Acompanhado pelo capelão

De novo no destacamento, dei uma volta com o capelão, para me pôr a par dos problemas ocorridos. De acordo com as informações fornecidas por ele, a avaria ocorreu no dia anterior, a poucos quilómetros do Quitari, quando pretendiam seguir para a Camuanga. O capelão regressou a pé ao Quitari, com três soldados, passando o resto do dia no destacamento, onde celebrou uma missa ao ar livre da parte da tarde. O pessoal da viatura foi rendido, durante a noite, pelo furriel Rodrigues, que eu mandei com a única viatura operacional para manter a segurança durante a noite e lhes levar rações de combate, para não ficarem todo o dia em jejum e abstinência.

Da parte da manhã deste domingo, pediu ao pessoal do Quitari para o trazerem para o Alto Zaza, por estar preocupado por causa da missa, que estava marcada para o meio-dia.

— Como é que o capelão quer celebrar a missa ao meio-dia, se nos falta metade do pessoal? É melhor ficar para o meio ou o fim da tarde. Além disso, já mandei avisar o pessoal da sanzala para não vir ao Alto Zaza. O desafio de futebol fica para o próximo domingo. Por isso, pelas quatro ou cinco horas da tarde, será boa hora para a missa. E vai haver pessoal que se quer confessar para receber o Senhor durante a missa. Até eu me quero confessar, que já não sei o que isso é há muitos meses.

— Tens razão. Não me estava a lembrar que metade do pessoal está fora do destacamento por minha causa.

— Não é por sua causa, capelão. A culpa não é sua. É da porcaria das viaturas que nós aqui temos. Estão fartas de fazer comissões e nunca mais são rendidas. São os milicianos e os soldados que têm de andar nelas. Se fossem os militares de carreira, já teriam sido substituídas há muito tempo. Como somos nós que temos de andar nelas, o pessoal que se lixe. É a política dos nossos superiores. Nesta estúpida guerra, o mexilhão é quem sempre se trama.

— Talvez tenhas razão, mas...

— Não é talvez! É mesmo assim, capelão. Veja lá se alguma vez um oficial de carreira se mete a andar por aqui pelas picadas com rodas em mau estado? Quando há alguma coisa, andam lá por cima, bem alto, para não serem atingidos. E o pessoal, cá em baixo, que se cuide. Ou não é assim?

— Bom, deixemos isto. Como vai ser então o dia?

— Continuemos o nosso passeio pelo destacamento. Aqui parados a discutir sobre a viatura é que não vamos a lado nenhum. Vamos até à zona da cozinha, que logo fica a saber como vai ser o resto do dia.

Na zona da cozinha, era um mundo de alegre trabalho. No forno ampliado, já ardia um fogo abundante para assar os leitões. Lá estavam eles devidamente preparados e chamuscados, dispostos lado a lado em dois amplos tabuleiros metálicos, onde se transporta o pão saído do forno.

— Como vê, capelão, para se tratar bem, com leitão tão bom como o da Bairrada, não há como estar aqui connosco, no Alto Zaza. Diga lá que não o tratamos como um senhor!

— Outra vez leitão assado? Tratais-vos bem, aqui no destacamento. Na sexta-feira, tivemos um dia excelente, com um bom almoço, e com tudo a correr excelentemente, mesmo com a avaria da viatura do padre Fidelis, que acabou por se revelar excelente, por nos ter proporcionado uns momentos agradáveis de conversa, mesmo tendo de ficar a dormir no destacamento. E hoje, dois dias depois, outra vez leitão assado. Tudo excelente! Tudo excelente, aqui no destacamento. Só o hino do comandante é que ainda não surgiu.

— Tenha calma, capelão. A inspiração não é coisa que se possa ir comprar, como fizemos com os leitões. Não basta puxar da carteira e contar as notas. Se fosse como a compra dos leitões, já cá tínhamos o hino há muito tempo. Pode ser que hoje, depois de me ter confessado a si e comungado, os anjinhos papudos lá de cima se dignem vir cá abaixo ajudar-me a fazer o hino. A inspiração vem quando menos se conta com ela. Ainda há pouco, quando me encontrou na picada, andava preocupado com isso. Só que a minha mente acabou por ser desviada pela macacal curiosidade. A macacada decidiu espiar a minha solitária caminhada. Acabei por deixar de pensar no hino. Não pense mais nele. Entretenha-se agora na contemplação dos animais que vão ser trincados. Reze, se quiser, um pouco pela alma dos animais, que também vai ajudar a enterrar na sua barriguinha. Entretenha-se agora na conversa com o pessoal que está aqui a preparar-lhe o petisco. Tem aqui o velho Manel, que também anda a ganhar apetite para o almoço, não é assim, velho Manel?

— É verdade, alferes. O nosso alferes trata-nos bem. Não é como os outros. Quer o pessoal bem alimentado e bem disposto.

— Claro, velho Manel. O que é que um homem leva desta vida?

— Não posso dizer, meu alferes. Está aqui o nosso capelão.

— Pode dizer. Não tenha medo. O nosso capelão também é homem e deve saber o que um homem precisa. Não é mal nenhum. Faz parte da vida humana. Um homem sem mulheres e boa comida não passa de um ser infeliz!

— Tu hoje estás um bocado agressivo, Ulisses.

— Acha-me agressivo, capelão? Sou apenas humano e com as imperfeições com que o Criador me fez. E não vejo nada de mal. Como pode haver mal numa coisa que Deus fez? Se Ele quisesse que não fôssemos assim, não nos tinha dotado com os instrumentos que nos deu. E já pensou que sem eles não estaria agora aqui nesta gostosa conversa connosco, a antecipar o prazer que vamos ter mais logo, quando os leitões estiverem assados e a afagarem-nos as narinas com aquele delicioso cheirinho? Se antes de pensarmos em lutas e ataques nos juntássemos todos à mesma mesa, os nossos soldados e os terroristas, com leitões bem assados, a fumegarem e a tentarem-nos com a pele estaladiça, e com uma boa pingoleta, para cortar o picante do tempero, tenho a certeza que esta guerra, que se prolonga há tantos anos, desde os meus primeiros anos do liceu, há muito teria acabado. Mas também não estaríamos agora os dois aqui, nesta amena conversa, a criar apetite que não nos falta para um petisco tão bom como este!

— Não haja dúvida! Hoje estás demais! Não costumas ser assim tão falador. Costumas falar, segundo creio, mais com a caneta do que com a boca.

— É da sua companhia, que me inspira, capelão. Qualquer coisa me diz que hoje vai ser um dia em cheio, mesmo com as avarias frequentes das viaturas. Não chega amanhã sem cá ter o hino!

— Deus te oiça e te inspire, porque tenho que ir também aos outros destacamentos. Por muito bem que tu me trates e me dê prazer estar aqui convosco, não posso esquecer-me dos outros.

— Acho muito bem e compreendo a sua preocupação. O Homem não vive só de pão e de leitões. Também precisa de alguém que, de vez em quando, nos desvie o olhar para outras metas mais elevadas.

 

Ainda que me dê um enorme prazer estar agora aqui a reviver para vós a agradável conversa que tive com o capelão, a verdade é que a acção do meu relato tem de acelerar. Caso contrário, esgota-se-me o combustível da esferográfica e a vossa paciência para me lerem. Avancemos, pois, com os acontecimentos e mutilemos o diálogo.

Mutilemos o diálogo? Mas que raio de verbo fui agora arranjar, tão desagradável e de mau agoiro! Não mutilemos nada, que as coisas querem-se inteiras, sem deformações físicas. Acabemos com o diálogo e com as reflexões metalinguísticas, porque entretanto os ponteiros do relógio já avançaram. São quase duas horas da tarde. Os leitões já deixam no ar um delicioso aroma, que começa a perturbar as narinas de todo o pessoal do destacamento. E, além disto, já ouvimos o ruído das viaturas. O pessoal que ficou avariado no Quitari está a chegar. Já estão a sair da mata e a entrar na área do nosso campo de futebol e de aterragem dos helicópteros.

Vamos deixar a zona do forno e esperar o pessoal à entrada do destacamento. O meu pessoal vem com ar cansado e com umas caras de meter medo, com as barbas compridas e aspecto de quem não descansa numa cama há dois dias. Espero que o cheirinho que paira no ar os ajude a reanimar e a recuperar da noitada forçada na picada.

Não vou falar da magnífica almoçarada, que nos deixou a todos satisfeitos com os homens e com Deus. Os animais sacrificados deram perfeitamente para satisfazer o apetite e a gula de toda a gente. Até os miúdos da sanzala, que ajudam os cozinheiros, têm um aspecto cada vez mais reluzente, apesar da ligeira camada de poeira que os cobre. Se tomassem banho mais frequente, ficariam reluzentes como pau preto acabado de polir. Alguns, quando para cá vieram, nos primeiros dias, quase não precisavam de radiografias para se lhes ver todos os ossos. Agora, é vê-los completamente mudados, com aqueles olhitos cada vez mais brilhantes e com ar de satisfação. Por isso, nunca nos faltam, quando precisamos de braços civis para nos ajudarem nos trabalhos. Barriga cheia, homem ou criança satisfeita.

Não haja dúvida que o capelão tinha razão, quando de manhã me disse que hoje estava muito loquaz. As palavras estão a jorrar da caneta com uma facilidade invulgarmente espantosa. Até estou a escrever provérbios que nunca ouvi: «Barriga cheia, homem ou criança satisfeita». Isto hoje está super inspiradíssimo. Por este andar, o hino vai mesmo sair-me sem problemas. Esperemos que a esfera da caneta não emperre ou comece aos solavancos, como fazem as viaturas ao avariar, quando chegar o momento mais solene da procura da inspiração para um hino.

 

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