Estão a tarde e o jantar
passados. Estamos agora, eu, o capelão e os furriéis, num serão
de convívio. Sabem como estamos a passar o tempo? Não sabem nem
nunca conseguirão adivinhar.
— Estais a jogar ao póquer,
com os dados que levaste da metrópole.
— Não! Nada disso. Já
disse que não conseguem adivinhar.
— Então estais a jogar uma
suecada ou um king, como fazíeis algumas vezes em Tomar e em Santa
Margarida.
— Também não. Não vale a
pena. Não chegam lá. E só me fazem perder tempo.
— Então desembucha.
— Pois fiquem sabendo que o
nosso serão foi muito bem passado a jogar ao monopólio.
— Ao monopólio? Onde foram
desencantar um jogo desses?
— Em Quimbele. Um furriel
descobriu uma caixa à venda num estabelecimento de Quimbele.
Resolveu comprá-lo para passarmos uns momentos agradáveis. Até o
capelão está entusiasmado. Pudera! Está com uma sorte dos diabos!
Dos diabos, não, caramba! Não posso dizer isto! Está é
certamente a ser ajudado por algum grupo de santos, que lhe estão a
dar apoio e a matar saudades do tempo em que passaram cá pela
Terra. E isto se lá no Céu também têm serões bem passados para
matarem o Tempo. Não sei! Como podem matar o Tempo se mortos estão
já todos eles? Para mais, nunca cá veio ninguém dizer como é
aquilo lá por cima. Se é que é lá por cima, e não lá por
baixo, como julgavam os antigos Gregos, que até faziam a última
viagem de barco, antes de entrarem no reino dos Infernos. Não há
nada melhor como irmo-nos contentando com as misérias deste vale de
lágrimas em que nos encontramos. Isto aqui pode não ser nenhum
Paraíso... mas ao menos sabemos como é!
Recolhemos aos nossos
aposentos, eu e o capelão, já bastante tarde, mas satisfeitos pelo
óptimo serão:
— Que tal foi o seu dia,
capelão? Está a gostar do tratamento que lhe estamos a dar no Alto
Zaza?
— Não poderia ser melhor,
Ulisses. E o hino? Quando é que mo fazes? Tenho de visitar também
os outros destacamentos e gostava de dar ao nosso comandante o
prazer de lhe levar o hino. Estamos todos a contar com as tuas
capacidades.
— Esteja descansado que não
sai de cá de mãos a abanar. Prometo-lhe que vou dormir sobre o
assunto. Mas, antes disso, vamos apagar a luz do petromax, para
poder ter um sono tranquilo. Aliás, pensando melhor, antes de me
horizontalizar, vou pegar na lanterna eléctrica e passar uma ronda
ao destacamento. Vou ver se está tudo nos trilhos. Vou zelar pela
sua segurança.
Cumpri a ronda. Deitei-me e
continuei activo, apesar de ter adormecido rapidamente. E recordo-me
bem do sonho, a meio da noite, pois acordei rigorosamente no momento
mais solene e também mais importante. Não sei se terá sido influência
do jogo ao monopólio ou se devido ao facto do padre estar a
ressonar ali ao lado, bem próximo de mim. Quando acordei no reino
de Morfeu, não estava no destacamento. Estava numa imensa catedral,
cheia de luzes faiscantes de círios, com raios oblíquos e de cores
vivas. Havia centenas de círios a arder e fiéis à missa. Não
eram os soldados do meu destacamento. Mas lá estava, junto ao
altar, um servo de Deus com vestes magníficas. E pareceu-me
reconhecer a cara vermelhusca do nosso capelão. Incrivelmente,
sentia-me omnipresente. Estava em todo o lado e muito leve. Não
tocava no chão. Conseguia elevar-me até aos capiteis das colunas,
umas colunas altíssimas, que sustentavam uma ampla abóbada sobre a
nave central, em forma de uma cruz gigantesca. Olhei para o cimo e,
magicamente, a abóbada não tinha limites. Por cima das colunas,
outras colunas se erguiam, permitindo-nos subir até ao Céu, onde
umas nuvens muito brancas contrastavam com um azul fortíssimo e
cristalino. De entre as nuvens brancas, começaram a surgir pequenos
vultos igualmente brancos. Eram inicialmente tão pequenos, que
quase se confundiam com o algodão branco das nuvens. A pouco e
pouco, começaram a crescer. Estavam a descer e a tornar-se cada vez
mais distintos. Eram bandos de anjinhos, muito pequeninos, com umas
asinhas também brancas como as nuvens, com umas pernas e braços
rechonchudos e umas faces rosadas, que condiziam bem com um cabelo
cheio de pequenos anéis dourados, que reluziam como a luz faiscante
dos círios. A pouco e pouco, começou a ecoar pelas altas paredes
da catedral um coro celestial. Cantavam uma música simultaneamente
estranha e maravilhosa. Mas as palavras tinham qualquer coisa que
nada tinha de celestial. Era algo estranho, que me despertou a
curiosidade. Aproximei-me em voo do coro dos anjos, para melhor
captar as palavras. Era um hino que, nada tendo de celestial, tinha
qualquer coisa de familiar, que me fazia lembrar o nosso hino
nacional. Acordo bruscamente com as palavras nos ouvidos. Tinha
entendido a mensagem.
Salto bruscamente da cama.
Corro às apalpadelas até à minha mesa de trabalho. E sento-me, não
sem antes ter dado um grande encontrão com um joelho na cama do
capelão. Não me preocupei com a dor brusca. Queria era não perder
as palavras que continuavam a ressoar nos meus ouvidos. Para não
perder tempo, acendo a lanterna eléctrica, que providencialmente
colocara em cima da mesa após a ronda. Pego na primeira folha que
me vem à mão e começo a escrever a toda a pressa. Ao fim de
poucos minutos, tinha alinhavado, mais ou menos, as palavras
captadas durante o sonho. Tinha finalmente a primeira versão do
hino para entregar ao capelão.
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Nós somos
Os tigres de Sanza.
Tal como nossos avós,
Dentro de nossas veias,
Circula o sangue d’ heróis
Que alargaram as fronteiras
De nossa terra sem par.
Não tememos inimigos,
Nem canseiras, nem perigos.
E se a Pátria chamar,
Connosco pode contar,
Pois somos de tudo capazes:
Até nossa vida dar!
Com ardor e galhardia,
Juntos digamos, pois,
Vivam «Os Tigres de Sanza»,
Sucessores d’ heróis do
mar,
Que com senso e audácia
Estão cá p’ra triunfar.
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Acabo de vos transcrever a
versão original tal como saiu da esferográfica, antes de lhe terem
sido limadas as arestas para a versão definitiva. Por enquanto terão
de contentar-se com esta primeira versão. Daqui por uns dias,
quando a versão definitiva estiver pronta, com todas as arestas
polidas e a letra devidamente musicada, para ir diariamente para o
ar no programa de rádio do Batalhão, mando-vos uma nova cópia.