eles estavam a ficar sem mantimentos. Parte da manhã, passei-a ocupado com outro alferes, que me vem substituir. Há uma semana que o pessoal está a efectuar gradualmente a rotação. Como tenho de pôr o meu substituto a par de todas as actividades, não tenho ido à sede da Companhia. Tenho ocupado as manhãs a dar-lhe a conhecer os destacamentos e as sanzalas, com as quais mantenho excelentes relações de amizade. Quero que ele se inteire plenamente de toda a acção que aqui tenho desenvolvido, para que não se verifiquem diferenças de comportamento e não se deteriore o excelente clima social que reina na região. Por isso, as minhas escritas têm sido desenvolvidas essencialmente durante os períodos da tarde. Geralmente, depois de todas as rotinas efectuadas e com a vida no destacamento devidamente orientada, tenho aproveitado as tardes para conversar convosco. É isto precisamente o que agora vou fazer. Vou procurar retomar o fio dos acontecimentos, pegando exactamente no ponto em que fiquei.

Vimos, no final do último aerograma da colecção, que já vai a caminho daí, que tivemos uns momentos de tensão por causa de um nativo. Foram momentos aflitivos, mas amplamente recompensados, porque o homem se safou. Mas muito ficou ainda por dizer.

Depois de recuperado do esforço imprevisto durante a evacuação do doente, liberto da terra argilosa e com um bom chuveiro e roupa lavada, tive ao fim da tarde uma surpresa agradável do capitão:

— Ulisses, a partir de segunda-feira, começas a fazer a rotação. Está a chegar a tua vez de vires passar um trimestre em Quimbele. Vais ser o último a deixar o Alto Zaza. Os homens começam a ser rodados em grupos de dez. Entretanto, vais pondo o alferes que te vai substituir a par de todas as rotinas e actividades relativas ao Alto Zaza.

— Está certo! Vou fazer com ele o mesmo que fizeram comigo, quando fui para o Alto Zaza, em Novembro do ano passado. Só temos um problema...

— Qual?

— Temos outra vez as viaturas em mau estado. Das duas que me mandou para a realização da operação, só esta em que agora vim está em razoáveis condições. A outra avariou, quando fomos socorrer a viatura do Quitari. Tem de nos arranjar outras viaturas.

— Isso é que vai ser mais difícil. Das vinte viaturas distribuídas à Terceira Companhia, neste momento só temos dois unimogues e a Berliet operacionais. O resto está tudo avariado. Estamos com falta de peças.

— Resolve-se o problema com a Berliet e a viatura em que vim. Em quatro etapas, temos os quarenta homens rodados. Numa semana, está a rotação feita.

— Não te esqueças que os soldados também têm de saber o que devem fazer.

— Não me estou a esquecer. Já estou a contar com isso. Bastam dois dias, no máximo, para os soldados permutarem os conhecimentos. Numa semana, estão a sobreposição e rotação concluídas. Entre mim e o alferes que me vai substituir, uma semana é mais do que suficiente. O que lhe vai talvez custar mais é aprender a trabalhar com a cifra. E daí talvez não! Quando tomei contacto pela primeira vez com esta actividade, ao princípio pareceu-me coisa complicada. Mas em poucos minutos entrei no esquema. É quase como um passatempo de palavras cruzadas. Com dois ou três exercícios de cifração e decifração, entra facilmente na técnica. Além disto, terei de o levar a todos os destacamentos e sanzalas das redondezas, para o apresentar às populações. A propósito, quem é que me vai substituir?

— Ainda não decidi. Mas já que cá vieste para evacuar um civil, passas cá o fim de semana. Segues para cima na segunda-feira e amanhã já tens a resposta. E o civil, como é que está?

— Escapou por um triz! Esteve quase a passar para o outro lado. Cheguei mesmo a pensar que me ia morrer nas mãos. Foi um susto dos diabos! Espero não voltar a ter outra experiência como esta. Mas aprendi uma coisa: ser médico deve ser uma profissão espantosa. Deve dar um gozo diabólico combater com a Morte e tirar-lhe as vidas que procura ceifar. Mas são também momentos de angústia. E deve ser uma frustração, quando não se consegue salvar o doente!

— Devias ter ido para médico. Talvez tivesses jeito! Agora esquece isso. Logo à noite temos cinema. Vai passar um filme com Edy Constantino.

— Se calhar, é um filme pré-histórico!

— É melhor que nada. Vê lá se no cu de África querias que passassem filmes recentes... Poucas vilas de Angola devem ter um cinema como Quimbele. Nem Sanza Pombo, que é a sede do batalhão, tem sala de cinema. O sítio mais próximo, onde deves encontrar um cinema, é na sede do sector de Uíje, em Carmona.

— Em Sanza, têm o clube. Além do restaurante e sala de convívio e jogos, devem lá ter um cinema...

— Não sei! Mas não creio! Não me consta que lá haja cinema...

 

Poderia alongar-me mais e transcrever-vos os diálogos entre mim, o capitão e restantes oficiais. Mas creio que os factos mais relevantes, relativamente a este sábado, estão contados. Resta acrescentar, se é que isto tem interesse, que o capitão estava certo relativamente ao filme que vimos à noite, no cinema de Quimbele. Era mesmo um filme protagonizado por Edy Constantino, intitulado “S.O.S. no Pacífico”. Ajudou-nos a passar o serão de uma maneira agradável. Mas talvez o mais importante será referir que, finalmente, recebi os exemplares da revista “Science et Vie”, respectivamente de Dezembro e de Janeiro. Além dos momentos agradáveis da correspondência, em que convivo convosco, em que quase me esqueço do isolamento no meio do mato, vou passar a ter uns instantes de leitura diferente das mensagens cifradas, romances e ordens de serviço. Tenho de começar a pensar na colaboração para o boletim do Batalhão, para dar cumprimento ao pedido do comandante.

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