Garraiada porcina

Estamos novamente no dia 28 de Janeiro de 1973.

Como é já hábito meu, rotina quase diária, levanto-me muito cedo. Só não posso dizer que me levanto com as galinhas, porque aqui não há galinhas nem galos para nos acordarem ao nascer do sol. É ainda bastante cedo. Dei uma volta pelo destacamento. Já aqui reina alguma azáfama. Na cozinha, já estão a preparar o pequeno-almoço. Está quase pronto para a primeira refeição de toda a malta. Nesta zona do quartel, por esta altura, há sempre uma grande azáfama, com alguns miúdos da sanzala dos GEs a ajudarem os cozinheiros. Junto das casernas, encontro alguns soldados. As sentinelas do último turno da noite acabam de ser rendidas. Regressam à caserna. Cumprimentam-me. Um deles pergunta-me pelos camaradas:

— Meu alferes, quando é que a malta que foi com o nosso capelão regressa a casa?

— Devem voltar hoje. Pelo menos, ontem, o três tiras garantiu-me que mandava, hoje de madrugada, viaturas para irem socorrer o nosso pessoal. E ele não costuma falhar. A propósito, mais logo, depois do pequeno-almoço, preciso de voluntários para irmos à Cabaca comprar leitões.

— Vai ser como da última vez, alferes?

— Claro. Vai ser preciso agarrar os animais. Não há nenhum convite que os convença a subir para os unimogues.

— Conte connosco, alferes.

— Certo. Logo depois do pequeno-almoço, vamos a pé à Cabaca. Vamos iniciar bem este domingo, com uma tourada porcina logo pela manhã. E vai haver concurso com prémios e tudo!

— Como, alferes?

— Isso agora é segredo. Mais logo explico-vos qual será o prémio.

Estávamos a tomar o pequeno-almoço quando ouvimos, ainda distante, o ruído de viaturas. Sim senhor! O senhor Capitão Alberto, o três tiras, estava a revelar-se um tipo porreiro. Cumpriu a palavra. Mandou as viaturas de socorro logo pela madrugada. Certamente não terá sido por respeito às minhas barbas, digo, ao meu bigode, porque as barbas já há muito que as mandei para o diabo, pouco depois daquela lamentosa cena das ferroadas, durante o ataque imprevisto das balas voadoras. Ainda se lembram desta incrível emboscada, em que fiquei com a cara toda cheia de altos, que me impediram de desbastar a barba durante uns tempos?

Pois, dizia eu, o capitão cumpriu escrupulosamente a palavra. Mas não terá sido certamente por respeito ao meu já farfalhudo bigode. Se não estivesse cá o capelão, e para mais empanado na picada, as viaturas de socorro talvez não tivessem chegado tão cedo.

Esqueçam tudo quanto acabaram de ler no parágrafo anterior. Estou a ser outra vez maledicente como as mulheres! O que acabei de escrever que fique sem efeito. Estou aqui a fazer um mau juízo do capitão e a ser injusto. Até ao momento, não tenho razões para dizer mal do capitão. Tem-se comportado sempre de maneira correcta. Quando foi do ataque ao destacamento, ele próprio veio cá ao Alto Zaza, armado até aos dentes, para se inteirar pessoalmente do sucedido. Deve ser a malvada desta caneta nova que estreei hoje. Deve conter uma tinta um pouco azeda, que me está aqui a influenciar e a fazer dizer disparates. A verdade é que, com influência ou não do capelão, as viaturas de socorro chegaram muito cedo ao destacamento. E o pessoal chegou mesmo no momento exacto, ou seja, a tempo de aproveitar o nosso pequeno-almoço.

Saí do edifício do comando, juntamente com os dois furriéis que ficaram comigo. Fomos receber os nossos camaradas chegados de Quimbele.

— Bom dia, pessoal. Chegaram mesmo no momento exacto de irem tomar um bom pequeno-almoço. Aproveitem para atestar bem os vossos depósitos, porque vão ter uma manhã trabalhosa.

Encaminhado o pessoal para o refeitório, regressámos ao edifício do comando com o furriel que veio à frente do grupo de socorro. Fomos retomar o pequeno-almoço, aproveitando o curto momento de convívio para dar instruções ao furriel. Peguei no meu mapa pessoal da região, feito por decalque em papel vegetal, e expliquei-lhe a situação:

— O pessoal com o nosso capelão deve estar mais ou menos neste local, onde tenho o dedo. Saíram ontem do Quitari e devem estar neste ponto da picada, a poucos quilómetros do destacamento.

Mostrei todo o percurso e indiquei com o dedo os locais mais difíceis e o local aproximado onde deveria estar o grupo a socorrer, ou seja, a viatura avariada mais a viatura levada pelo furriel Rodrigues, para segurança nocturna. E prossegui com mais algumas indicações:

— A viagem para lá não vos vai levantar problemas. Até à povoação de Quilambiquissa, o percurso faz-se facilmente e com relativa rapidez. Nesta povoação, tomam a direcção do Quitari. Aqui o percurso piora um pedaço. Mas como ontem e hoje ainda não choveu, a picada deve estar seca. Pior era se tivessem de ir para a Camuanga. É muito mais longe e com zonas perigosas, excelentes para emboscadas com pleno sucesso. O maior problema vai ser regressar com uma viatura avariada, se os mecânicos não conseguirem pô-la a andar pelos próprios meios.

— Não é problema, alferes. Se os mecânicos não resolverem rapidamente a avaria, traz-se a viatura a reboque. É fácil.

— Espero que sim e que cheguem depressa. Não almoçamos sem estar cá todo o pessoal. E vão ter uma grande surpresa ao almoço.

— O que é, alferes?

— Surpresa é surpresa. Não se pode dizer. Se dissesse, estragava tudo! Aliás, talvez adivinhem qual é, porque vou aproveitar com o meu pessoal a vossa boleia até à Cabaca. Estava a contar ir lá a pé com um grupo. Mas já que vocês aqui estão, dão-nos boleia. Sempre são cinco quilómetros de caminhada que poupamos, além de que ganhamos tempo. Algum furriel quer ir comigo? Vamos ter uns momentos de gozo.

— Vou eu, alferes. — disse o Donato, o furriel açoreano. Faço-lhe companhia e levo a minha máquina fotográfica. É primitiva, mas não se avaria e tira sempre fotografias.

Tudo se resolveu, da parte da manhã, com maior rapidez do que previra. Ainda não eram nove horas, já eu andava com o meu grupo na Cabaca a tratar da compra dos leitões para o almoço. Em vez de quatro animais, como tinha previsto, resolvi reforçar a dose. Com mais o grupo de Quimbele, que veio prestar socorro, e com o pessoal certamente esfomeado, depois de um dia e noite na picada a rações de combate, quatro leitões deveriam ser insuficientes. Puxei dos cordões à bolsa, que não tinha cordões mas sim botões, por se tratar do amplo bolso do meu camuflado, e paguei aos GEs os seis animais adquiridos, mas ainda longe dos novos donos de curta duração. Sim, porque o negócio fez-se com maior facilidade do que a transmissão da posse dos animais. Para pagar os bichos, foi só preciso desapertar o botão do bolso, tirar a carteira, contar o dinheiro e entregá-lo aos GEs. O difícil veio depois. À semelhança da última vez, os animais não queriam tornar-se a nossa ementa do dia. Preferiam andar à solta na sanzala a vir dar um passeio até ao destacamento. De modo que, feito o negócio, veio a parte mais difícil, mas também a mais divertida: agarrar os animais.

— Pessoal, o negócio está feito, mas falta apanhar os bichos para os levarmos. Pago uma cerveja por cada animal agarrado.

— Meu alféris, nós podemos também pigar os bicho?

— Claro. A oferta das cervejas é para todos: soldados e GEs. Pago uma cerveja a cada um que apanhe um leitão. E se pegarem dois ou três, serão duas ou três cervejas.

— O nosso alferes também os vai apanhar? — perguntou um dos meus soldados.

— Claro que não! Eu pago as cervejas. Tenho de ver quem são os heróis da pega, para saber a quem dar os prémios.

Durante talvez uma meia hora, tivemos uns momentos de alta gargalhada. Todo o pessoal andava divertido à caça dos animais. Estabeleceu-se mesmo um certo despique entre o pessoal do Alto Zaza e os GEs, a ver quem era o melhor pegador de porco. E o mais curioso, no meio disto tudo, é que também eu, que dissera que ficaria a ver, acabei por ser contagiado. Quando dei por ela, andava também a correr atrás dos bichos, procurando camufladamente dar ajuda aos meus homens. Não lhes tirei a oportunidade de serem eles a agarrar os animais e a ganhar as cervejas, mas ajudei-os a encurralá-los, para não fugirem e os podermos pegar pelas patas. Uma vez agarrados, no meio de estridentes grunhidos, que deveriam ser ouvidos do outro lado da selva, prendíamos os animais pelas patas, para não voltarem a fugir. A parte mais aborrecida veio depois. Sem viatura para regressarmos ao quartel, tivemos de trazer os animais como habitualmente se faz, quando são levados para serem vendidos nas feiras. Presos com uma corda ao pescoço como cães pela trela em passeio vespertino para o chichi com os donos, tocámos os animais até ao destacamento.

Assim que chegámos à entrada do destacamento, tivemos uma recepção fabulosa, com piadas e risota de todo o pessoal. Em suma, um verdadeiro carnaval nesta manhã de domingo.

Entrados no destacamento como em procissão festiva, veio depois para mim a parte menos agradável. Embora goste de trincar os leitões depois de bem assados e com a pele bem tostadinha e estaladiça, a verdade é que gosto mais de ver os animais vivos e bem dispostos, em liberdade pelas sanzalas. De modo que entreguei os bichos aos carrascos encarregados de os preparar para o almoço e saí do destacamento, para não lhes ouvir os choros nos últimos minutos de vida. 

 

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