Em socorro da Camuanga

Se fôssemos acreditar em tudo o que os sonhos nos mostram, não faríamos nada e não teria saído do destacamento com um punhado de homens. Foi com alívio que me vi livre do pesadelo, quando a sentinela me foi acordar, cumprindo zelosamente as ordens que lhe tinha dado.

Ao contrário do que imaginara, quando saí do meu gabinete e quarto,não fui o primeiro. Quando cheguei à caserna do lado da pista de aviação, já o pessoal estava à minha espera e o condutor Sobreiro tinha atestado a viatura e passado uma rápida inspecção, com a ajuda do Piedade, o mecânico auto-rodas.

— Tens tudo em ordem para qualquer eventualidade funesta? — perguntei ao enfermeiro Alves.

— Sim, meu alferes. Tenho tudo em ordem.

— Levas álcool em quantidade suficiente?

— Vai tudo o que é necessário para qualquer urgência médica.

— Não é isso... Quero saber se levas álcool a mais. Vou levar a mochila com a máquina de café e a lamparina. A meio da manhã ou depois da ração, o pessoal vai apreciar com prazer um bom café.

— Não se preocupe com isso, alferes. Temos álcool em quantidade suficiente.

— Está tudo pronto para partirmos? — perguntei aos condutores.

— Meu alferes, as viaturas estão atestadas. Com um pouco de sorte, não devemos ficar empanados na picada.

— Bom, vamos então tomar rapidamente o pequeno almoço, para podermos seguir.

— Faltam as rações de combate, alferes. — lembraram os soldados.

— Não me esqueci. Vamos tomar o pequeno almoço e depois levantamos o que é preciso. Antes disso, tenho eu de passar pelo gabinete para enfiar a máquina fotográfica num dos bolsos do camuflado e pegar na tralha. Vamos agora atestar os nossos depósitos e despachar-nos, que ainda temos de parar na Cabaca.

Passava pouco das seis e meia da manhã quando saímos do destacamento do Alto Zaza. À excepção do furriel de serviço, que veio assistir à nossa partida, os outros nem se dignaram levantar-se. Estariam ainda a dormir? Estariam com medo que eu, à última da hora, mobilizasse algum para nos acompanhar? Estariam retraídos pela cobardia, sem vontade de enfrentar o pequeno grupo que não receava avançar em socorro da Camuanga?

Cinco minutos depois, estávamos na Cabaca. Àquela hora, com o sol já a iluminar o céu, havia uma certa azáfama na sanzala. Em breve, tínhamos alguns GEs à nossa volta.

— Esta noite, o destacamento da Camuanga foi atacado. Recebi às onze horas um pedido de ajuda pela rádio. Necessito da vossa colaboração, para irmos em socorro da Camuanga.

— Meu alféris, o chefe Simão saiu munto cedo. Não está. Está na sanzala ao lado o chefe Francisco com os milícia.

O Francisco é um antigo soldado que ficou em Quimbele, depois de ter acabado a comissão. Gostou da vida militar ou encontrou aqui um modo de vida tão ao seu gosto, que trocou a Metrópole por Angola. Deixou-se ficar por cá. Bom conhecedor de toda a região, ficou a chefiar as milícias. De cabo com um reduzido pré na tropa, passou ao posto de chefe e a auferir um vencimento razoável.

— Chamem-me o Francisco, para falar com ele.

— Está na sanzala ao lado meu alféris.

— Avança até à outra sanzala. — disse para o condutor, ao mesmo tempo que fazia sinal ao da outra viatura.

Alguns segundos depois, entrávamos na sanzala civil, pegada à dos GEs. Em breve, tinha o chefe dos milícias e alguns dos seus elementos na minha frente.

— Esta noite recebemos um pedido de socorro da Camuanga. Vamos agora para lá. Na sanzala dos GEs, verifiquei que o chefe Simão tinha saído para a mata com um grupo. Disseram-me que estavam aqui as milícias de Quimbele, comandadas pelo chefe Francisco. Por isso aqui vim à sua procura. Posso contar consigo?

— Sim, meu alferes. Pode contar sempre connosco, para tudo o que for preciso. Conheço bem a região. Já cá estou há muitos anos. Já fiz parte da tropa, como o meu alferes.

— Vamos ter de ir com muito cuidado. Pode haver minas. E nem rádio temos, para pedir ajuda.

— Não tem problemas, meu alferes. O alferes quer ouvir as minhas sugestões?

— Quem sou eu para recusar as ideias de um homem mais experiente e com muitos anos de guerra?

Por sugestão do chefe dos milícias, ele ocupou o meu lugar, ao lado do condutor. Os homens que iam no banco de trás mudaram também de posição, passando parte deles para a viatura de trás. No lado da frente, imediatamente a seguir à cabina, colocou dois elementos de confiança, tendo-lhes dado instruções para prestarem a maior atenção à picada, para procurarem detectar qualquer irregularidade suspeita. Eu fiquei do lado do Francisco, imediatamente a seguir a um elemento dele. Na outra extremidade do banco, em cada lado, ficou também um milícia. O grupo do Alto Zaza ficou, deste modo, perfeitamente «ensanduichado» no meio dos milícias, que tiveram também o cuidado de colocar elementos na outra viatura. Mais conhecedores e habituados às operações no mato, confiavam mais na acuidade dos olhos deles do que nos nossos. E seguimos rumo à Camuanga, rodando devagar, para dar tempo a que os diferentes pares de olhos inspeccionassem devidamente a picada e a área envolvente.

Curiosamente, ainda que sempre com alguma apreensão, não senti o mais pequeno receio. O facto de me ver na companhia de homens muito mais experimentados do que eu e há muito habituados a todas as dificuldades de uma guerra, que se prolonga já há vários anos, bons conhecedores da vida na selva e capazes de nela sobreviverem sem qualquer dificuldade, tudo isto incutiu-me uma confiança instintiva e profunda.

A viagem decorreu lenta, muito lentamente e com os maiores cuidados. Nas zonas mais difíceis, o Francisco fazia sinal aos condutores e mandava-os avançar mais devagar. Noutros locais, dava-lhes indicações para acelerarem ligeiramente. Pelo menos, três pares de olhos experientes perscrutavam atentamente todos os vestígios antigos de rodados ou de pegadas na picada. Prestavam também toda a atenção ao estado do capim e outra vegetação na orla do caminho. A estes três pares de olhos dianteiros juntavam-se os dos milícias que iam atrás e também os nossos. Todos os ocupantes dos unimogues levavam os sentidos bem despertos. Todos dávamos a maior atenção a tudo quanto nos rodeava. Eu próprio procurava observar o caminho à frente da viatura e os cuidados dos milícias, procurando com eles aprender alguma coisa, treinando e desenvolvendo os meus sentidos, especialmente a audição e a visão, para outras ocasiões em que me visse sem a ajuda de gente mais experiente do que eu.

Na povoação de Quilambiquissa, o Francisco mandou parar as viaturas. Reinava na sanzala a actividade habitual de todas as sanzalas. O Francisco e os milícias saltaram do unimogue e foram falar com os habitantes.

— Deixem-se estar nas viaturas. — disse para o meu pessoal — Vamos procurar saber informações e seguimos já.

Saltei também da viatura e acompanhei o Francisco. Na povoação ouviram o barulho do ataque durante a noite. Durou pouco tempo. Na área envolvente, os nativos não tinham detectado movimentação invulgar. Ninguém desconhecido. A vida parecia decorrer na maior tranquilidade.

Antes de prosseguirmos, observei demoradamente a zona onde, a seguir à povoação, a picada argilosa descreve uma curva e inicia a subida íngreme. Como a povoação fica ligeiramente desviada da picada, numa zona planáltica, permite-nos observar de um plano superior a zona que considero a mais perigosa de todo o percurso, com todas as características ideais para uma emboscada bem sucedida e sem hipóteses de baixas para o grupo atacante.

O chefe do grupo, o Francisco, deve ter-se apercebido da minha preocupação. Orientou o olhar pelo meu e inspeccionou atentamente a mesma zona. Não notei nele qualquer reacção, confirmando a minha observação. Tudo parecia normal e sem o menor indício de perigo.

Retomámos a viagem. Saímos da sanzala e reentrámos na picada. Na zona da subida, que se fez sem problemas por não ter chovido, a terra barrenta estava completamente seca. As rodas agarravam-se sem dificuldade. Não tivemos surpresas desagradáveis. Ninguém disparou! Não havia ninguém a emboscar-nos!

A poucos quilómetros da Camuanga, os milícias mandaram parar as viaturas. Saltaram para a picada e resolveram efectuar o resto da progressão a pé, inspeccionando tudo minuciosamente na frente.

Na proximidade da Camuanga, a umas dezenas de metros da entrada íngreme da povoação, surgiram-nos vários soldados de cor. Ouviram o ruído das viaturas e vieram ao nosso encontro. Receberam-nos com acenos e, sobretudo, com largos sorrisos de satisfação, que nos permitiam ver umas fiadas de dentes muito brancas, que contrastavam com o escuro da pele. Éramos recebidos com vivas manifestações de alegria por soldados e nativos da Camuanga.

 

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