Respiro de alívio

Consegui chegar ao fim. Finalmente, posso respirar de alívio. O hino está seguro. Está já agarrado à folha de papel. Já não tem hipóteses de se evaporar. As palavras faladas perdem-se com o vento, mas as escritas ficam mais solidamente ancoradas à vida. O domingo fechou mesmo com chave de ouro. Antes de passar à resposta aos vossos aerogramas, falta-me dizer-vos como foram os últimos minutos da estadia do capelão no Alto Zaza, antes de o ter ido levar a Quimbele, na segunda-feira.

Logo de manhã, não foi sem alívio que vi o capelão acordar. Durante o resto da noite, excitado por ter conseguido o hino, já não consegui voltar a adormecer. Bem tentei fazer o esforço, para voltar àquela imensa catedral. Mas nada! A excitação era demasiada, para me deixar voltar ao reino de Morfeu. Fiz mais rondas do que habitualmente e, já com o sol nado, entrei no gabinete e sentei-me na cama, à espera que o capelão acordasse. Mal o vi olhar para mim, disparei-lhe uma pergunta:

— O capelão, durante a noite, não apanhou nenhum susto?

— Não, porquê? Aconteceu alguma coisa?

— Não diga que não deu pelo valente encontrão que mandei na sua cama, que quase me ia pondo uma rótula fora do sítio!

— Não dei por nada! O que é que aconteceu?

— Aconteceu que já cá tenho o seu hino. Já pode regressar a Sanza com a missão cumprida.

— Mostra-me cá o que fizeste.

— Tem tempo. Já lho mostro. Aliás, não lho mostro, dou-lho. Mas antes disso arranje-se, que o pequeno-almoço está à nossa espera. Tenho o hino em cima da mesa. Tem tempo de o ler. Antes de lho entregar, vou tirar uma cópia para mim. Com uns retoques e umas arestas limadas, deverá ficar uma coisa em condições.

 

Fiquemos por aqui. Para abreviar, digo-vos apenas que, logo pela manhã, fui pessoalmente levar o nosso capelão a Quimbele. Fui eu que o trouxe; fui eu que o levei. À uma e meia da tarde, depois do almoço e uma bica rápida no Briosa Bar, regressei ao Alto Zaza. Na terça-feira, fui de manhã levar o reabastecimento à Camuanga. Quis lá ir pessoalmente levar-lhes a paparoca, para verificar se estava tudo em ordem, com a vida regressada à normalidade. E agora é altura de responder aos vossos aerogramas, que chegaram com a correspondência de toda a malta, que trouxe para cima, quando fui levar o capelão.

Antes de mais nada, digam aos amigos que costumam encontrar-se convosco no Café Arcádia que agradeço e retribuo os cumprimentos.

O pai faz-me referência ao pagamento do mês de Novembro. Não se preocupe com isso, porque já há muito que recebi o dinheiro desse mês. Em breve, o pai deve estar aí a receber-me o mês seguinte. Não sei se se recordam disto, mas já vos disse em aerogramas anteriores que aumentei o montante a ficar mensalmente na metrópole. Como penso que já vos disse, tenho comigo uma razoável maquia, que não me serve para nada aqui no meio da mata. Quando for a Sanza Pombo, tenciono abrir conta e depositá-la no banco.

Acho estranho que a mãe esteja a perguntar-me se passo aqui fome. Se fizer uma leitura atenta e global destes aerogramas, verá que nem era preciso responder-lhe à pergunta. Mas já que a faz, acrescento qualquer coisa mais. Habitualmente, temos aqui umas refeições muito razoáveis, para não dizer boas. Claro está que não comemos leitão todos os dias. Mas não deixamos de comer razoavelmente bem. As ementas dos almoços costumam ser bastante decentes. Constam geralmente de sopa, arroz e batatas fritas aos palitos, ovos estrelados e salsichas, quando não há frango ou outra carne, tudo isto acompanhado com vinho recebido daí da metrópole em pipos e, de vez em quando, umas cervejas Cuca geladinhas. Para complemento, tomo habitualmente a minha cápsula de vitaminas e o meu comprimido de cálcio flúor, que nos é fornecido pelo exército quando solicitado. Ao pequeno-almoço, além das refeições de frutas, ultimamente tenho tomado um reforço que pedi ao médico da Companhia. Misturo no leite uma colher de sopa de Cliftol, um produto concentrado de proteínas, o que me fornece um complemento alimentar. Deste modo, procuro preservar a minha saúde, mantendo-a em excelente forma. A única doença que me vem preocupando, ultimamente, é a da falta de fastio, que espero se conserve sempre. É verdade, há uma que não posso evitar, mas para a qual não há remédio possível: as saudades de casa, as saudades da vossa companhia e dos amigos.

E já agora, há uma coisa que não posso deixar de referir: as vossas encomendas são sempre bem recebidas. Chega cá tudo em perfeito estado. O único problema é o da duração. O único problema é que as gulodices, os chocolates, o queijo da serra, enfim, as vossas gostosas lembranças, têm uma duração muito reduzida. Acabam-se depressa e ficamos com vontade para mais. E não digo mais nada, porque podem ainda pensar que estou para aqui a chorar por mais. É altura de terminar. Em breve, têm-me outra vez na conversa convosco.

Um grande beijo do vosso filho e cumprimentos meus a todas as pessoas amigas, muito especialmente aos nossos vizinhos do Bairro do Brinca. Que todos continuem bem, para ter o prazer de os rever quando for aí de férias.

 

Vosso filho,

 

Ulisses de Almeida Ribeiro.

 

 

 

 

 

P.S. - Hoje, para variar, até vai a minha assinatura no final dos aerogramas. Creio que é a primeira vez que faço isto. Foi para fugir à rotina.

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