— O nosso alferes, então,
sai do quartel e não nos paga as cervejas?
— Tenham calma, que eu não
me esqueço do prometido. As vossas cervejas e as dos GEs estão
garantidas. Alguma vez deixei de fazer o que disse? Se estão com
pressa de as beber, vão à cantina e peçam-nas, que eu depois vou
lá pagá-las. Mas se eu fosse a vocês, guardava-as para o almoço.
Deve ser melhor acompanhar o leitão com umas cervejinhas frescas do
que com o vinho tinto amornado pelo calor do sol.
No começo da passeata fora do
quartel, ainda pensei ir ter com o administrador às instalações
provisórias da administração, na orla da mata, a cem ou duzentos
metros da entrada do destacamento. Mas pensei que, àquela hora, o
administrador podia ainda estar a dormir ou ter ido no sábado a
Quimbele e ainda não ter chegado. Também não me apeteceu seguir
pelo lado da pista e ir até ao fim do planalto. Resolvi seguir o
percurso contrário aos meus hábitos. Meti pelo lado do campo de
futebol, em frente ao edifício do comando. Retomei o percurso entre
o destacamento e a Cabaca, por onde tínhamos passado há minutos.
De cada lado da picada, a mata é cerrada e com árvores altas.
Sempre dão uma sombra protectora àquela hora em que o sol ainda não
se encontra na vertical. Além disso, o barulho alegre dos animais,
no meio da mata, e a companhia furtiva dos macacos, que nos vêm
espreitar do cimo das árvores, ajudam-me a não me lembrar do
sacrifício indispensável dos seis animais, que nos vão ajudar a
manter as células do corpo em actividade. A morte de uns é a vida
de outros. É a lei da natureza.
Andava distraído a pensar
neste problema da necessidade da morte para haver vida, quando fui
desviado dos meus pensamentos pela guincharia do cimo das árvores.
Tal como previra, um grupo de macacos, parecidos com os que me
surgiram há tempos em sonhos, seguia-me de galho em galho, cheio de
curiosidade. Estaria no grupo aquela macaquita que me fez companhia
em sonhos na noite do ataque ao destacamento?
Pensei na esperteza dos nossos
irmãos macacos. Estes nossos parentes afastados, a acreditar na
teoria da evolução das espécies, fazem parte da ementa dos
nativos da região do Alto Zaza. São caçados, esfolados e assados.
Constituem um petisco muito apreciado. E são uns animais bastante
inteligentes e cheios de curiosidade. Quando andamos armados, em
operação ou na caça, mantêm-se a grande distância do
bicho-homem e quase não os conseguimos ver. Quando ando sozinho a
passear na mata, sem qualquer armamento, aproximam-se de mim e
seguem-me por todo o lado, sem qualquer receio. Quase só falta
estabelecermos relações de amizade e comunicarmos uns com os
outros. Já por mais de uma vez procurei que viessem até junto de
mim, para os poder acariciar. Quando faço qualquer gesto para os
atrair, não revelam qualquer receio. Não fogem, mas conservam-se
sempre a uma certa distância de segurança. Como só me vêem de
vez em quando, não gostam de correr riscos. Mas tenho a vaga
impressão que se viesse todos os dias para o meio da mata e me
deixasse aqui ficar calmamente, sem me mexer, sentado junto a uma árvore,
com a curiosidade natural destes animais, não me admiraria nada que
acabassem por se aproximar e me deixassem tocar-lhes. E se trouxesse
comigo umas gulodices, umas bananas ou uns amendoins, penso que em
poucos minutos conseguiria fazê-los aproximarem-se e conviver
comigo.
Acham que estou a delirar? Estão
agora a pensar que começo a ficar cacimbado e a precisar de convívio?
Estou de perfeitíssima saúde e não menos perfeito juízo. Estou
é a reflectir acerca deste maravilhoso mundo que nos rodeia. Mesmo
em plena selva, completamente sós, nunca estamos isolados. Há
sempre olhos que nos espreitam. Há sempre olhos que nos observam
atenta e desconfiadamente e que procuram saber o que andamos a
fazer. É que todo o animal sente instintivamente um certo receio e
curiosidade pelo bicho-homem, o único que consegue fugir e desafiar
as leis da natureza, estragando as mais das vezes aquilo que o
Criador fez perfeitamente regulado. Mas a culpa não é do
bicho-homem, mas do próprio Criador, que o fez à sua imagem e
semelhança. Quem é que o mandou fazer-nos à Sua semelhança?
Agora terá de aguentar com paciência as asneiras que o Homem passa
a vida a fazer e procurar remediá-las da melhor maneira possível,
contrariando as asneiras do Seu erro criador.
Eram onze da manhã quando fui
tirado das minhas reflexões. Tão abstraído andava da realidade,
mergulhado na profundidade das ideias dos meus neurónios, que não
dei por ter parado na minha frente uma cabra do mato com o pessoal
do Quitari.
— Ulisses, que fazes aqui
sozinho na picada, no meio desta mata cerrada?
Era a voz sonora do capelão,
que me tirava das reflexões.
— Estava aqui à vossa
espera. Houve um pressentimento qualquer que me fez vir até aqui ao
vosso encontro.
— Como é isso possível?
Agora deste em adivinho? Como é que podias saber que nós vínhamos
aqui?
— O que é que o capelão
queria? Aqui na selva, isolado em comunhão fraterna com o mundo que
o seu patrão criou, alguns dons nos havia de facultar!
— Estás a falar a sério?
Sabias mesmo que nós vínhamos a caminho e vieste esperar-nos?
— Não vê que foi simples
coincidência? Calhou vir dar uma volta para este lado, para ajudar
a passar esta magnífica manhã de domingo. E já que aqui estão,
aproveito a vossa boleia até ao destacamento. Preciso de falar
consigo antes do almoço
— Tens novidades para mim? Já
fizeste o hino que o comandante pediu?
— Ainda não. Mas não me
esqueci. Vamos lá, que temos o resto da manhã para falar no
destacamento.
Afinal, como estão a ver,
parece que adivinhei ter comprado seis leitões avantajados, em vez
dos quatro que pensei inicialmente adquirir. Afinal, o almoço de
domingo no destacamento foi pior que um casamento. Muitas bocas para
alimentar. Além do meu pessoal, o grupo que veio de Quimbele
socorrer-nos. E agora esta secção do Quitari, que veio trazer o
capelão ao Alto Zaza. E vou ter de aproveitar a viatura do Quitari
para mandar um furriel à sanzala de Quingange avisar os jogadores
que o desafio de futebol fica adiado para o próximo domingo. Se os
jogadores me aparecem à hora do almoço, a comida não vai chegar
para tanta gente.